Com origem na Grécia Antiga no século VI a.C, a filosofia – amor pela sabedoria – oferece uma infinidade de reflexões e pensamentos que podem ser de grande utilidade para o cotidiano na atualidade. A filosofia clínica reconhece isso e desenvolveu um método para usar todo esse conhecimento acumulado por mais de dois mil anos em favor de seus partilhantes, que são as pessoas que procuram o filósofo clínico em busca de soluções para os problemas de suas vidas.

Embora reconheça a importância e utilize como base a metodologia desenvolvida por Lúcio Packter, que inaugurou a filosofia clínica no Brasil, a filosofia clínica integral olha para o ser humano em sua integralidade. Por isso, faz uso de conhecimentos oferecidos também por outras disciplinas, como a psicologia, a neurobiologia, a lógica e a linguística – além, é claro, de todo o tesouro filosófico desenvolvido tanto no ocidente quanto no oriente.

Nesta entrevista, o filósofo clínico integral e psicobiólogo Marcello Árias Dias Danucalov aprofunda o tema filosofia com fins terapêuticos. Ex-professor universitário, área em que atuou por quatro décadas em diferentes estados do Brasil, ele é autor de vários livros, entre eles ‘Neurofisiologia da meditação’ e ‘Neurobiologia e filosofia da meditação’.

Trabalha como filósofo clínico integral, orientador filosófico familiar, consultor e palestrante com foco em comportamento e desenvolvimento humano para pessoas físicas, grupos e equipes (ambientes corporativos, educacionais em geral e órgãos públicos). Há vários anos, junto com o também filósofo clínico integral Fabio Blanco, ministra o curso de formação Filosofia Clínica Integral e Orientação Filosófica.

Por que se tornou filósofo clínico?

Chamamos a filosofia clínica que praticamos de filosofia clínica integral, porque ela é diferente da filosofia clínica proposta por Lúcio Packter, mas absorve muito do belíssimo trabalho que ele nos legou. Tenho uma formação um pouco eclética: fui surfista profissional, fui mergulhador profissional e depois fiz educação física. Na educação física, atuei em muitas áreas, mas fui me especializando em fisiologia humana, fisiologia do exercício. Daí para começar a estudar neurofisiologia e neurociências, foi um pulo. Já era um autodidata com relação à filosofia; lia muita filosofia e psicologia desde pequenininho. Herdei uma biblioteca do meu pai e completei essa biblioteca: hoje tem 5 mil livros aqui em casa. Então essa foi minha primeira formação. Depois fiz uma faculdade de filosofia, um mestrado em fisiofarmacologia, um doutorado em psicobiologia e, no meio disso, fui fazendo uma série de cursos. Também tive uma atuação profissional bem eclética. Fui professor universitário por mais de 38 anos pelo Brasil todo, lecionando em faculdades nas áreas de medicina, educação física, gestão portuária, administração, comércio exterior, fisioterapia. Só não dei aula mesmo nas engenharias. E naturalmente fui sendo conduzido para o trabalho com comportamento humano. Até o momento em que fiz uma formação em filosofia clínica muito sólida. E desde então, há cerca de 20 anos, atuo como filósofo clínico integral, orientador filosófico de famílias, palestrante e consultor na área corporativa. Hoje atendo uma média de oito partilhantes por dia.

O que é a filosofia clínica e quando, onde, como e por que foi criada?

Na realidade, a filosofia nunca deveria ter deixado de ser clínica – se a gente entender a palavra clínica não no sentido stricto, como clínica médica, terapêutica e hospitalar, mas num sentido mais lato, como pensar a própria existência, o que acaba tendo uma influência num bem-estar mais genérico. A filosofia nasceu gradativamente na Grécia Antiga com o intuito de fazer o ser humano pensar melhor e assim deliberar melhor suas questões, seus problemas, seus dilemas existenciais. Ela era muito praticada na rua diga-se de passagem. Existem evidências de que, na Grécia Antiga, havia até um consultório, chamado de consultório da alma, do sofista Antífon. Ele acreditava que, por intermédio da fala e da conversa, poderia ajudar as pessoas a resolverem seus dilemas. Um atomista, nome que se dá hoje a um materialista, Antífon inclusive achava que o pensamento era feito de átomos, de pequenas partículas de matéria, e que, quando as pessoas conversavam, essas partículas se moviam das áreas mais escuras para as mais claras da consciência e, com isso, o pensar era iluminado. Não só Antífon fez esse trabalho e não só os atomistas, mas os idealistas também, como Platão e Sócrates, que ajudavam muito as pessoas a pensarem e a deliberar melhor as suas relações. A filosofia é a mãe de todos os saberes, é a mãe de todas as ciências. E há aproximadamente 130 anos surgiu, da própria filosofia, a psicologia enquanto profissão. E há aproximadamente 50 anos começou a pipocar no mundo uma série de filósofos acadêmicos afirmando que haviam deixado de atuar como indivíduos orientadores de pessoas, mas não deveriam ter deixado. Então começaram a surgir escolas de filosofia terapêutica. Na América do Norte, surgiu o aconselhamento filosófico, com o filósofo canadense Lou Marinoff. Na Espanha, com os discípulos do filósofo Ortega y Gasset, do filósofo Julián Marías, a filosofia aplicada. E no sul do Brasil, surgiu a metodologia da filosofia clínica estruturada por Lúcio Packter.

E como surgiu a filosofia clínica integral?

