O Dia Nacional do Psicólogo é comemorado em 27 de agosto no Brasil, porque, nessa data, em 1962, foi assinada a Lei nº 4.119, que dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. A celebração foi oficializada com a publicação da Lei nº 13.407 em 27 de dezembro de 2016.
Nesta entrevista, o psicólogo Anderson Zenidarci aborda a evolução da profissão desde os primórdios até os dias atuais e faz reflexões sobre o futuro da mesma.
Mestre em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ele atua há 40 anos em atendimento clínico em diversos segmentos, com especial dedicação à psicossomática e aos transtornos e patologias psíquicas.
Também é coordenador e professor do curso de especialização em transtornos e patologias psíquicas pela Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo (Facis). Atua, ainda, como supervisor clínico e palestrante e é autor dos livros ‘99 procedimentos facilitadores em processos psicoterápicos’ e ‘Adoeci! Por quê? – Psicossomática contemporânea’, ambos da Wak Editora.
Como surgiu a psicologia?
Existem indícios de que a psicologia era estudada no Antigo Egito, na Grécia, no Império Romano, na Mesopotâmia e entre os fenícios há mais de três mil anos antes de Cristo. Na época, não era entendida como psicologia, mas como influências dos deuses, da alma, do espírito e das forças da natureza sobre a pessoa que determinavam comportamentos que ela tinha ou não dentro do padrão. A psicologia foi parte da filosofia durante muito tempo. Platão, Aristóteles, Galeno e vários outros pensadores falaram sobre psicologia dentro da filosofia. Foi na Alemanha, em 1870, que Wilhelm Wundt (médico, filósofo e psicólogo) começou a falar que a psicologia tinha que ser estudada à parte. Na época, então, ela passou a se desenvolver como uma disciplina independente da filosofia. Os primeiros estudos foram muito voltados à lógica mental e aos pensamentos mentais, sendo chamados de estruturalismo, funcionalismo e associacionismo. Porque se buscava saber como o indivíduo raciocinava ou deixava de raciocinar e como essa questão racional estava relacionada a comportamentos, atitudes, pensamentos e sentimentos. Quem transformou tudo isso foi Sigmund Freud (neurologista e psiquiatra austríaco) quando ele chegou afirmando que o ser humano tinha algo que era não consciente, não racional, não coerente, ao que ele deu o nome de aparelho psíquico (assim como aparelho circulatório, digestório, etc.) e, posteriormente, passou a falar em dinamismo psíquico. Foi por meio de Freud que a psicologia tomou o aspecto que hoje nós entendemos, como algo subjetivo, algo que lida com o inconsciente do indivíduo, com representações simbólicas e tudo mais.
Por que o Dia Nacional do Psicólogo é comemorado em 27 de agosto?
Porque foi nesse dia, em 1962, há exatamente 60 anos, que foi regulamentada a profissão de psicologia no Brasil. Os cursos começaram antes, na década de 1950, mas não havia regulamentação.
Quais são as principais abordagens psicoterapêuticas e sua importância?
A primeira é a psicanálise, que vem com Sigmund Freud, Carl Jung, Melanie Klein. Passa também por outros pensadores que influenciaram a leitura da psicanálise, cada um desenvolvendo sua teoria a partir do seu próprio repertório e contribuindo com o entendimento da psicodinâmica humana. As pessoas antes brigavam muito, e os radicais ainda brigam, mas é falta de um entendimento do todo, porque as teorias se complementam. Quando há hiatos na teoria de alguém, a outra teoria complementa. Portanto não é raro hoje uma pessoa utilizar, dentro de uma visão analítica, pressupostos de Freud e de Jung, por exemplo. Percebo que, em vez de se defender uma linha teórica de maneira radical e agressiva, há uma maior preocupação com o entendimento da psicodinâmica do indivíduo. Ainda em relação às abordagens, hoje há muitos tipos e subdivisões, como, por exemplo, cognitiva, comportamental, cognitivo-construtivista e analítica, que tem base em pressupostos da psicanálise, mas não é psicanalista. Temos a gestalt, temos interpessoal, psicodrama, arteterapia, ludoterapia, terapia breve, terapia humanista, existencial… Hoje até se fala que a constelação familiar já entra como um tipo de psicologia, com o que eu só concordaria se, após a constelação, se trabalhasse os conteúdos desenvolvidos e vivenciados, o que muitas vezes não tem uma continuidade.
Onde a psicologia está presente?
A psicologia hoje está em praticamente todos os lugares: dentro de escolas, asilos, hospitais, clínicas de cirurgia estética, bariátrica, enfim, dentro de várias instituições, dentro de empresas… Cada área exercendo um tipo de psicologia diferente, mas o psicólogo está lá. Temos a psicologia escolar, educacional, organizacional (a do trabalho), do trânsito, jurídica, do esporte, clínica, hospitalar, do consumidor, do marketing, psicopedagogia, psicomotricidade, psicologia social, psiconeurologia, psicologia do desenvolvimento humano, psicoantropologia, psicossociologia, psicologia ambiental… É um desmembramento da psicologia que possibilita ao profissional da área, tendo uma formação pós-faculdade, uma especialização, atuar das mais variadas formas. Então a psicologia está sendo de suma importância e atuando em inúmeras frentes, porque as pessoas entenderam a necessidade de ter um profissional em todas essas áreas e muitas outras.
Fale sobre a contribuição e a importância da psicologia no mundo contemporâneo.
