Freud falou a primeira vez sobre narcisismo em 1910 quando acrescentou nota de rodapé aos seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Nestes ensaios, ele dizia que os homossexuais “partem de uma base narcísica e procuram um rapaz que se pareça com eles próprios e a quem eles possam amar como eram amados por sua mãe”. Porém pouco tempo depois, o médico percebeu que o narcisismo se trata de um estágio comum no desenvolvimento sexual humano e em 1914 começa a falar do narcisismo enquanto conceito psicanalítico relativo ao desenvolvimento infantil e aos investimentos libidinais.

Investimentos libidinais e ego

Conforme Freud, os investimentos libidinais são direcionados aos objetos ou ao próprio ego. Quando a libido é investida no ego é chamada de libido do ego ou libido narcísica, quando é investida nos objetos é chamada de libido do objeto. A fase da infância anterior à formação do ego é caracterizada pela ausência de relações objetais. Nesta fase, chamada de fase anobjetal, todo o investimento libidinal do bebê é voltado para o próprio corpo; a esse estado de satisfação em si mesmo, Freud denominou narcisismo primário. Esse estado de perfeição e completude deverá ser interrompido para que a criança ascenda ao estatuto de sujeito.

A criança, exposta às exigências ambientais, perceberá com o tempo que não é tudo para a sua mãe, e a partir de então, o seu objetivo passará a ser fazer-se amar pelo outro, agradá-lo para reconquistar o seu amor. Desta forma, a criança entra no segundo estágio de narcisismo, denominado por Freud de narcisismo do ego ou narcisismo secundário.

Modelo anaclítico ou narcisista

Tanto os traços do narcisismo primário quanto os do narcisismo secundário constituem a personalidade e acompanham o indivíduo durante toda a sua existência. É a partir do olhar libidinizado da mãe que a criança se reconhece e se sente amada; e a partir de então, todas as suas escolhas objetais e realizações serão embasadas neste período no qual foi possível o desenvolvimento do amor por si mesma.

De acordo com Freud, existem dois modelos de escolha objetal, o anaclítico e o narcisista. O primeiro tem a mãe como modelo e é diretamente vinculado à satisfação de suas necessidades básicas e o outro toma a si mesmo como objeto amoroso. O narcisista, de acordo com Freud, “exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte do seu próprio narcisismo”.

A partir da breve explanação acima, pode-se então concluir que a mãe narcisista é aquela mulher voltada para si mesmo, a mãe que não prioriza o filho e seus desejos, mas sempre a si mesma e os próprios desejos. Trata-se de uma mãe que quer estar sempre em evidência e que cobra dos filhos admiração, devoção, idolatria e servidão e caso não receba o que quer de maneira suficiente, pode vir a manipular, desprezar e diminuir o outro, neste caso, o filho.

Manifestação da existência

A mãe narcisista não deixará de sê-lo, a menos que consiga olhar para si mesma através de psicoterapia. O ideal não é esperar que a mãe se modifique, mas sim que o filho aprenda a lidar com esta mãe, consigo mesmo e busque a própria autenticidade sem culpa com a ajuda de um psicoterapeuta.

Numa perspectiva daseinsanalítica, mãe narcisista é apenas o rótulo de uma possibilidade de existir, ou seja, trata-se apenas da manifestação da existência de um ser humano. Obviamente seu modo de existir reverberará no modo de ser e existir das pessoas com as quais convive, inclusive nos filhos.

Em primeiro lugar, podemos pensar que este modelo de mãe afeta o poder-ser do filho, visto que de acordo com esta, seu filho precisa seguir aquilo que ela deseja, precisa ser aquilo que ela quer que ele seja e não o que ele realmente é. Trata-se de uma mãe que diminui tudo aquilo o que é diferente do que ela deseja e, portanto, faz com que o filho não consiga exercitar sua autenticidade e com que se sinta diminuído quando não atende às expectativas dela.

Apropriação de si

Para Heidegger, a autenticidade se trata da apropriação de si, é a singularização da existência, é a abertura real para diversas possibilidades. É através da apropriação que se pode viver uma vida mais completa de sentido e responsabilidade. De acordo com o filósofo, o ser livre e ser capaz de uma vida autêntica são fatores essenciais ao ser humano, visto que a ausência de liberdade torna impossível tanto a realização humana quanto uma existência repleta de sentido. O ser humano, sempre mediado pelo seu passado, deve “saltar” de sua condição cotidiana para atingir seu verdadeiro “eu”, visto que os aspectos cotidianos fazem com que a existência se apresente de forma inautêntica, marcada por três características: a facticidade, a existencialidade e a decadência.

A facticidade está relacionada ao fato de o ser humano ter sido “jogado no mundo” sem que isso tenha sido escolha própria. A existencialidade está relacionada à antecipação das possibilidades, objetivação daquilo que ainda não é. Já a decadência se manifesta quando “as preocupações cotidianas da existência inautêntica o desviam do seu projeto essencial, alienando-o da tarefa principal de tornar-se ele mesmo. A decadência dissimula e recalca existencialmente a autenticidade do ser-si-mesmo”. Portanto, o filho de uma mãe narcisista é privado da liberdade de escolha existencial; para ele, o mundo no qual ele existe já está pronto e acabado e a ele resta apenas repetir o feito.

Não é à toa que observamos que filhos de mãe narcisistas estão sempre buscando a valorização do outro, esperando a autorização do outro para ser. Existe para estes indivíduos a necessidade da confirmação do outro de que estão agindo da maneira esperada e adequada, ainda que inautêntica. É difícil para estas pessoas dizer não e deixar de corresponder às expectativas do outro, pois desta forma, se sentirão reprovados,  rejeitados e lidar com a rejeição não é fácil para eles.

E mais…

Há novas formas de se relacionar com o mundo e consigo mesmo

O filho de uma mãe narcisista não está fadado a ser um ser decadente até seu último dia, uma vez que existe a possibilidade de abertura deste ser para novas formas de se relacionar com o mundo e consigo mesmo, existe ainda a oportunidade de se lançar no seu próprio íntimo, nas peculiaridades da sua própria existência e na mais intrínseca relação com o mundo.

É importante ressaltar que de nenhuma forma devemos julgar a mãe rotulada como narcisista, visto que esta é a forma de existir que este ser humano encontrou, levando em conta seu cotidiano, suas experiências e sua historicidade. O que recomendo aos filhos destas mães é que avaliem a reverberação dos comportamentos desta em si mesmos e busquem a própria autenticidade e uma maneira de existir mais plena de sentido com a ajuda da psicoterapia.

REFERÊNCIAS
Freud S. Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade [1905]. Em: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1a ed. Rio de Janeiro: Imago; 1972. p. 123–33.
Araújo M das G. Considerações sobre o narcisismo. Estud Psicanálise –. 2010;(34):79–82.
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Golin MF, Pereira CC, Piveta CCA de C, Bervique J de A. Autenticidade, Angústia e Decadência em Martin Heidegger. FAEF – Rev Científicas Eletrônicas. 2013;16ª ed:1–10.
Bicca L. Ipseidade, angústia e autenticidade. Rev Síntese.. 1997;87(24 (76)).