Ao longo dos meus 40 anos de carreira, busquei agregar muito conhecimento que pudesse ajudar no trabalho clínico. Um deles foi estudar comportamentos das personalidades com bases nas teorias psicológicas e hoje apresento aqui o caso de Zelda Sayre.

Zelda foi um fenômeno de sua época, mas ao longo da vida mostrou inadequação social significativa, sendo impulsiva e inconsequente. A excentricidade e falta de normas de conduta a levaram aos delírios paranoides.

Suas origens

Nascida no Alabama, EUA, em 1900, era a mais nova de seis irmãos e muito mimada pela mãe, porém, o pai, juiz da Suprema Corte, um homem bastante severo, era muito distante dela. Foi uma criança extremamente ativa, inteligente, mas não tinha interesse nas aulas. De família bastante rica, gostava de balé, moda, artes em geral e de se divertir. Sempre desafiou a autoridade do pai e com isso, sua vida social foi ativa desde muito cedo, onde bebia, fumava e passava muito tempo com os garotos.

Zelda desenvolveu uma ânsia por atenção, buscando ativamente desrespeitar convenções, fosse dançando o Charleston ou vestindo um traje de banho justo e da cor da pele para causar rumores de que nadava nua. Suas excentricidades tornaram-se um dos principais assuntos de fofoca da cidade, entretanto a influência de seu pai era uma rede de proteção, o que evitava a exclusão social dela.

A história afetiva

Ela conheceu o escritor F. Scott Fitzgerald em 1918, após dois anos ficaram noivos. Amigos e membros da família ficaram receosos com o relacionamento e não aprovavam o consumo excessivo de álcool de Scott. Casaram-se em 1920 em Nova York, onde foram morar. A história do casal Fitzgerald parecia um argumento de um filme hollywoodiano: dois jovens americanos apaixonados, loiros e belos, ricos e cultos, esnobes e divertidos, que se transformaram no casal na moda entre a “beautiful people” dos anos 20. Scott fazia sucesso pelo livro lançado O Grande Gatsby e Zelda era conhecida por sua beleza e desenvoltura.

Ambos tornaram-se celebridades levando-os para os altos círculos da sociedade. Eram também conhecidos como o “Casal Ouro de New York” devido ao elevado padrão de vida e exposição na mídia.

Mas o casamento dos dois estava marcado pelo excesso de bebida, comportamentos extravagantes, esbanjadores e por fim, liberalidade sexual. Travavam brigas serias onde quer que estivessem. Ironicamente, e para a satisfação do ego dos dois, nas páginas dos jornais nova-iorquinos eles haviam se tornado ícones de juventude e sucesso – “enfants terribles da Era do Jazz”.  

O decline

Na quebra da bolsa dos EUA em 1929, perderam muito dinheiro, e ele tornou-se incapaz de ultrapassar a crise criativa, não mais conseguindo escrever como antes. Ela começa a fazer compulsivamente aulas de balé por até 8 horas diariamente, a pintar quadros e escrever poesias, mas desorganizada e inconsequente –  consumia muito absinto, bebida alcoólica apelidada de “fada verde” porque às vezes levava a alucinações – não conseguiu dar continuidade a nada.

Zelda, que sempre se opôs as normas paternas, agia como se as normas (qualquer que fosse) tivessem que ser necessariamente transgredidas por ela. Em meio a esse caos pessoal, começa a apresentar visíveis comportamentos autodestrutivos: amnesias e comas alcoólicos, tentativa de suicídio por remédios, assim como depressão grave, alterações no fluxo do pensamento e fala desorganizada. Scott a interna em um sanatório em Paris onde foi tratada por Eugen Bleuler e diagnosticada como esquizofrênica. Foi transferida para uma clínica na Suíça. Só foi liberada dois anos depois para voltar a sua cidade natal, para ver o pai doente.  O pai morre e sua saúde mental piorou outra vez, voltando a viver em uma clínica psiquiátrica onde ficou por quatro anos.

Zelda passou anos sem ver o marido, que cada vez mais amargo com seus próprios fracassos, bebia ainda mais e comia pouco, culminando com sua morte aos 44 anos de idade, de ataque cardíaco. Ela não se abalou com o ocorrido, estavam distantes e ele era seu maior crítico, e não conseguiu comparecer ao funeral dele. Alguns meses após ficar viúva, devido à internação psiquiátrica (e a falta de proximidade maternal) também não foi ao casamento de sua filha.

Um arroubo de criatividade

Enquanto passava por um tratamento intensivo em Baltimore, Zelda teve um arroubo de criatividade e em seis semanas escreveu um romance inteiro e o enviou para o editor de Scott. O livro era um relato semiautobiográfico do casamento deles. Scott forçou Zelda a alterar o romance, removendo as partes que foram baseadas no material compartilhado que ele planejava usar. Após vários desentendimentos e retaliações de Scott, o livro de Zelda intitulado Essa valsa é minha foi lançado e fez enorme sucesso. Ela também recomeçou a pintar, escrever poesias, contos e mantinha correspondência, através de lindas e muito bem escritas cartas (que depois de sua morte foram publicadas em livro) com os poucos amigos. Zelda teve várias internações, pois oscilava muito da depressão à agressividade, da consciência aos estados confusionais com alucinações e delírios paranoides. Scott a rejeitava após as internações e menosprezava seu trabalho de escritora e artista plástica. Ele, que já não era mais tão produtivo e criativo, não suportava a ideia de a esposa fazer sucesso.

Vários livros foram escritos sobre sua fascinante e trágica vida, e alguns adaptados para filmes e minissérie, tendo como temas sua arte, o processo do adoecer psíquico e a relação de codependência afetiva abusiva do casal.

E MAIS…

A ruína da relação e da vida influenciada pela codependência

Cartas entre Scott e Zelda ao longo de toda a suas vidas demonstram a imensa e profunda relação de dependência que tinham um pelo outro, mesmo quando não o amor acabou e não conviviam mais juntos, cada um culpava o outro por seus desapontamentos, fracassos e pelo relacionamento destrutivo e desqualificador que desenvolveram. Porém, mesmo com tudo isso, não deixaram de ter o outro como referência da própria vida.

A essa relação nada saudável, chamamos de codependência. No caso deles, e na maioria de outras ocorrências, essa relação patológica foi sendo estruturada de forma gradual e continua, durante muito tempo. A codependência é um padrão de comportamento sempre disfuncional, pois direciona o foco do indivíduo para fora de si, assim como para as estratégias de enfrentamento de problemas, retardando-os de serem resolvidos e colocando a “culpa” ou responsabilidade no outro de todos os fatos e situações. Além disso, a codependência é um comportamento que corrobora e facilita as atitudes impróprias, ajuda a perpetuar os problemas do relacionamento e, até, favorece o abuso físico e mental. Como consequência, uma vez que firmemente estabelecida como um comportamento, caracteriza-se por um processo de dependência emocional, social e até física e, com o passar do tempo, torna-se um perigoso traço de alteração da personalidade, com desdobramentos para patologias psíquicas maiores, como psicoses e esquizofrenia.

Na codependência um fato conhecido é que a obsessão pelo outro e a dependência patológica causa grande impacto e sofrimento na vida de quem a vive e também na das pessoas próximas, mas poucos percebem que estão vivendo uma relação codependente, e que ela é altamente prejudicial para ambas às partes envolvidas. Tanto que em um certo período Zelda apaixonou-se por um piloto francês e pediu o divórcio. O relacionamento do casal estava péssimo, só se agrediam, mas Scott não aceitou o fim e a trancou no quarto da casa deles até que ela, semanas depois, desistisse da ideia.