A psicóloga Danielle Rossini, colaboradora do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso, ligado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, comenta o jogo patológico, transtorno que envolve um estilo de tomada de decisão impulsivo, em que as pessoas desenvolvem dependência por jogos de azar, embora tenham consciência de que se trata de um comportamento de risco.

Rossini tem graduação em Psicologia, pelo Centro Universitário UniFMU. É mestre em Ciências pelo Departamento e Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, onde coordena a área de neuropsicologia. Atua na área de psicologia, com ênfase em neuropsicologia, treino cognitivo e psicoterapia cognitiva.

Que dinâmica mental envolve o ato de colocar algo de valor em risco na esperança de ganhar algo de maior valor?

Um ponto que podemos salientar é a ideia de que jogo patológico envolve um estilo de tomada de decisão impulsivo, em que as pessoas entram na situação do jogo tendo consciência que é um comportamento de risco. O jogo, por si só, é envolvente, com suas características e nuances. Podemos considerar a dependência bastante complexa, com um emaranhado multifatorial, que se costura entre si para culminar na presença da patologia. Para tanto, partimos do princípio de que a compulsão por jogos é uma dependência comportamental. Ele compartilha várias caracteristicas biológicas e fenomenológicas com dependência de substâncias, no entanto, não é necessário o uso de substâncias para que se instale o quadro. É importante lembrar ainda que o distúrbio envolve elementos neurobiológicos. Isto é, temos um sistema de gratificação cerebral que fica no meio do cérebro e que envolve a regulação emocional e as memórias afetivas, por exemplo. Outro elemento envolvido nesse combo são os aspectos cognitivos. Para que esse comportamento se sustente, com evidentes características difuncionais, o indivíduo alimenta distorções cognitivas. O jogador patológico acredita que tem controle sobre o jogo, quando, na verdade, quando não há previsibilidade ou controle no jogo, sendo este totalmente aleatório.  O jogador, por exemplo, é guiado pelo elemento sorte. Também pode apresentar outras crenças distorcidas, como a ideia de que vale a pena persistir no jogo, já que não ganhou por pouco. Resumindo, ele acredita que pode lucrar com jogos de azar.  É importante lembrar, entretanto, que os jogos trabalham com principio de taxa de retorno negativa. Isto é, se a pessoa jogar ocasionamente, pode ganhar mais do que investiu. Mas, se ela for jogadora assídua, a chance de perder dinheiro é muito maior. O jogador não tem essa percepção, pois tem dificuldade de se embasar em fatos concretos.  Outro ponto interessante são os fatores ambientais. O ambiente pode ser facilitador: os indivíduos que viveram em ambientes como menor regulação emocional ou com características mais aversivas poderiam alimentar essa dependência. Para que a pessoa desenvolva o quadro, é necessário um determinado ambiente que permita a sua ocorrência. Há algumas legislações que proibem jogos de azar, como bingos e cassinos, mas ainda existem as casas de pocker. Ou seja, não precisamos estar expostos ‘in loco’, podemos jogar pela internet. Também há características que, quanto mais expressivas e intensas na consolidação da personalidade do sujeito, funcionam como facilitadores para fenomenologia do jogo patológico.

Características como impulsividade e necessidade de correr riscos foram encontradas em pessoas com jogo patológico…

A impulsividade e a busca de novidades são comportamentos bastantes paralisadores na dependência do jogo de azar. Usando conceitos de personalidade, observamos que a impulsividade e a busca de sensações novas fazem com que o indivíduo se envolva em vivências mais arriscadas. A impulsividade é um traço que pode estar presente em diferentes patologias. Podemos pensar que a impulsividade tem um ponto de um equilíbrio dinâmico. Quando ela se desiquilibra, a pessoa tende a apresentar comportamentos disfuncionais. A dinâmica da impulsividade está entre o mecanismo de aceleração e de freio. Se o sujeito tem um freio mais ineficiente, também pode buscar um escape para impulsividade. Se a pessoa é mais desejante por novidades, mesmo se possua um bom freio, este não é capaz de conter o impulso. Um estudo do psiquiatria Hermano Tavares [pesquisador do Instituto de Psiquiatria da USP] aborda o tripé de sustentação ideal para equilibrar e regular as expressões comportamentais. O primeiro pilar seria o sistema de regulação intelectual, que envolve o aspecto cognitivo. Isto é, pode ser descrito como a tendência a apresentar memórias aversivas ou enfatizar mais ganhos em relação às perdas, por exemplo. Outro pilar é a regulação afetiva, que mostra o quanto somos capazes de sustentar emocionalmente nosso sistema com qualidade. Será que somos capazes de manter sistemas de resfriamento para controlar nossos comportamentos ou vamos apresentar escapes? O terceiro pilar é o moral. Ele determina se a pessoa irá usar os freios morais de regras e valores, ou mesmo religiosos, para elaborar uma contenção para comportamentos impulsivos.

