Embora a pauta LGBTQIA+ esteja crescendo em lugares e meios de comunicação em que anteriormente não se debatia o assunto, os obstáculos continuam existindo. “Esse público segue sendo tratado como algo à margem da sociedade”, afirma a psicóloga Natália Silva. Para ela, ainda há muito a se avançar na forma de se enxergar as pessoas. “Não existe contravenção na não heteronormatividade, e o entendimento disso é importantíssimo para que tenhamos uma evolução real”, ressalta.
Nesta entrevista, Natália aprofunda o assunto e também destaca que o processo psicoterapêutico deve ser aliado na mudança. Comenta, inclusive, que é necessário que a formação dos psicólogos esteja direcionada à construção de estratégias para o enfrentamento de preconceitos e no sentido de reafirmar a autonomia desses indivíduos a fim de que possam assumir suas identidades de gênero sem um sofrimento maior, possibilitando um viver mais digno.
Psicóloga graduada pela Universidade Anhembi Morumbi, ela conta em sua trajetória acadêmica com estudos de mediação de conflitos e educação social pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), curso de extensão sobre as diversas correntes da psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), curso sobre escuta de identidade trans pelo Instituto Gerar e pesquisas acadêmicas voltadas a gênero e sexualidade.
Natália também é fundadora, responsável técnica, terapeuta, supervisora clínica, consultora de carreira e palestrante do Grupo Reinserir. Trata-se de uma clínica de atendimento psicológico voltado às áreas social, organizacional e clínica. A ideia surgiu com a preocupação em olhar para os chamados grupos minorizados de maneira que contemple sua história, contexto e singularidade, buscando promover qualidade de vida, bem-estar, autonomia e dignidade.
Embora o preconceito ainda exista, o público LGBTQIA+, ou as chamadas minorias sexuais e de gênero, vem conquistando seu espaço e cada vez mais assumindo e expressando sua diversidade publicamente. Inclusive crianças e adolescentes têm se mostrado mais à vontade para falar sobre o assunto em família e/ou com amigos. Ao que está relacionado esse fato? A autoaceitação e a aceitação por parte da sociedade vêm crescendo? Fale a respeito.
Embora esse crescimento exista, é menos do que poderia. Mesmo que haja sim uma crescente da pauta em lugares e meios de comunicação em que anteriormente não se debatia o assunto, os obstáculos continuam existindo. O LGBTQIA+ segue sendo tratado como algo à margem da sociedade, inclusive quando falamos sobre “aceitação”. Ser humano algum deve ser tratado como algo a ser aceito simplesmente por ser o que é. Não existe contravenção na não heteronormatividade, e o entendimento disso é importantíssimo para que tenhamos uma evolução real.
O mercado de trabalho é preconceituoso em relação às minorias sexuais e de gênero? De que forma e quais as consequências disso?
Nossa história social, cultural e religiosa em si já é preconceituosa. Cada uma em sua escala, mas todas nocivas. E o mercado de trabalho excludente ao LGBTQIA+ é uma consequência dessa conjuntura. Vemos isso na maioria das áreas em que a predominância heteronormativa se dá há décadas, jogando pessoas que não se “encaixam nesse perfil” em áreas específicas, subempregos e até a prostituição como fonte de renda, que é o caso de mulheres trans e travestis.
Qual deve ser o papel do ambiente corporativo no sentido do acolhimento e de uma inclusão de fato das minorias sexuais e de gênero no mercado de trabalho? É necessária uma preparação/capacitação nas empresas? Que tipo? Fale a respeito.
O papel do ambiente corporativo deve ser o de tratamento indiscriminado a qualquer pessoa. Orientação sexual não deve ser fator determinante em nenhuma circunstância. A preparação dessas empresas deve ser a de humanização. Enxergar o indivíduo além da bandeira e ser avaliado de acordo com sua capacitação profissional. Trabalhar nisso será mais efetivo que qualquer política interna de “inclusão”.
Quais outros cuidados devem ser tomados no meio laboral, inclusive em questões como a linguagem para se referir ao público LGBTQIA+ e até mesmo ao uso do banheiro nas empresas? E nessa questão específica do banheiro multigênero, como evitar conflito com os colegas que não são favoráveis (como contentar a todos os funcionários)?
Não existem formas de satisfazer a todos, e isso se aplica a tudo. O que existem são adaptações de acordo com a necessidade de todos os grupos, desde políticas públicas a políticas internas no mercado de trabalho. Tratando-se disso, antes de qualquer coisa, deve haver a discussão sobre essas adaptações e melhorias, com participação indispensável de pessoas LGBTQIA+, que são parte direta na pauta. Elas precisam ser ouvidas e atendidas de acordo com suas necessidades e capacidade da empresa.
E nas escolas, como preparar educadores, demais funcionários, colegas de sala de aula e pais de alunos para essa nova realidade, em que a diversidade sexual e de gênero é cada vez mais assumida e expressada? Há professores, na atualidade, que temem até levar processo de pais de alunos em caso de cometerem gafes em relação, por exemplo, ao tratamento de alunos transgêneros. Como então a inclusão deve ocorrer sem “traumas” para todos os envolvidos no meio acadêmico?
Essa não é uma “nova realidade”, mas uma realidade que existe desde que a humanidade existe. A forma como lidam com ela que vem mudando em alguns aspectos, trazendo como consequência maior adesão popular sobre a pauta. A mudança deve ser sempre de cima para baixo. Políticas públicas precisam ser aplicadas para que educadores tenham mais preparo e respaldo para essa abordagem em sala de aula e espaços educacionais. O educador não pode, em hipótese alguma, se sentir acuado em ensinar algo, e pessoas LGBTQIA+ são parte da sociedade. É preciso mostrar desde cedo que algo já inserido na sociedade não necessita ser “incluso”.
Qual o caminho para se alcançar a harmonia no convívio entre pessoas de todas as orientações sexuais? E nesse processo, qual é o papel de cada indivíduo, da família, da escola (meio acadêmico), do meio corporativo e também dos profissionais da saúde mental?
É necessário que mudemos essa forma conservadora de enxergar pessoas. E políticas públicas precisam ser aplicadas para que indivíduos, empresas e famílias parem de ver pessoas LGBTQIA+ como algo à margem da sociedade. O processo terapêutico deve ser aliado nesse objetivo. Ressalto, então, a necessidade de a formação do psicólogo estar direcionada à construção de estratégias para o enfrentamento de preconceitos, visto que o papel do psicólogo não é o de patologizar pessoas que estão além dos padrões heteronormativos e conservadores. Pelo contrário, o papel do psicólogo nessas demandas é oferecer a escuta, trabalhar as diversas formas de preconceito e reafirmar a autonomia dessas pessoas a fim de que possam assumir suas identidades de gênero sem um sofrimento maior, possibilitando um viver mais digno.