Eu me formei em filosofia clínica com uma aluna de Lúcio Packter, a doutora Mônica Aiub. Só que, desde o início, fiquei um pouco incomodado, porque foi uma formação pautada muito em pensadores que embasaram o pensamento progressista, hoje associado à esquerda, ou seja, muito marcado ideologicamente. Eu particularmente acho isso ruim. E existem outras coisas dentro da filosofia clínica das quais discordo, uma delas é a crença de que não existe conceito de normalidade, de que normalidade é uma construção social. Sempre me insurgi contra isso, porque acredito que muita coisa que a gente fala que é normal é um constructo social, mas muita coisa também faz parte da natureza humana e deve ser respeitada. Caso contrário, a gente vai normalizar a pedofilia, por exemplo. Aliás, já está quase acontecendo isso infelizmente. Então, com o tempo, fui me despregando um pouquinho, tanto é que não sou filiado à Associação Nacional de Filósofos Clínicos (Anfic). Por esse motivo, eu e Fabio Blanco colocamos um sobrenome na filosofia clínica, chamando-a de filosofia clínica integral, porque somos fortemente influenciados por uma literatura mais conservadora, que infelizmente foi abandonada nos cursos de psicologia, uma literatura que flerta com a tradição escolástica, que resgata a questão do trabalho, das virtudes. Mas não restringimos os autores em nosso curso de filosofia clínica integral, estudamos inclusive aqueles com viés mais progressista, só não marcamos a formação ideologicamente. Estamos lá para estudar todo o pensamento humano e utilizá-lo da melhor maneira possível no setting terapêutico. E outra coisa: acredito firmemente que, diferentemente de algumas práticas psicoterapêuticas, não basta você dominar somente o método para ser filósofo clínico integral; é preciso querer desenvolver uma personalidade filosófica. É necessário que você, gradativamente, seja movido por aquilo que moveu os filósofos, que é a busca da verdade, que é a inquietação e aquela busca de construir uma unidade no seu pensamento, na sua consciência. Expandir a sua capacidade perceptiva a respeito do mundo, expandir o seu horizonte de consciência e ter uma postura filosófica perante o seu partilhante e não somente compreender o método, o trilho e a estruturação da técnica em si. Então, no nosso curso, a gente fala muito da estruturação e da conquista gradativa da personalidade filosófica para que você possa ser um orientador filosófico, para que você possa ser e atuar como um filósofo clínico integral.

De que forma a filosofia clínica integral é aplicada na prática com fins terapêuticos?

A filosofia clínica integral se presta a trabalhar com todos os dilemas que são eminentemente humanos, com todos os dilemas que todo o filósofo já trabalhou. Então todos as áreas da filosofia – a ética, relativa aos processos deliberativos, a escolha dos valores, dos princípios, das virtudes – que vão nortear a sua conduta, o estudo dos afetos, o estudo das emoções. Infelizmente existem muitas pessoas que acham que o filósofo está despreparado para lidar com afetos. Isso é uma grande besteira, porque todos os filósofos que erigiram as bases civilizacionais do ocidente criaram obras-primas a respeito das emoções. As emoções estão em Platão, em Aristóteles, em Santo Tomás de Aquino, em Baruch de Espinosa, em Erich Vögelin… Lidar também com os afetos do partilhante é um dos objetivos da filosofia clínica integral. Ela praticamente não tem limites. Desde que o filósofo clínico integral tenha bom senso, responsabilidade e tenha honestidade de saber quais são os seus limites, porque nem todo filósofo clínico integral está capacitado para atender a todos os problemas.

Por que nem todo filósofo clínico integral está capacitado para atender a todos os problemas?

Por um motivo básico: para você desenvolver uma personalidade filosófica, é necessário ter algumas rugas e alguns cabelos brancos. Eu não acredito que alguém com 22 anos, recém-formado em psicologia, tenha capacidade de fazer atendimento para algumas pessoas já vividas, desgastadas pelo tempo. A experiência é absolutamente fundamental tanto na área da psicologia em si, da psicoterapia, quanto na área da filosofia clínica integral e da orientação filosófica. Somos francos defensores disso. Tanto é que, no nosso curso de formação, falo para as pessoas: “Olha, se você é um indivíduo que busca verdadeiramente o conhecimento, que está aberto, que quer estabelecer uma relação dialética com a realidade, este curso é para você”. A primeira coisa que pode acontecer é que você passará a se conhecer muito melhor. E se parar por aí, tudo bem. A segunda é que, se você é um advogado, um professor, uma psicopedagoga, uma enfermeira, vai aprender uma série de procedimentos e de abordagens que podem melhorar muito a sua capacidade profissional na sua referida área. E por último, pode ser o primeiro passo para, posteriormente, você adquirir consistência e competência para atuar na área da orientação filosófica de alguma pessoa que sofra os dramas da vida.

E no meio corporativo, de que forma a filosofia clínica integral contribui?

No meio corporativo, ela tem sido utilizada para fazer o pessoal pensar de forma mais reflexiva. É um mundo no qual a gente encontra muita pressão, em que muitos sistemas de crença imperam e condicionam as pessoas a tomarem decisões às vezes não muito abalizadas. Então, dentro do mundo corporativo, desde que se tenha boa vontade e desde que não se acredite que uma palestra de uma hora pode fazer com que todas as pessoas virem líderes e resolvam todos os problemas, ela pode ser extremamente útil.