O termo gaslighting tem ganho notoriedade nas mídias sociais e em publicações no mundo todo. Felizmente, cada vez mais, pessoas têm aprendido a identificar o comportamento manipulador do gaslighter (aquele que faz uso dessa forma de manipulação) e também as repercussões e perigos do envolvimento com essas pessoas. Mas, será que todos conhecem o termo e sabem o que de fato este significa?

Abuso psicológico na ficção

Gaslighting é um tipo de abuso psicológico grave cuja marca principal é a deliberada distorção das circunstancias reais, omissão de informações, invenção de fatos e até realização de eventos estranhos (como mexer em coisas do ambiente, nas luzes, etc.), tudo com o objetivo de favorecer o manipulador e fazer com que a vítima desacredite de sua própria memória, percepção ou mesmo de sua sanidade mental.

O vocábulo se tornou um neologismo a partir do nome da peça teatral Gas Light, de 1938, que após ser adaptada para o cinema se popularizou e, na década de 60 do século passado, ganhou forma até mesmo no meio clínico e acadêmico. Na tradução brasileira, o filme se chama “À meia luz”, mas a tradução literal, “luz a gás” (numa tradução livre), faz muito mais sentido, já que trama se passa num ambiente iluminado por luz a gás e a manipulação desta é um ponto importante do enredo.

A história mostra a relação doentia de um casal cujo marido (gaslighter) esconde objetos da esposa, maneja a luz da casa para que fique piscando e mente descaradamente até que esta começa a acreditar que está tendo alucinações e sério problema de memória. O abusador, neste caso, quer omitir um segredo do passado que o envolve e revela uma suposta relação dele com a tia morta da esposa.

Todos os tipos de relação

Mas, afinal, a vida imita a arte ou a arte imita a vida? Embora o termo gaslighting tenha emergido de uma história fictícia, não podemos esquecer que existem milhões de gaslighters no mundo, homens e mulheres, embora até pouco tempo atrás fosse bem mais fácil identificar os abusos psicológicos perpetrados pelos homens sobre as mulheres. No entanto, em contexto culturalmente sexistas, esse tipo de abuso ainda se faz notório.

Contudo, o gaslighting pode ocorrer em qualquer tipo de relacionamento pessoal, ou mesmo profissional. Sempre que há alguém com intenção deliberada de controlar alguém (física, emocional, espiritual ou financeiramente) e/ou obter qualquer tipo ganho (ainda que seja por prazer) manipulando violentamente a verdade e favorecendo a perda de identidade, lucidez e autoestima de outra pessoa, há um abuso do tipo gaslighting.

Táticas de atuação

O gaslighter tem táticas importantes de atuação. Sua primeira ação é envolver a pessoa que será manipulada. O “bombardeio de amor”, como essa fase é conhecida, tem o objetivo de fazer a vítima “se apaixonar” (no sentido amplo do termo) pelo manipulador. Nesse momento, o enganador vai seduzir seu alvo com elogios e outros comportamentos que geram “confiança”. Esse alicerce construído na relação é fundamental para que os próximos passos do gaslighter deem certo. É importante frisar a relevância dessa etapa do processo, já que com o passar do tempo a vítima confia tanto no agressor que no momento posterior deixa de acreditar em si mesma.

Após esse “namoro” inicial, o gaslighter vai começar a ter atitudes cada vez mais pesadas, confundindo o manipulado. E nessa fase, também consegue colocar familiares e amigos contra a vítima, isolando-a para ter ainda mais poder e controle sobre esta.

Poder sobre a vítima

Nem todo manipulador é um gaslighting, mas todo gaslighter é manipulador. Embora a manipulação seja uma estratégia muito importante para eles, o que dá o tom gaslighting é a manipulação para controlar, ter poder sobre a vítima. É quase uma necessidade de “aniquilar” a autonomia e sanidade alheia para obter os fins desejados. Para tanto, o gaslighter precisa ser frio, calculista e pouco empático com ou outros.

As consequências na vida emocional de pessoas vítimas de gaslighting são inúmeras. Pessoas que sofrem este tipo de abuso, se veem com sua autoestima fragilizada, sofrem crises de ansiedade e depressão. Em casos mais severos pode haver tentativa de suicídio, entre tantos outros trágicos desfechos.

O fato é que em situações em que gaslighters são identificados, é preciso se tomar o cuidado de se promover ajuda psicológica e/ou psiquiátrica para as vítimas do abusador, como ainda para o mesmo.

E MAIS…

Gaslighters podem ter transtorno de personalidade

Geralmente são indivíduos que sofreram violências na infância. Mas, podem ter sido criados sem conexões afetivas saudáveis ou sem referenciais de vida positivos.

A noção da importância das primeiras relações afetivas na vida da criança para que esta se torne um adulto saudável e adaptado pode ser encontrada na psicanálise, na teoria do apego de John Bowlby e também na teoria dos Esquemas.

Na análise de um gaslighter é preciso se avaliar as informações genéticas que possui, os traços de temperamento e personalidade e o estudo da família de origem e de seu funcionamento. Tamanho grau de desajustamento social só pode ser explicado através da observação da multiplicidade de fatores.

REFERÊNCIAS
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-V). Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.
FREUD, Sigmund. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
BOWLBY, John. Apego: a natureza do vínculo. Volume I trilogia Apego e Perda. 3 edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
____. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
____. Cuidados Maternos e Saúde Mental. São Paulo: Martins Fontes, 2020.
YOUNG, Jeffrey. Terapia Cognitiva para Transtorno da Personalidade: Uma abordagem focada no esquema.