O impulso irresistível que leva algumas pessoas a perambular pelas estradas tornou-se categoria psiquiátrica em 1887, quando o psiquiatra francês Philippe Tissié desenvolveu sua tese “Os Alienados Viajantes”. Nesse estudo, ele relata o caso de um paciente que tinha a tendência doentia de fazer longas jornadas, deixando para trás sua casa, família e trabalho, e rompendo com os laços que o amarravam.
O caso descrito por Tissié foi do viajante de Albert Dadas, de 26 anos, que fez numerosas viagens ao longo de sua vida. Em seu primeiro contato com o médico, o jovem chegou ao hospital chorando, após uma viagem de setenta quilômetros trilhada a pé, até ser preso por vadiagem.
O rapaz não podia deixar vagar pelos caminhos, pois um desejo irrefreável o levava fazê-lo. Os viajantes eram sujeitos cuja “representação, juízo e deliberação estavam normais, mas podiam ser deslocados pela imposição de uma ideia fixa, imperiosa, dominante”, segundo Tissié.
Primeira fuga
Dadas era empregado em uma empresa local de gás. Sua primeira fuga aconteceu ainda na adolescência. Ao contrário do que se poderia supor, a ideia de fazer longas jornadas era consciente, ele inclusive guardava dinheiro para isso. Como se fosse de sua própria natureza, ele precisava cair na estrada.
Conforme relato de Tissié, quando perguntaram a Dadas o motivo de andar tanto, ele respondeu que tinha uma grande dor de cabeça e que se sentiria mais à vontade em uma estrada, onde pudesse andar.
O psiquiatra investigou as viagens e fugas dos “delirantes que andam sob o domínio de uma ideia absurda pela qual ordenam toda a sua existência”. A partir da ideia de fugir, “aquele que sai da via comum e se afasta das regras da razão”.
Sintoma patológico
Segundo as pesquisadoras Ana Claudia Soares de Angélica Bastos, em “A Errância para Além do Sintoma Patológico”, o caso de Dadas ilustra a errância tomada como sintoma patológico. Elas lembram que, atualmente, no DSM-5, esse diagnóstico foi incorporado ao de ‘amnésia dissociativa’, como um especificador ‘com fuga dissociativa’: “viagem aparentemente proposital ou perambulação sem rumo associada a amnésia da identidade ou de outras informações autobiográficas importantes”.
“Consideramos a errância para além de um sintoma ou fenômeno patológico, pensando-a de forma transestrutural, portanto, presente em qualquer estrutura clínica, neurose ou psicose, segundo o marco psicanalítico inaugurado por Freud, não se limitando ao seu aspecto negativo, deficitário e até mesmo mortificante, que pode ser observado em pacientes psicóticos, por exemplo”, escrevem as pesquisadoras.
A patologia está diretamente implicada com o sistema de controle social. Além disso, a fuga esteve culturalmente relacionada até o fim do século 19 como a doença que mais atraiu a atenção dos historiadores – a histeria.
Em “Los Descarriados”, o psiquiatra e psicanalista Emílio Vaschetto destaca que o interesse da psiquiatria pelo caso de Dadas misturava causas morais e neurológicos ao mesmo tempo. O pesquisador observa que é preciso questionar como se deu o episódio para que a fuga seja considerada doença mental.
Vagar sem rumo
“Aqueles cujo único habitat é o próprio corpo físico estão condenados a vagar sem rumo e, portanto, perdem toda a possibilidade de encontrar uma posição duradoura no tempo social. Privado de toda intimidade e ao mesmo tempo de sua relação com os outros, exceto com o parceiro, o álcool que os protege e os isola ao mesmo tempo”, diz Vaschetto, no artigo “Louvor à Errância”.
O que faz com que uma pessoa mergulhe no estado de errância é ruptura com as condições que oferecem estabilidade e segurança. Há ainda o rompimento com a rede social e qualquer espécie de vínculo duradouro. Em um mundo em constante transformação, a sociedade assiste aos movimentos de andança, em que os sujeitos rompem com a acomodação, na ânsia de encontrar um lugar melhor.
Desenraizamento
O ser humano vive hoje uma condição de desenraizamento o que o leva o permanecer em movimento, seja no espaço geográfico, seja no social e psicológico, dizem os pesquisadores de Psicologia Social José Sterza Justo e Eurípedes Costa do Nascimento, em “Errância e Delírio em Andarilhos de Estrada”.
“A mobilidade e a volatilidade do universo imediato do andarilho o expõem a uma experiência contínua de estranhamento semelhante à de um viajante, um turista ou de um migrante. A condição de transeunte, passageiro ou estrangeiro retira o chão do sujeito comprometendo seu reconhecimento no território alheio”, escrevem.
Na história
A fuga se encaixa no fenômeno próprio da época do Ancien Régime, período anterior à Revolução Francesa, quando as classes médias demonstravam o prazer de fugir da vida estável para vagar pelas estradas. Por outro lado, havia a criminalização dessas pessoas, a partir de um sistema de vigilância. Os fugitivos eram considerados como desertores pelas autoridades ao serem notados vagando pelo continente europeu.