De acordo com a médica psiquiatra da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo, Aline Sabino, o TAB pode se manifestar em qualquer fase da vida mas, na maioria dos casos, a idade de início varia entre 15 e 25 anos, sendo os adultos jovens os mais afetados. Há grande variabilidade nos sintomas e no impacto no funcionamento e qualidade de vida do paciente, porém a idade inicial do transtorno pode estar relacionada à maior gravidade de quadro clínico e prognóstico.

Considerado um transtorno de humor crônico, caracterizado por alternância entre extremos de euforia e tristeza, chamados de fases hipomaníaca ou maníaca e depressão, o Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) chega a interferir significativamente nas relações, nas capacidades e na qualidade de vida dos indivíduos que, às vezes, pode manifestar sintomas psicóticos. Esta variação ocorre no período de dias ou semanas e, em alguns casos, até mesmo em intervalos de horas, sendo geralmente de manifestação desproporcional em relação a qualquer evento.

Nesta entrevista, ela fala sobre as classificações em tipo 1 e tipo 2 e respectivas características, preconceitos relacionados ao transtorno e explica porquê a infecção por Covid-19 pode contribuir para o agravamento do TAB.

O TAB pode ser classificado como tipo 1 ou 2. Qual é a principal peculiaridade entre esses dois tipos?

O TAB tipo 1 é caracterizado por predomínio de períodos de mania e de depressão mais leve ou estados mistos (com depressão e sintomas maníacos ao mesmo tempo). A mania é um estado emocional de elevada autoestima, com de aumento da energia e da atividade, redução da necessidade de sono e desinibições do comportamento, como fala e gastos excessivos, sociabilidade e familiaridade exagerada com as pessoas, indiscrições sexuais, inquietação, manias de grandeza, podendo haver também agressividade. É esperado problemas no trabalho, relacionamentos, necessidade de internação, e sintomas psicóticos.

A depressão pode ter períodos de longa duração e se caracteriza por diminuição da energia e da atividade, perda de interesse, sentimento de culpa e inutilidade, fadiga, alteração de sono, perda de interesse sexual. O primeiro episódio maníaco, necessário para concretizar o diagnóstico, é frequentemente precedido por um ou mais episódios depressivos. No TAB tipo 1 não há diferenças significativas entre os sexos.

No TAB tipo 2, há predomínio da fase depressiva, com mania mais leve, chamada de hipomania.

A hipomania é um estado mais leve de euforia, com excitação, otimismo, acompanhado de humor persistentemente elevado ou irritável, mas sem prejuízo maior para o comportamento. No TAB tipo 2 há uma relação de três mulheres afetadas para cada homem, e no primeiro episódio, os sintomas maníacos são mais frequentes em homens, enquanto os depressivos, em mulheres.

Existe uma causa para o surgimento do distúrbio?

A fisiopatologia do TAB é ainda pouco compreendida, porém acredita-se que esteja associada a fatores genéticos e/ou neurobiológicos. Reconhece-se a relevância da contribuição genética, sendo descrita hereditariedade de até 85%.

As teorias neurobiológicas iniciais focaram-se principalmente no desequilíbrio do sistema de transmissão das aminas biogênicas, distribuídas no Sistema Límbico, em especial o sistema monominérgico composto pela Noradrenalina, a Serotonina e, em segundo plano, a Dopamina. Contudo, os modelos focados em um único neurotransmissor não conseguem explicar a heterogeneidade da apresentação e do curso clínico do transtorno, sugerindo que a inter-relação entre múltiplos sistemas poderia estar comprometida nos portadores de TAB. Mais recentemente, vem sendo estudado o papel das alterações do sistema imune, principalmente citocinas, na patogênese de TAB.

Como se dá a crise?

A crise maníaca é um estado de intensa euforia, havendo inquietação, mania de grandeza, diminuição da necessidade de sono, aumento da disposição e da energia para realizar atividades. Pode ocorrer desinibições e indiscrições sexuais, gastos excessivos e desnecessários, fala excessiva, perda de controle do impulso,  pensamento com fuga de ideias, heteroagressividade verbal e/ou física e agitação psicomotora.

A crise depressiva é o polo diretamente oposto ao da mania. Caracteriza-se por humor depressivo (tristeza), perda ou diminuição do prazer e interesse, sentimento de culpa, alteração de sono, sendo comum o despertar precoce pela manhã, prejuízo na capacidade de concentração e na memória, fadiga e também perda do desejo sexual.

É comum haver uma referência pejorativa a esse transtorno. De que maneira isso compromete o entendimento que se tem sobre o tema?

O estigma e a referência pejorativa são decorrentes da falta de informação e provocam preconceito e banalização, dificuldade no acesso e nos resultados do tratamento. Podem variar muito de acordo com o ambiente cultural em que o indivíduo se insere. Na sociedade americana, em que a produtividade e o consumo são mais valorizados, as manifestações maníacas são mais bem toleradas, enquanto no Brasil, os estados depressivos despertam mais tolerância e empatia. Considera-se que houve uma atenuação do estigma em relação ao passado, porém ele permanece muito significativo no campo do trabalho através de discriminações que dificultam o ingresso ou manutenção de posição no mercado de trabalho.

Outro prejuízo é a banalização, na qual as pessoas adotam o diagnóstico do transtorno bipolar e o conhecimento científico para entender ou explicar seus problemas e suas experiências pessoais ou patológicas demandando intervenções médicas desnecessárias (medicalização).

Quais riscos o TAB traz para a pessoa?

