A terapia cognitiva processual (TCP) é um novo modelo de terapia cognitivo-comportamental (TCC) criado pelo psiquiatra brasileiro Irismar Reis de Oliveira. Tem como fundamentos os mesmos da terapia cognitiva desenvolvida pelo psiquiatra norte-americano Aaron Beck. Contudo possui conceituação própria, assim como suas próprias técnicas, o que a torna uma abordagem distinta quanto à modificação das crenças nucleares dos pacientes, especialmente as que se referem a si mesmos.

Uma das principais técnicas da TCP, o registro de pensamentos baseado no processo (RPBP) foi desenvolvido como estratégia estruturada para modificar as crenças nucleares. Apresenta-se como uma analogia com a lei na qual o terapeuta engaja o paciente na simulação de um processo judicial. A inspiração para o desenvolvimento dessa técnica veio do romance surreal ‘O processo’, do escritor tcheco Franz Kafka. Nele, o personagem Joseph K., por razões jamais reveladas, é preso e executado sem saber de que crime é acusado.

A base racional para a proposta da terapia cognitiva processual é que ela pode ser útil em fazer com que os pacientes se tornem conscientes das crenças sobre si mesmos (autoacusações) e, diferentemente do processo de Joseph K., engajem-se em um processo construtivo para desenvolver crenças mais positivas e funcionais.

Embora seja inerentemente beckiano, o modelo da TCP organiza, passo a passo, de maneira diferenciada, as técnicas cognitivas e comportamentais convencionais já conhecidas a fim de facilitar para o terapeuta a aplicação da terapia cognitiva. Ao mesmo tempo, facilita sua compreensão pelos pacientes e simplifica sua implementação, preservando a flexibilidade, a eficácia comprovada e o aspecto transdiagnóstico da TCC.

Currículo

Uma das maiores referências em psiquiatria clínica e psicoterapia cognitiva, Irismar possui graduação, doutorado e livre-docência em medicina pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), formação em psiquiatria pela Université René Descartes, Paris, e em terapia cognitiva pelo Beck Institute, na Filadélfia. Trabalhou como professor titular de psiquiatria do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFBA e é fundador e diretor do Trial-Based Cognitive Therapy Institute, nos Estados Unidos.

Tem experiência em psiquiatria clínica e psicoterapia cognitiva, atuando principalmente nos seguintes temas: depressão, transtorno do déficit de atenção/hiperatividade e transtornos de ansiedade (com ênfase nos transtornos obsessivo-compulsivo, de pânico e fobia social). As principais intervenções terapêuticas que utiliza são psicofarmacologia e psicoterapia cognitiva.

Entre os livros de sua autoria, está ‘Terapia cognitiva processual’. Publicada no Brasil pela Sinopsys Editora, a obra faz parte da série ‘Características distintivas’, que convida os mais importantes clínicos e teóricos das principais terapias entre as terapias cognitivo-comportamentais a destacarem as características fundamentais das abordagens que utilizam.

O que motivou a criação da terapia cognitiva processual?

Talvez seja uma resposta um pouco decepcionante, porque eu não tinha intenção de criá-la. Inclusive comecei a aprender terapia cognitiva muito por acaso em meados da década de 1990, quando Melanie Pereira e Paulo Knapp (pioneiros da TCC no Brasil) convidaram representantes do Instituto Beck para virem a Porto Alegre ministrar treinamentos. Na época, meu foco era psicofarmacologia. Quando Melanie me convidou para assistir, eu nem sabia o que era terapia cognitiva. Fiquei, assisti e foi amor à primeira vista, porque, embora eu tenha formação psicanalítica, encontrei uma abordagem que casava muito bem com o que eu fazia, ou seja, eu poderia tanto atuar com a terapia cognitiva quanto manter a minha prática em psiquiatria clínica com prescrição. À medida que eu ia avançando e praticando a terapia cognitiva no meu consultório, com meus pacientes, fui ganhando cada vez mais prática e passei também a ensinar. Coincidiu com a minha titularidade na cadeira da psiquiatria da Universidade Federal da Bahia em 2000. Na enfermaria, na terapia cognitiva com pacientes graves, como TOC até então intratável e anorexia praticamente chegando à morte, eu pude constatar que a abordagem realmente funcionava. E aí comecei a praticar mais ainda. E na medida que eu praticava, havia aspectos, ou que não se adaptavam ao meu jeito de ser, ou eu não me adaptava bem à técnica. Havia outras lacunas nas quais pensava que poderia criar algo. E foi exatamente assim que surgiu a primeira técnica, que foi o processo, ou seja, um conjunto de técnicas da terapia cognitiva padrão modificadas de modo que ganharam um outro formato e que se transformaram numa outra técnica. Uma vez que isso aconteceu, várias outras técnicas foram surgindo. Eu diria, então, que a TCP não foi programada, foi acontecendo. Ela nasceu em 2010, no Congresso Mundial de Terapias Cognitivas, a partir do convite da editora Routledge, a conselho do psicólogo Robert Friedberg (Wright State University School of Professional Psychology), que resultou no livro Trial-based cognitive therapy – A manual for clinicians, no Brasil publicado pela Artmed como Terapia cognitiva processual: manual para clínicos.

Quais são os princípios da terapia cognitiva processual?

