A cultura do corpo esbelto difundiu um ideal de perfeição inatingível e fez dela algo a ser incansavelmente perseguido. O alimento, portanto, é ora inimigo e fonte de angústia, ora fonte de prazer e desejo irrefreável. Essa relação problemática com a comida é comentada pelo psiquiatra José Carlos Appolinário, professor e coordenador do Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares (GOTA), do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

Segundo Appolinario, os transtornos alimentares são muito influenciados pelos genes. A mulher seria o lado mais frágil dessa relação com a comida. Isso porque ela se tornou prisioneira de um padrão de beleza nunca alcançado.  Os rituais de beleza se sucedem numa busca que jamais termina. O psiquiatra questiona essa lógica, que permitiu que alimentação, uma atividade social cheia de conotações, se tornasse fonte de complicações na nossa sociedade.

A anorexia nervosa é marcada por uma dieta restritiva, com a eliminação de alimentos considerados “engordantes”, como os carboidratos, que são considerados inimigos. É a fome autoimposta. Geralmente, o paciente possui uma distorção da imagem corporal. O medo de engordar é um traço comum. O padrão alimentar vai se tornando cada vez mais secreto e muitas vezes até assumindo rituais estranhos de alimentação.  A pessoa que sofre de anorexia nervosa passa a viver exclusivamente em função da dieta e do cuidado exagerado com a forma física. Seu interesse restrito pode levar a um isolamento social.

A desnutrição causada pela purgação pode resultar em anemia, alterações endócrinas, osteoporose e alterações hidroeletrolíticas, especialmente hipocalemia, que são níveis de potássio muito baixos no sangue, e que pode levar a arritmia cardíaca e morte súbita, entre outros problemas.

Já a bulimia nervosa é um transtorno característico das mulheres jovens e adolescentes que ingerem uma grande quantidade de alimentos a um só tempo. Há a sensação de falta de controle sobre o seu próprio comportamento. O ato de comer, nesse caso, é fonte de prazer. O episódio de compulsão alimentar é o sintoma principal e costuma surgir no decorrer de uma dieta para emagrecer. A pessoa se alimenta em exagero, depois usa métodos de purgação para aliviar a sensação desagradável provocada pelo excesso de comida e medo de engordar.

O comer excessivo gerado pelo impulso provoca sentimentos negativos, como frustração, tristeza e ansiedade. Os episódios ocorrem às escondidas na grande maioria das vezes e são acompanhados de sentimentos de vergonha, culpa e de autopunição. O vômito autoinduzido é frequente. No começo, a paciente necessita de manobras para induzir o vômito, como a introdução do dedo ou algum objeto na garganta. Algumas pessoas podem apresentar até ulcerações no dorso da mão pelo uso da mão para induzir o vômito. Com o tempo, elas aprendem a vomitar sem precisar de estimulação.

No transtorno de compulsão alimentar, não há medidas radicais para evitar o ganho de peso. O transtorno de compulsão alimentar é caracterizado pela frequente associação com a obesidade. O tratamento deve envolver uma orientação dietética adequada com refeições regulares e psicoterapia. Ainda podem ser prescritos medicamentos como antidepressivos e agentes usados no tratamento do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, dentre outros.  

É frequente associação dos transtornos alimentares e outros quadros psiquiátricos, como transtornos do humor, transtornos de ansiedade ou transtornos de personalidade, com associação dos sintomas, complicando a evolução clínica.

Quais os transtornos alimentares?

O DSM-5, de 2013, considera os transtornos centrais, a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e o transtorno de compulsão alimentar. No entanto, sabemos que há ainda a síndrome do comer noturno, transtornos de purgação, transtornos alimentares da infância e adolescência, transtorno alimentar evitativo restritivo. Esse último pode ser tão grave que impacta no desenvolvimento saudável da criança.

A obesidade é um transtorno alimentar?

A obesidade é uma doença clínica em que há um consumo de alimentos superior ao gasto energético. Trata-se de um quadro multifatorial, que envolve aspectos genéticos, ambientais e comportamentais. É importante lembrar que esses fatores comportamentais são muito relevantes na manutenção e desenvolvimento da obesidade.

Como explicar a relação doentia com a comida?

