As relações familiares sempre são complexas, com muitas nuances e ramificações das relações: uniões, rompimentos, acordos… algumas envolvendo questões patrimoniais e objetivas, mas sempre envolvem também questões afetivas. A valoração afetiva (positiva ou negativa) está sempre por trás de tudo o que acontece em família. Daí a necessidade de termos leis e normas regulamentadoras dos comportamentos humanos, como as leis da Guarda Compartilhada e da Alienação Parental. Sem elas, as relações familiares tenderiam à barbárie, com a liberdade de exercício despótico do(a) genitor(a) guardião(ã). Se, com todas essas leis, ainda assim não existe seu pleno e adequado cumprimento, e ocorrem abusos de autoridade parental, imaginem se forem revogadas! (SILVA, 2021, a, b)[1].
Interpretações equivocadas
Ocorre que o uso distorcido da lei da alienação parental vem desencadeando interpretações equivocadas quanto à sua validade, insuficiência e falhas de avaliação por parte dos psicólogos (por desconhecimento do assunto e inexistência de instrumentos apropriados), e ainda comportamentos inadequados dos genitores, o que aumenta ainda mais a confusão. Assim, vejamos os seguintes casos concretos:
- Pai pega o filho adolescente da casa da mãe, mas não interage com ele: deixa-o sozinho na casa da avó, e sai com a namorada/esposa, com os amigos, brinca com o novo filho, vai dormir, e só encontra com o filho adolescente na hora de voltar para a casa da mãe. Quando o filho fala que “não quer mais ir com o pai”, o pai fica bravo, diz que “é a mãe quem está praticando alienação parental, induzindo o filho a rejeitá-lo”;
- Pai agressivo, violento: a mãe instalou um dispositivo de escuta e localização no celular do filho, e registrou gritos ofensivos do pai contra o próprio filho e a mãe (incluindo palavrões e termos de baixo calão), e gemidos de dor da criança. O filho fala que “não quer mais ir com o pai, tem medo, gostaria que o pai parasse de gritar e bater nele”, mas o pai não entende isso, acha que é a mãe quem “espionou” (instalando o app que o pai alega ser “clandestino”), mãe teve que contratar acompanhante terapêutico para acompanhar as visitas paternas e fazer relatórios diários. Mesmo assim, a acompanhante terapêutica presencia cenas em que o pai quer impor sua vontade, sem respeitar as preferências do filho, e em certa ocasião ele chegou a levantar a mão para ameaçar bater no filho, se conteve porque ‘lembrou’ que a acompanhante terapêutica estava ali;
- Pai não aceita o diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista) do filho de 3 anos, diz que a mãe está “superprotegendo” e “hipervalorizando” os comportamentos da criança, e não mede esforços para desqualificá-la como mãe e como pessoa, inclusive alegando que é ‘desequilibrada’. A mãe fornece os contatos dos profissionais que atendem a criança, avisa das consultas, ele não vai, só recentemente, às vésperas da perícia psicológica judicial, ele começou a telefonar para os profissionais, mas ainda assim ‘esquece’ de acompanhar as consultas. Mãe já ofereceu visitação muito antes de regulamentação judicial, inclusive para que ele trouxesse a avó e família extensa, que raramente comparecem. Mesmo assim, ele alega em processo judicial que está ‘excluído’ da vida do filho, que está sofrendo ‘alienação parental’ por parte da genitora, extensivo aos familiares deste;
- Durante a pandemia, pai nem telefonou nem fez chamadas de vídeo para se comunicar com a filha de 7 anos; quando se flexibilizaram as medidas de isolamento social, pai começou a combinar com a mãe os finais de semana, férias e feriados para ficar com a filha. A menina vai bem, mas não consegue pernoitar na casa dele, diz que precisa voltar para a casa da mãe. O pai liga para a mãe e exige que ela venha buscar a filha, interferindo em eventual programação pessoal que a mãe tenha (viagens, passeios com amigas, etc.). Pai deixou de ir à apresentação de hipismo da filha, para ir a um aniversário de um amigo dele. Em telefonema, a filha pergunta: “Quem é mais importante para você, pai? Eu ou o seu amigo?”, o pai desconversa e não responde claramente. Em processo judicial, o pai alega que a mãe é ‘desequilibrada’, e que está praticando alienação parental, induzindo a filha a não querer permanecer muito tempo com ele.
