A vida profissional de Guido Palomba é inteira dedicada à Psiquiatria Forense, área em que atua desde 1974, quando ainda era estudante de Ciências Médicas, em Santos. Hoje, com mais de 15 mil laudos redigidos e guardados em papel e no computador, perícias cíveis e criminais realizadas em praticamente todas as comarcas do Estado de São Paulo, ele é a referência por trás da série de Bráulio Mantovani, Mal Secreto, prevista para ser gravada pela Globo ainda esse ano.
Não é por menos. Palomba foi estagiário do Hospital Psiquiátrico do Juquery, considerada uma das mais antigas e maiores colônias psiquiátricas do Brasil, localizada em Franco da Rocha. Formou-se, em 1974, pela Faculdade de Ciências Médicas de Santos e especializou-se em psiquiatria forense com título reconhecido pela Associação Médica Brasileira, Associação Brasileira de Psiquiatria e Sociedade Brasileira de Medicina Legal. Foi médico e médico-chefe do Manicômio Judiciário de São Paulo (1975-1985).
Tanta experiência faz dele um crítico obstinado da atual Psiquiatria Ocidental, a qual ele acusa de estar em franca decadência. A ponto de impulsioná-lo a escrever o livro, “A Decadência da Psiquiatria Ocidental” (prelo), previsto para sair ainda esse ano.
Nesta entrevista, ele fala sobre a área e o que mudou nestes anos de atuação, critica, entre outras coisas, as classificações internacionais de doenças, como a CID-10 e a DSM-5, e explica porquê não é favorável à Lei Antimanicomial. Leia a seguir:
- Como se deu a sua trajetória profissional?
Estagiei no Hospital Psiquiátrico do Juquery antes de me formar e depois trabalhei lá continuamente por 10 anos. Foi lá onde, profissionalmente, nasci, troquei meus primeiros passos, foi onde aprendi a andar sozinho e foi também meu santuário. Nunca deixei de fazer Psiquiatria Forense e continuo aprendendo com os casos em que trabalho. Aliás, o aprendizado ininterrupto é o que considero o grande estímulo da especialidade.
- Dê um exemplo de um desses aprendizados:
Quando eu penso que mais de 15 mil laudos redigidos e guardados em papel e no computador me atestam que já vi de tudo, tem casos que surpreendem absurdamente. Mas preciso deixar claro que não gosto do crime, da agressão. O que me intriga e me surpreende é a deformidade psicopatológica. E para lidar com isso é preciso muita base para construir toda a estrutura da psicopatologia, inclusive conhecimentos de Filosofia e Teologia.
- Entendo que a abordagem filosófica faz você ampliar sua visão de mundo e refletir sobre outros pontos de vista. Mas como a estrutura da psicopatologia tem a ver com a Teologia?
Da mesma forma que a Filosofia ilumina a Ciência, que no meu caso é a Psicologia e a Psiquiatria, a Teologia ilumina a Filosofia. Assim, se você, por exemplo, é um dualista, pode ser que entenda o ser humano como Freud, um idealista que achava que a doença mental é causada por um problema mental. Ao contrário, se você é um aristotélico tomista, que é o meu caso, possivelmente entende o corpo e a psique como substâncias: não há nada corpóreo que não tenha na mente e vice versa e, por isso, o problema mental também é um problema orgânico. Além disso, há os organicistas puros, aqueles que não acreditam na alma (ou psique) e são ateus. Tudo isso pode trazer informações importantes na hora de analisar uma estrutura psicopatológica.
- O que mudou na área desde o início da sua carreira?
Ainda que eu aprenda constantemente, o que eu vejo, atualmente, é uma extraordinária decadência da Psiquiatria, que não condiz com as mudanças do século XXI. A Psiquiatria está dominada pelos psicofármacos. O psiquiatra do século XXI acredita que o ser humano como um amontoado de neurônios, banhados por neurotransmissores, que precisam ser regulados por remédios. Hoje, vendem-se mais antidepressivos que pomada para assadura e antibiótico, muito por conta da influência do marketing pesado das indústrias. Quero deixar claro que não tenho nada contra a indústria ou o capitalismo, mas hoje, os psiquiatras do século XXI receitam antidepressivos para parar de fumar, para emagrecer, para tensão pré-menstrual e se uma pessoa tiver triste porque perdeu um ente querido e for num consultório, certamente sairá de lá com o diagnóstico de bipolar e uma receita na mão.
- E no caso específico da Psiquiatria Forense, essa decadência também é percebida?
A Psiquiatria Forense está na mão de psiquiatras clínicos improvisados – e há uma diferença brutal entre esses dois profissionais. Eu, por exemplo, não sei receitar, não faço atendimento. Na Psiquiatria Forense, como falta formação ou os especialistas são em número insuficiente, as autoridades constituídas nomeiam psiquiatras clínicos. Essa decadência, a meu ver, tem a ver com as classificações internacionais, como a CID e o seu arremedo, o DSM-5, que são mal feitas e sem nenhuma base científica.
- Como seria, na sua opinião, a maneira correta de classificar essas doenças?