Os riscos são variados e podem ser avassaladores. Podem incluir dificuldades de conviver em sociedade, dificuldade de encontrar e/ou manter um parceiro amoroso ou um trabalho. A recuperação funcional está muito aquém da recuperação dos sintomas, em especial em relação à recuperação do funcionamento profissional, resultando em condição socioeconômica inferior, apesar de níveis equivalentes de educação,

No polo maníaco, a pessoa pode fazer compras desnecessárias e criar dívidas para si ou terceiros, perder bens, pode se envolver com múltiplos parceiros, ter relações sexuais desprotegidas, desrespeitar autoridade, se envolver em discussões. Na depressão, prejuízos cognitivos, desemprego e suicídio são frequentes.

Algumas vezes uma internação é necessária para preservar a integridade do paciente e seus familiares.

Além de impactar o sistema nervoso, o transtorno bipolar também traz comprometimento sistêmico – o que isso significa?

O transtorno bipolar representa um grande problema de saúde. Apesar do grande avanço no arsenal farmacológico disponível para controle dos sintomas, ainda é um desafio encontrar bons desfechos sociais, lidar com os sintomas subsindrômicos e melhorar o manejo da manutenção. Os efeitos colaterais decorrentes de alguns medicamentos somado a hábitos de vida inadequados, como o sedentarismo e o consumo de alimentos industrializados, com alto teor de gordura, conservantes e açúcares, aumenta o risco de desenvolver doenças crônicas como hipertensão arterial, diabetes, dislipidemia, obesidade e outras doenças incapacitantes ou letais como infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral.

Como é o tratamento para o transtorno bipolar?

O tratamento deve ser personalizado e incluir, além da participação da família, diversas terapias farmacológicas e não-farmacológicas. As mais recomendadas são:

Mudanças no estilo de vida: evitar uso de álcool e drogas, praticar atividade física, evitar privações de sono.

Medicamentos: a escolha deve se basear na história médica do paciente, relato de efeitos adversos significantes, as interações medicamentosas, e a gravidade dos sintomas. Os principais fármacos utilizados para tratamento são o carbonato de lítio e o ácido valpróico, chamados de estabilizadores de humor. Antipsicóticos de segunda geração como olanzapina e quetiapina, também são muito úteis e podem ser utilizados tanto para controlar sintomas de uma determinada fase do transtorno como na fase de manutenção como  estabilizadores de humor. Os ansiolíticos como clonazepam, diazepam, lorazepam, são utilizados para manejo de sintomas agudos de ansiedade e agitação. Nos casos mais graves, medicamentos intramusculares como haloperidol e prometazina podem ser necessários para manejo de uma agitação perigosa.

Psicoterapia: Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é uma terapia breve e estruturada, orientada para a solução de problemas, que envolve a colaboração ativa entre o paciente e o terapeuta para atingir objetivos estabelecidos. Com a terapia, busca-se facilitar a aceitação e a cooperação com o tratamento, ajudar o paciente a lidar com sintomas e problemas, ensinar técnicas para monitoramento e reconhecimento rápido de recaídas e questões sobre a regularidade do modo de vida, ajudar o paciente a lidar com o estigma e traumas decorrentes do transtorno.

Grupos de mútua ajuda e Psicoeducação: existem grupos de pessoas portadores de TAB que realizam encontros e se auxiliam  nas dificuldades associadas à doença, educam familiares e pacientes e cooperam de diversas maneiras aumentando a rede de proteção entre eles e diminuindo o estigma relacionado ao transtorno.

Quais os desafios a pandemia trouxe para esses pacientes?

É importante salientar que pessoas com transtornos mentais, incluindo aquelas que fazem uso abusivo de álcool e drogas, têm um risco aumentado de apresentarem crises emocionais ou transtornos mentais em decorrência da pandemia. A pandemia causou um isolamento que levou a sensação de medo, solidão, além de uma dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Isto gerou uma mudança no comportamento, alteração no padrão de sono e apetite, sedentarismo, uso abusivo de álcool e drogas. O convívio prolongado dentro de casa, somado à sobrecarga das tarefas domésticas e a mudança na rotina dos filhos gerou desajustes na dinâmica familiar aumentando os conflitos e os episódios de violência, principalmente nos casos de existência prévia de relações abusivas. O desemprego e o medo das reduções econômicas aumentaram ainda mais esta tensão que, em alguns casos, somado a morte de entes queridos em curto espaço de tempo, com dificuldades para realizar rituais de despedida, levou a um nível de estresse que descompensou os quadro psiquiátricos e até mesmo precipitou em algumas pessoas que nunca haviam manifestado sintomas comportamentais.

Amostras de pacientes com Covid-19 tiveram alterações na expressão de genes que estão associadas a doenças neuropsiquiátricas, como o transtorno bipolar. O que isso significa? (link do estudo: https://www.ufrgs.br/coronavirus/base/pesquisadores-da-ufrgs-identificam-alteracoes-moleculares-na-covid-19-associadas-a-doencas-neuropsiquiatricas/)

A Covid-19 tem sido associada a uma doença sistêmica que afeta muito além dos pulmões. Sabemos que o vírus invade o organismo ligando-se aos receptores da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), que é encontrado no pulmão, no cérebro e em outros órgãos. O vírus pode afetar o cérebro de duas maneiras. Uma delas através da invasão direta do vírus pela cavidade nasal e rinofaringe ou pelo sangue atravessando a barreira hematoencefálica. Outra maneira é através da ativação do sistema imune por um mecanismo que se chama priming. Em linhas gerais, priming significa que a pré-disposição da pessoa e a exposição do organismo a Covid-19 potencializa a resposta do sistema imunológico a um estímulo em cascatas de mudanças funcionais e morfológicas nas células. Essas mudanças têm efeitos comportamentais e cognitivos e, por esta razão, há aumento no risco do surgimento ou agravamento de transtornos mentais como demência, transtorno bipolar, depressão e outros após a infecção por Covid-19.