- Mãe descreve uma convivência conturbada com o ex-marido, com discussões, atitudes dele em controlá-la (ex.: quando ele se apropria do cartão bancário dela), colocar câmera no quarto do casal, alegando que “ela tem um amante”, clonar o whatsapp dela, e principalmente, de exigir que ela esteja presente na entrega e devolução das crianças de 12 e 10 anos nos períodos de convivência do pai, que ele reviste as malas com as roupas das crianças; não aceita nenhuma alternativa mais prática, mesmo que fosse em benefício ou conveniência das crianças (ex.: buscar e devolver as crianças diretamente na escola); o pai teria ameaçado que “entraria no quarto dela” quando ela acordasse. Que o pai promete uma vida ‘paradisíaca’ para os filhos se eles optarem por conviver com ele, mas sempre protela as providências e faz uma série de exigências descabidas; mãe entende que os filhos estão iludidos com as promessas do pai, então a conduta da mãe seria uma forma de concordar em conceder a guarda ao pai para amenizar o transtorno e que a convivência das crianças com o pai atenderia os interesses dos filhos. Mãe descreve também as manipulações emocionais que o pai faz sobre os filhos (ex.: filhos dizem que a mãe “impede a felicidade deles”). Que o pai sugeriu aos filhos que pegassem um Uber e fugissem dali, “porque a justiça não presta para nada”, e que o filho de 10 anos disse à mãe que “meu pai vai ‘virar a mesa’ aqui, você vai ver o que vai acontecer” (sic). Os filhos mostram comportamentos violentos, desafiadores, agressivos, registrados pelas câmeras instaladas na casa. Que o filho mais velho passou a manifestar agressividade, briga com o irmão e com colegas da escola – muitas vezes, chegando a chutes e socos -, se recusa a entrar na sala de aula, já teve advertências e punições escolares, embora o coordenador e equipe docente procure ajudá-lo. Em casa, os filhos já ameaçaram a mãe e a agrediram com panela, frigideira, espátula de raspar tinta de parede, facas. Quebraram e arrancaram as câmeras de vigilância interna do apartamento e, quando questionados pela mãe, dizem que “as câmeras tiram a privacidade deles”, que “violam direitos humanos”, que “estão com medo” (mas, quando a mãe pergunta do quê estão com medo, não sabem explicar). A mãe pretende ceder a guarda física para o pai, para que eles experimentem a realidade da convivência, mas o pai diz aos filhos que a mãe os está “abandonando”.
A lista é longa
Embora os contextos sejam diferentes o que existe em comum nesses exemplos que relatei acima? Comportamentos inadequados de pais (e mães) que sabotam a relação com os filhos, não dão a devida atenção, não aproveitam as oportunidades de estarem juntos para interagir, e mais grave: xingam, ofendem, caluniam o(a) ex-cônjuge, e tornam a convivência insuportável com lamúrias, vitimização, reclamações. Eles culpam o(a) ex-cônjuge pela rejeição dos filhos à convivência com eles, sem reconhecer (ou, sem admitir) que são eles próprios que prejudicam a convivência! Lembro que, antes mesmo do meu pai abandonar a família quando eu tinha 14 anos, ele vinha ao meu quarto quase todas as tardes, sentava à minha cama e chorava como criança, dizendo “ninguém cuida de mim!” (diga-se, um homem adulto de 44 anos!!!). Isso tornava as tardes insuportáveis para mim, eu tinha aula integral em alguns dias da semana, e nos demais eu me recusava a voltar para casa, para não vivenciar mais essa situação. Os filhos se entediam, acham que a fragilização é excessiva, e que, quando os adultos têm filhos, devem se preocupar com eles e menos consigo próprios. Quando ele se foi, a sensação que ficou em mim foi de alívio.
Manipulação emocional
Com o advento da Lei nº 12.318/2010, a chamada Lei da Alienação Parental, profissionais sérios vêm analisando o pesquisando o fenômeno para identificar as possíveis vertentes e efeitos nas relações familiares. Nesse cenário, muitos(as) genitores(as) estão praticando, consciente ou inconscientemente, uma manobra de manipulação emocional aos filhos, querendo que os filhos sejam ‘terapeutas’ ou ‘muletas’ deles, fazendo chantagem emocional com os próprios filhos, se fazendo de ‘vítimas’, prejudicando a convivência, praticar violência psicológica (gaslighting), utilizar manobras intimidatórias, coercitivas e controladoras), naquilo que RICARTE (2021)[2], a partir dos ensinamentos de MADALENO, denomina de alienação parental autoinflingida:
A autoalienação parental ou alienação auto infligida acontece quando o genitor ao receber o filho no período de convivência, se comporta ofendendo o outro genitor ou mesmo passa a fazer críticas duras acerca do modo como o outro genitor está conduzindo a criação da criança ou do adolescente, ou mesmo passa a desqualificar os sentimentos dos filhos.