O jogo patológico compartilha de características comuns com a dependência de substâncias…O que caracteriza essa quadro?

No DSM -5, o jogo patológico vem no guarda-chuva de dependências por substâncias. Uma das características que essas dependências têm em comum é que o indivíduo tem consciência de que seu comportamento é nocivo, mas não tem controle sobre ele, embora o prejuizo fisico, social e financeiro seja evidente. Outro sintoma de dependência é a tolerância, ou seja, a pessoa precisa executar o comportamento com maior frequência e intensidade para ter o mesmo prazer que sentia no início. A patologia envolve também fissura, vontade, em outras palavras a pessoa é desejante daquele comportamento. O jogador patológico, assim como os demais dependentes, também apresenta abstinência. Alguns pacientes chegam a relatar sintomas físicos, como tremor, taquicardia, sudorese, etc, sendo muito frequentes alterações de humor. Além dessas características, as dependências partilham de alterações em algumas áreas cerebrais, como o sistema de gratificação, que são mais ativadas.

Existe a predominância de algum tipo de temperamento nos jogadores patológicos? Nesse caso, a predisposição para a dependência seria inata?

Em outro estudo, Tavares traçou uma comparação entre as características de comportamento entre jogadores patológicos, pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e voluntários livres de sintomas. Os jogadores patológicos tinham a característica da impulsividade exarcerbada. Além disso, eles também apresentavam esquiva ao dano, ou seja, tinham dificuldade de lidar com situações mais ansiogênicas, mais desconfortáveis. Eles começam a jogar por impulso e se mantêm jogando para não experimentar o desconforto de estar sem o objeto da dependência, há uma tendência a se esquivar daquilo que é percebido como algo negativo. Nos pacientes com TOC, essa esquiva ao dano também era bastante operante, mas com menor impulsividade. Nos voluntários sadios, esses traços eram mais equilibrados. Não se sabe se o temperamento inato ou precocentemente aprendido. Mas, se uma pessoa vive numa família em que algum dos seus membros apresenta o quadro, ela terá maiores chances desenvolvê-lo. Outros estudos ainda revelam que alguns alelos [formas alternativas de um mesmo gene que podem produzir fenótipos diferentes] poderiam ter relação com maior frequência de jogo patológico no ambiente familiar.

Embora, em média, as mulheres comecem o envolvimento no comportamento mais tarde na vida do que os homens, o tempo quadro entre iniciação e envolvimento problemático é encurtado. Por que isso acontece?

As mulheres desenvolvem de modo mais rápido a patologia do jogo. Isso é chamado de efeito telescópio. Elas são expostas mais tardiamente ao jogo, mas desenvolvem o transtorno com grande velocidade e intensidade. Esse fenômeno é visto em dependência de álcool, por exemplo. Há estudos da Mõnica Zilbermann e da Silvia Martins que apresentam esse fenômeno. A crítica que se faz em relação ao transtorno é que as mulheres elegem preferencialmente jogos potencialmente mais adictivos em relação aos homens, preferindo os jogos de máquinas, caça-níqueis e bingos. O lapso de tempo entre a aposta e a resposta do lance é mais rápido, o que faz como elas apostem cada vez mais um curto período de tempo. É diferente do jogo de poker e joquey, por exemplo.

Um estudo descobriu que indivíduos com jogo patológico e dependência de álcool mostraram déficits em tarefas de estimativa de tempo, inibição, flexibilidade cognitiva e planejamento. A Sra poderia comentar?