A CID e a DSM-5 classificam as doenças mentais com base de um questionário ou protocolo – que funciona mais ou menos assim. Diante de uma pessoa com um possível transtorno alimentar, pergunta-se para ela quantas vezes na semana ela se olha no espelho, quantas vezes se compara com o corpo de outra pessoa e quantas vezes subiu na balança. Ao somar todas as respostas e compará-las a um padrão qualquer, a pessoa pode ser diagnosticada com bulimia nervosa. Isso lembra, com todo o respeito, aos questionários das revistas de bancas que adolescentes respondiam para saber se o amor era correspondido. Esse método de classificação só é possível com a morte da Psicopatologia.
- De que maneira isso acontece na prática?
Para definir se uma pessoa tem distúrbio de pensamento, por exemplo, é preciso saber qual tipo de distúrbio de curso (que pode ser acelerado, lento, desagregado, com fuga de ideias ou prolixidade) apresenta, pois cada um deles levará para um determinado tipo de diagnóstico. A desagregação leva para a esquizofrenia, a prolixidade pode levar para a epilepsia, a fuga de ideia pode levar para distúrbio grave bipolar ou psicose maníaco-depressiva. Além disso, o distúrbio de pensamento também se manifesta de outras formas, como distúrbio de conteúdo (com ideias dominantes, ideias deliroides, ideias fixas), e assim por diante. Por isso, hoje é comum pessoas receberem o diagnóstico de distúrbio bipolar quando, na verdade, é esquizofrênico gravíssimo. A Psicopatologia não é interpretativa e está onde está a verdade clínica. O que aconteceu foi que acabaram, lacearam o diagnóstico e, hoje, vemos aberrações, como uma pessoa triste porque perdeu alguém sendo diagnosticada com transtorno bipolar ou psicose maníaco depressiva gravíssima que não tem cura e assim por diante.
Até por esse motivo escrevi meu novo livro, no prelo, “A Decadência da Psiquiatria Ocidental”. Tenho uma curiosidade a dizer sobre o processo de desenvolvimento deste livro. Eu me sentia isolado, sendo a voz solitária que falava mal dos antidepressivos. O meu livro já estava em andamento, até que tive acesso a um estudo de um médico dinamarquês, Peter Gotzsche, ‘How to Survive in an Overmedicated World’. Ele é um dos fundadores do Centro Nórdico de Colaboração Cochrane (Copenhaguen), uma organização que é um dos pilares na área da medicina baseada em evidências. Gotzsche, como eu, também afirma que estamos vivendo uma pandemia de fármacos. Não existe mais Psicologia. O ser humano não é mais um ser biopsicossociocultural, ele é um amontoado de neurônio que precisa de regulador. Não dá para ignorar a cultura e o meio que o ser humano está inserido, ainda mais quando se fala de doença mental.
- O senhor também critica a Lei Antimanicomial…
Eu vivi intensamente o Movimento Antimanicomial, que começou na Itália com uma lei em Trieste, pela qual se determinou que doença mental não existe – e, se não existe, não pode existir manicômio ou hospital psiquiátrico. Esse cenário levou em consideração estudos do psiquiatra sul-africano, David Cooper, segundo o qual todo ser humano está cumprindo um papel: você é a entrevistadora, eu sou entrevistado, e o esquizofrênico é um esquizofrênico, ainda que a gente não goste. Mas isso é um erro sem fundamentação prática: a esquizofrenia pressupõe uma ruptura com a realidade, com delírios, alucinações e isso precisa de tratamento porque a pessoa sofre e faz os outros sofrerem. O que eu afirmo é que nenhum médico na face na Terra, que seja bem formado, quer internar um paciente, mas o faz quando é preciso: no caso de uma pessoa atropelada, ou que sofreu um AVC ou que não consegue respirar. Muitas vezes o tratamento da doença mental precisa da internação. Como tratar um alcoólatra ou um toxicômano ou um doente mental em crise sem internação? O Movimento Antimanicomial foi significativo porque denunciou o que estava ruim. Mas não devemos fechar um hospital porque ele não possui equipamentos ou equipe adequada. Precisamos melhorá-lo. Hoje, o que temos são médicos dizendo que pacientes em crise precisam ser cuidados em casa. O que é um absurdo.
- Na sua opinião, a pandemia tende a agravar as questões de saúde mental?
Não tenho palavras para expressar o que passa na minha cabeça neste momento, quando o que as pessoas precisavam era de bons exemplos e uma boa campanha de vacinação em massa. Estamos na reta final deste episódio, mas é o momento, talvez, mais delicado de toda essa situação, que exige cuidado redobrado de toda a sociedade. Mas quando a gente vê autoridades incentivando a tomar cloroquina, uma medicação que toda a comunidade científica diz que não serve para nada, ou incentivando o não uso da máscara e preferindo a aglomeração, isso faz um mal danado, inclusive para quem está fazendo tudo direito. Certamente que isso faz mal para os psiquismos individuais. Precisamos resistir a tudo isso e redobrar os cuidados até que a vacina chegue a todos e todas para, então, finalmente, corrermos para o abraço.