É uma alienação parental de forma inversa, o auto alienador na ânsia de atingir o genitor que detém a guarda ou que reside com os filhos, passa a se colocar no lugar de vítima.
Normalmente usa de expressões como: “sua mãe acabou com a família” ou “sua mãe me destruiu” ou “sua mãe faz de tudo para me ferrar”. Estas são as expressões mais comuns que ouvimos das crianças ou do genitor.
[…]
Este comportamento é mais comum e predominantemente masculino, e reflete no desejo de manter a autoridade patriarcal e punir a ex-cônjuge.
Rolf Madaleno foi o pioneiro no reconhecimento dessa prática como uma forma de violação aos direitos das crianças e adolescentes. Para ele, a autoalienação pode ser causada “pelo progenitor destituído da guarda dos filhos, gerada pelo comportamento disfuncional de um pai que pode muito bem não ter conseguido superar a ruptura do seu casamento”.
No caso da alienação parental auto infligida, um dos pais está tão obstinado pelo fato de as coisas não estarem funcionando como desejado, que atribui a responsabilidade dessa constatação a um suposto ato de deslealdade do outro genitor, sendo incapaz de observar que os filhos, bombardeados por uma série de agressões psicológicas, estão sofrendo com as situações que ele mesmo ocasiona.
Daí a importância da preservação da lei nº 12.318/2010 contra manobras inescrupulosas de instituições que se conchavam com bancadas parlamentares extremistas para espalhar fake news acerca do fenômeno da alienação parental e do processo de elaboração da lei (eu acompanhei desde o anteprojeto, nenhum conselheiro regional ou federal de psicologia que hoje exigem a revogação da lei se dignou a ouvir as histórias desses pais, mães, avós, filhos que sofrem com a alienação parental na época em que elaboramos o anteprojeto de lei!). Precisamos de procedimentos em caráter de “Urgência urgentíssima” para melhorar a lei, regulamentando onde está falha, principalmente quando não especifica quais os critérios para a qualificação do psicólogo para avaliação dos casos de alienação parental (para ‘separar o joio do trigo’, saber o que é uma alienação parental verdadeira e uma simulação ou autoalienação).
Dinâmica psicológica
É importante considerarmos que a dinâmica psicológica subjacente não é sempre a mesma, e o psicólogo deve estar atento aos múltiplos fatores que podem explicar as alterações de comportamento da criança/adolescente. RAMIRES (In: HUTZ et al., 2020)[3] alerta para que se evite o risco de generalizações pouco fundamentadas e atribuição do rótulo de ‘alienação parental’ de forma injustificada e indiscriminada.
Enfim, para cada manobra inescrupulosa que exige a revogação da lei da alienação parental, felizmente temos muitas pesquisas idôneas e comprovadas de situações que aprofundam a compreensão desse fenômeno, reforçando a importância do ‘freio’ a essas práticas reprováveis da alienação parental, que tanto prejudicam o desenvolvimento afetivo e socio-familiar de nossas crianças e adolescentes.
2 respostas
Bom dia! Gostaria de sua visão sobre alienação religiosa no caso de crianças autistas e seus familiares. Sou professora em uma comunidade carente onde a religião (TORTA) de igrejas formadas sem base de estudo e lideres em sua maioria ex-presidiário, onde pais com déficit social buscam respostas para a doença não diagnosticada do filho e em sua, maioria recebem como manifestação do mal, provação ou falta de Deus. Legalmente como denunciar? Vejo como isso está sendo manipulado nessa crescente de casos de TEA (Transtorno do Espectro Autista). Como proteger essa criança onde os pais negligenciam tratamento por recusar e querer ver o filho normal e não “doente mental”
Bom dia Elisângela!
Eu entendo que é possível sim denunciar às autoridades competentes, Conselho Tutelar, Ministério Público, Delegacia. Os relatórios q fizerem têm fé pública, como funcionários públicos (vc deve ser professora da rede estadual, também é funcionária pública).
Pq permanecer assim, sem atendimento clínico e educacional especializado é uma violência, uma violação de direitos dessas crianças.
Por vezes, há a necessidade de retirada da guarda e poder familiar desses pais, pra q essas crianças sejam atendidas na rede especializada.