Quando temos pensar na hierarquia de quadros psicopatológicos, há aquelas condições mais brandas em relação às limitações da vida cotidiana. O impacto funcional de um quadro de jogo patológico é relativamente mais leve em relação à esquizofrenia, por exemplo. A maior parte dos estudos mostra que os jogadores patológicos apresentam alterações em funções emocionais de características mais complexas e em funções executivas. Há ainda o comprometimento da velocidade do processamento das informações, inibição, flexibilidade cognitiva e planejamento. Alguns outros estudos falam sobre tomada de decisão, memória operacional, controle inibitório, etc, afetados. É importante deixar claro que essa população não apresenta alterações nos testes clássicos de neuropsicologia, mas alguns testes computadorizados mais complexos podem acusar alterações.

As dependências podem ter influências específicas da estrutura do cérebro e seu funcionamento?

A bases neurológicas envolvem algumas estruturas subcorticais, que possuem projeções para áreas alto comando cerebral e que funcionam como gerentes do cérebro, levando informações importantes para as regiões frontal e pré-frontal. É como se eu estivesse como uma rodovia com muito fluxo, mas com buracos, portanto, há o comprometimento do sistema, com prejuízo da capacidade de planejamento, tomada de decisão, observação e percepção de detalhes, habilidade de frear o desejo diante de estimulos competetivos. Por exemplo: devo jogar ou pagar a escola para meus filhos? O cérebro é plastico, não se sabe se a estrutura se modifica à medida que se desenvolve a dependência por jogo. Os estudos mostram uma alta frequência de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em populações com a compulsão por jogos, já que partilha algumas características cognitivas e comportamentais com a dependência, tanto em relação à estrutura cerebral quanto à sua funcionalidade. Outro fator importante é que cerca de 40% da população de jogadores patológicos apresentam comorbidades. As alterações cognitivas não parecem ser melhor explicadas por esses sintomas disfóricos.

Estratégias comportamentais e de tratamento farmacológico para jogo patológico e dependência de substâncias também mostra semelhanças…A dependência é curável?

O jogo patológico não é curável. Trata-se de uma dependência comportamental. Há tratamentos mais efetivos, que valorizam abstinência total do jogo, com uma abordagem diferente da aplicada em relação à compulsão por comida, compras e internet. O que se sabe é que primeira aposta pode levar a retomada de um comportamento disfuncional. As abordagens baseadas em evidências associam a intervenção cognitiva-comportamental e, em geral, associados ao tratamento medicamentoso, voltado principalmente para comorbidades. Nesse caso, é importante ajudar o indivíduo a elaborar pensamentos mais funcionais, estratégias comportamentais de melhor enfrentamento de situações emocionais adversas, para que ele se exponha menos ao risco. Há medicações que agem diretamente no controle do impulso, que se mostram promissora no auxílio no manejo do jogo patológico, mas ainda precisam ser melhor estudadas. Embora não haja cura, já está estabelecido que é possível desenvolver um estilo menos disfuncional da dinâmica cerebral. No meu mestrado, avaliei características neuropsicológicas e de personalidade antes de depois da intervenção terapêutica. Todos pacientes alcançaram progressos. Os que participaram de programas como os psicoeducativos apresentaram evolução. Os que realizaram terapia cognitivo-comportamental (TCC) alcançaram uma melhora ainda mais robusta, sendo que a medicação é determinante na redução dos sintomas disfóricos. É possível melhorar a sintomatologia do jogo, o quadro de ansiedade, mas, principalmente, o padrão cognitivo em relação à tomada de decisão. Isto é, os pacientes que passaram pelo tratamento apresentaram decisões mais ponderadas. Trata-se de um comportamento aprendido a partir da psicoterapia, mas também pela possibilidade de organizar e elaborar as vivências. É possível regular melhor os gatilhos emocionais, entendendo mais profundamente as funções cognitivas envolvidas na dependência. Até mesmo aqueles que demonstram uma tendência neurobiológica para dependência, podem se beneficiar com algum tipo de mudança. Isso talvez se deva à plasticidade cerebral. Mas ainda é especulação e uma esperança. Sabemos, entretanto, que por meio do tratamento podemos ajudar essas pessoas a superar esse problema.