Os casos estão associados à predisposição genética e fatores relacionados ao ambiente. Essa cultura do corpo perfeito, da difusão do veganismo, do incentivo ao consumo dos produtos diet e light, da prática exagerada de atividade física podem servir de gatilho para o desenvolvimento de transtornos alimentares. Há uma exposição maior da mulher, especialmente as mais jovens, que podem desenvolver comportamentos alimentares anormais, levando ao descontrole. Elas podem empregar métodos compensatórios, como vômito induzido, uso de laxantes e diuréticos e atividade física excessiva.

Então esses transtornos têm a ver com a cultura do esbelto?

Não tem a ver somente com a cultura do esbelto, também depende de predisposição genética.

Há uma relação entre a personalidade os transtornos alimentares? A anorexia nervosa estaria mais ligada à personalidade controladora e cautelosa, enquanto a bulimia nervosa acomete pessoas impulsivas?

Não ocorre necessariamente assim. Existe uma tendência de um tipo de personalidade ser mais predominante na anorexia, é um perfil mais fóbico, restritivo, introvertido e obsessivo. Por outro lado, a personalidade presente na compulsão alimentar é caótica e impulsiva. Esse perfil de personalidade predominante em cada transtorno é somente uma hipótese, pois nem sempre acontece dessa forma. Uma prova disso é que existem quadros de anorexia que se convertem em bulimia, e o contrário também. Portanto, não existe um perfil que seja rigorosamente estabelecido.

A genética então predispõe ao transtorno?

Estudos em gêmeos atestam que se um dos pares apresenta um dado transtorno alimentar, como anorexia, a tendência é que o outro também desenvolva esse quadro. Poderíamos levantar a hipótese de que os gêmeos teriam hábitos alimentares similares, já que cresceram na mesma família. Mas pesquisas também foram realizadas em gêmeos adotivos, o que demonstra que gêmeos criados por famílias diferentes também podem desenvolver concomitantemente o transtorno. Esses estudos levam à conclusão de que o distúrbio tem uma influência genética.

Por que a mulher é o lado mais frágil nessa relação problemática com a comida?

As mulheres estão mais expostas tanto por predisposição genética quanto por exposição a fatores de risco, como a preocupação exacerbada com a forma corporal, a prática de dietas muito restritivas e excesso de atividade física. Mas os transtornos também estão muito presentes em determinadas profissões, que são grupo de risco, como atores, modelos, bailarinas, profissionais da moda, jóqueis, entre outras, que apresentam preocupação excessiva com a forma física. 

Há relatos de pessoas em comunidades na internet que são levadas a jejuar o máximo de tempo possível…

Existem sites como o Pró-Mia e o Pró-Ana desenvolvidos por pacientes mais graves que não admitem tratamento e incentivam e ensinam o uso de práticas compensatórias, como o uso de laxantes, diuréticos etc. Eles incentivam as pessoas a jogar comida fora e a vomitar para não ganhar peso. Mas o acesso à internet também tem um lado positivo no tratamento de pacientes, por exemplo, a oferta de terapias on line e a difusão de informações para prevenção desses transtornos. Trata-se de uma forma viável de oferecer ajuda a quem sofre de transtornos alimentares.

Os transtornos alimentares têm a ver com um ideal de perfeição?

Há vários casos de artistas e modelos que morreram por um ideal de perfeição. Mesmo no Brasil algumas celebridades declaram possuir transtornos alimentares. O caso mais recente é da atriz Cleo Pires, que alegou apresentar bulimia, sofrendo com o distúrbio.

Como o papel dos pais quanto à educação alimentar das crianças? Há pais muito severos e há pais muito complacentes…

Não existe uma indicação ideal. Os pais devem acompanhar a educação alimentar dos filhos, que precisam de alimentação adequada. Existem os dois polos, às vezes os pais são veganos, adeptos de uma dieta muito restritiva, ou comem demais. É preciso observar determinados sintomas, como emagrecimento e atividade física excessiva. O adolescente pode evitar a alimentação ou ir para o banheiro logo após a refeição. Tudo isso deve ser observado para o encaminhamento do filho ao tratamento.

O Sr está se dedicando a alguma pesquisa atualmente?

Nosso grupo está trabalhando numa pesquisa epidemiológica, avaliando os comportamentos alimentares da população na cidade do Rio de Janeiro, assim como a presença de transtornos alimentares, como compulsão alimentar e bulimia nervosa. Avaliamos o peso, assim como a presença de depressão e ansiedade nesses quadros. Estamos também avaliando a eficácia de algumas espécies de tratamento desses transtornos.