Atuo na profissão há 40 anos, e o entendimento do que é terapia mudou muito nesse período. Hoje ela está sendo mais utilizada. Inicialmente, era algo sigiloso; as pessoas tinham muito medo e vergonha de falar que faziam terapia. Hoje, em alguns núcleos, isso ainda existe. Mas em outros, quem não faz terapia é visto com estranheza. Sobre a contribuição da psicologia, penso que estamos vivendo num mundo cada vez mais caótico, o planeta humano (comunidades, grupos, países, continentes…) – não me refiro ao planeta Terra – está esquizofrênico. Estamos cada vez mais cindidos. E está todo mundo muito perdido, angustiado, confuso, inseguro e temeroso em relação à própria vida, a tudo o que está acontecendo e ao futuro. E nessa era da informática, dos aplicativos, as pessoas também procuram muita informação rápida, básica, sem muito questionar, sem pensar sobre si e sem procurar entender o que está acontecendo consigo. Nesse contexto, percebo uma mudança grande em relação à expectativa da atuação do próprio psicólogo e da psicologia. As pessoas estão muito superficiais e querem algo mais rápido, mais imediato, respostas prontas e indicações de um guru sobre caminhos que elas têm que trilhar. Com certeza, não é esse o papel do psicólogo.
Qual a importância do profissional da psicologia nesse momento pós-pandemia?
Com a covid-19 e todo esse processo que vivemos, a demanda foi muito grande para os profissionais da área de saúde. O psiquiatra trabalhou muito, o psicólogo trabalhou muito. Tivemos um papel muito forte, muito intenso, na tentativa de equilibração, porque existia pânico, angústia, ansiedade severa, depressão. Houve uma desestabilização intensa. Agora, no pós-crise da covid, isso ainda não acabou, porque acreditamos que as sequelas sociais psicoemocionais vão durar de três a quatro anos, dependendo do que cada um viveu. Se viveu muitos lutos, perdas de pessoas próximas, se é alguém que se impressiona muito e tem uma sugestibilidade patológica maior, se é alguém que tem medo de que possa haver outro surto mais grave ou de outro vírus que possa vir e dizimar a população. O mundo interno não tem a lógica externa. E há pessoas que nem percebem que estão com sequelas do período pandêmico. Elas estão um pouco perdidas, sem perspectivas, sem muita vontade de fazer as coisas. Estão insatisfeitas e angustiadas com o que estão vivenciando, querem a mudança, mas não sabem como romper coisas que precisam romper. Está existindo um vazio que se apresenta das mais variadas formas, seja no âmbito afetivo, profissional ou social. Esse vazio é a somatória da insegurança, do medo da morte, do entendimento de que a gente pode realmente morrer a qualquer momento. Também se está vivenciando a elaboração de alguns lutos, porque, na pandemia, muitas pessoas próximas foram internadas, morreram, tiveram seus caixões fechados e não houve velórios. Só que, para elaborarmos os lutos, nós temos que ter rituais. O velório é um ritual, o enterro é um ritual, é preciso fechar o ciclo. E muitos ciclos não foram fechados. Nem nos nascimentos, porque muitos bebês nasceram nesse período e, além dos pais, ninguém podia ir ao hospital para ver as crianças, levar presentes, comemorar esses nascimentos. Nada disso existiu. Tivemos grandes rupturas nesse período e estamos tendo sequelas de tudo isso.
Quais os principais desafios atuais da profissão?
O principal desafio é conscientizar as pessoas da necessidade da terapia e de que ela é um processo e não um flash. A psicologia, enquanto psicoterapia, é uma história que tem que ter capítulos, páginas, episódios, isto é, sessões que abrem e fecham, muitas deixam em aberto para completar na próxima e assim vai. E não simplesmente falar de um tema, entender/resolver esse tema e passar para o outro, porque, em breve, a terapia vai acabar. O grande desafio é, mediante a grande demanda que estamos tendo, não só trabalhar na emergência, que, embora também seja uma postura, só alivia a situação circunstancial e, em breve, a pessoa terá outra situação conflitiva, porque, na realidade, a origem não foi resolvida.
Quais as perspectivas para o futuro da psicologia?
Embora ainda há quem duvide, a psicologia é uma ciência, porque tem comprovação científica. Só que a psicologia atualmente está sendo bombardeada por pessoas que fazem cursinhos de quatro a seis meses e passam a ser denominadas terapeutas. Então terapeuta hoje é qualquer coisa. Tem inclusive terapeuta que joga tarô, joga búzios e que lê a mão. Não há exigência de graduação ou formação especializada. Isso é um perigo, porque essas pessoas sem preparo algum abrem consultórios, fazem divulgação, cobram preços baixos e acabam interferindo na vida dos outros, dizendo o que precisam ou não fazer, tendo uma postura muitas vezes não ética com pacientes que podem estar precisando de uma psicoterapia séria, profunda, com alguém que tenha o entendimento da psicodinâmica e saiba atuar. Isso acaba respingando no psicoterapeuta, no psicólogo. Outra coisa que me faz ter receio do futuro da psicologia é o fato de a formação atual do psicólogo na graduação ser paupérrima. As matérias são muito elementares, e as aulas são metade presenciais e metade on-line. Lecionei psicopatologia na graduação durante 30 anos e desisti quando o coordenador pedagógico e o diretor da faculdade disseram que eu precisava cortar 35% do conteúdo porque os alunos reclamavam que era muita matéria para estudar. Psicopatologia é psicopatologia, não tem como cortar algumas patologias psíquicas. Hoje só dou aula em pós-graduação, de psicopatologia e psicossomática, mas também já percebo que as pessoas querem o material mais mastigadinho, mais destrinchado, em vez de algo para pensarem.