Os princípios são os mesmos da terapia cognitiva padrão de Beck, como, por exemplo, o diagrama de conceituação nível 1, que equivale aos pensamentos automáticos; nível 2, que equivale aos pressupostos subjacentes ou regras; e nível 3, que equivale às crenças nucleares. A gente pode começar a falar nas características distintivas pelo diagrama de conceituação. Trata-se de um gráfico com setas que consegue conectar de uma maneira mais didática os níveis de pensamentos automáticos, de pressupostos subjacentes e das crenças nucleares de modo que podemos compartilhá-lo com o paciente desde o começo, ou seja, em praticamente todas as sessões. E o que é interessante é que ele é apresentado ao paciente por partes, ou seja, aquele gráfico inicial que demonstra o modelo cognitivo de situação, pensamento automático, emoções e comportamentos, com as setas mostrando como o circuito se fecha, apenas aquilo é apresentado ao paciente no início. E depois as outras partes vão sendo adicionadas.

Quais as principais técnicas da TCP?

Há quatro técnicas para o nível mais superficial, que é dos pensamentos automáticos; duas técnicas para o nível intermediário, que é dos pressupostos subjacentes; e quatro técnicas para lidar com as crenças nucleares. Cada uma delas se distingue das técnicas da terapia cognitiva padrão, ou porque foram modificadas e são feitas de uma forma diferente, própria da TCP, ou porque adicionamos algumas coisas que trouxemos de outras abordagens. Por exemplo, no processo, que é uma técnica de reestruturação, que modifica crenças nucleares, tomamos emprestado a cadeira vazia da gestalt, o que faz com essa técnica seja, ao mesmo tempo, bastante mobilizadora de emoção.

Para quais demandas a terapia cognitiva processual é considerada de primeira linha?

Embora eu acredite que a TCP funcione em todas as demandas nas quais a terapia cognitiva padrão de Beck funciona, porque as técnicas e os princípios são os mesmos, há estudos que comparam a terapia cognitiva processual com o que eu considero que é a abordagem padrão ouro na depressão, a ativação comportamental, e os resultados são os mesmos. Temos também ensaio clínico de Kátia Caetano comparando a TCP com a lista de espera, outro trabalho com grupo feito por Beatriz Neufeld e outro com técnicas-padrão de Vania Powell. Temos, ainda, pelo menos três trabalhos mostrando que a TCP funciona em fobia social. E, mais recentemente, o trabalho de mestrado de Érica Duran mostrou que a TCP é tão boa quanto a exposição prolongada, que é padrão ouro no tratamento do transtorno de estresse pós-traumático.

Pela sua experiência, qual foi o caso mais difícil de tratar com a TCP?

São aqueles casos difíceis para todo mundo. Alguns envolvem transtorno da personalidade. Por mais que a gente diga que pacientes com transtorno da personalidade borderline são difíceis de tratar, eles são tratáveis e ficam bem depois de algum tempo. Mas existem outras patologias mais complexas. Eu diria que, entre os casos mais difíceis que atendi e nos quais o tratamento foi bem-sucedido, estiveram pacientes com transtornos alimentares, como a anorexia. Mas são casos difíceis tanto para a terapia processual quanto para outras abordagens.

A TCP tem tarefas de casa?

Sim. A terapia cognitiva ensina habilidades, e todas suas técnicas têm uma função. Por menos que as pessoas gostem das palavras tarefa e dever de casa (inclusive o próprio Instituto Beck hoje utiliza o termo plano de ação), é preciso que se convença os pacientes a repetirem fora o que aprendem em sessão, para que aquilo realmente se transforme num conhecimento introjetado. Por exemplo, quando o paciente leva para casa uma lista de distorções cognitivas que vai precisar identificar, ele passa a prestar mais atenção nos seus pensamentos para ver se encontra ou não erros cognitivos, isso é tarefa de casa. Então, nesse sentido, a TCP também tem tarefas o tempo todo, as quais eu gosto de chamar de experimentos ou observações.

Como intervir com idosos que têm resistência a tarefas?

A facilidade e a dificuldade em aplicar a TCP estão em todas as faixas etárias, sejam crianças, adolescentes, sejam adultos ou idosos. A questão toda é como o terapeuta vai adaptar o experimento, ou a observação, ou a tarefa, ou o dever de casa para esses pacientes. A primeira coisa a ser feita é ter certeza de que o paciente entendeu o que o profissional quer. A outra coisa é que essas experiências sejam feitas na sessão. E o terapeuta vai pedir ao paciente para repetir esses experimentos fora da sessão levando em conta sua idade, sua capacidade intelectual, sua disponibilidade ou não de meios. A questão toda é fazer algo que seja mais complexo ou menos complexo de modo que a terapia se adapte ao indivíduo, não o indivíduo se adapte à terapia. Nesse sentido, transformamos a TCP inteira num modelo para adolescentes, criando o modelo dos quatro ‘mentos’, usando a metáfora do detetive, em que eles investigam os quatro ‘mentos’: acontecimento, pensamento, sentimento e comportamento. Essa é uma forma de tornar lúdico aquilo que é um pouco sisudo quando usado no consultório. O que é interessante é que, ao longo dos anos, tenho percebido que os adultos também gostam desse modelo adolescente e tenho utilizado cada vez mais, porque é algo que torna mais fácil os pacientes se lembrarem.