De acordo com o levantamento ‘Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil’ (Datafolha), encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 4,3 milhões de brasileiras de 16 anos ou mais (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes em 2021. Isso quer dizer que, a cada minuto, oito mulheres apanharam no país durante a pandemia do novo coronavírus.
O aumento da violência contra mulheres no período da crise sanitária é tema aprofundado nesta entrevista pela psicóloga Junia de Vilhena. Ela possui graduação em psicologia pela George Washington University (Estados Unidos), mestrado em ciências sociais pela Catholic University of America (EUA) e doutorado em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professora associada aposentada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde coordena o Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (Lipis).
Junia é uma das organizadoras, junto com a psicóloga Joana de Vilhena Novaes, da coletânea ‘O corpo que resta… Corpo, luto e memória’, publicada pela editora Appris. Na obra, ela também assina o capítulo ‘Silenciando o corpo feminino: considerações sobre o não sexual do estupro’.
Por que se tornou psicóloga e como se voltou para o trabalho na área social?
Iniciei meus estudos, ainda fora do Brasil, na área de ciências sociais. A partir daí, surgiu o desejo de entender o sofrimento humano mais voltado para uma perspectiva individual, então a escolha pela psicologia e, mais adiante, pela psicanálise. Assim, o retorno para a área social nada mais é do que um desejo que sempre se manifestou desde que ingressei na faculdade. Do ponto de vista de minha socialização primária (família), também fui educada com um olhar muito atento e agudo às desigualdades e ao sofrimento social.
Quais os números da violência contra a mulher na pandemia em comparação ao período anterior à crise sanitária?
Apenas entre março de 2020, mês que marca o início da pandemia da covid-19 no país, e dezembro de 2021, último mês com dados disponíveis, foram 2.451 feminicídios e 100.398 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino. A maioria das mulheres brasileiras (86%) percebe um aumento na violência cometida contra pessoas do sexo feminino durante o último ano. A conclusão é da pesquisa de opinião ‘Violência doméstica e familiar contra a mulher – 2021’, feita pelo Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (fonte Agência Senado). As violências contra meninas e mulheres cresceram no país segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Casos de estupro somaram 66.020, 4,2% a mais do que no ano anterior, sendo que 75,5% das vítimas eram vulneráveis, incapazes de consentir com o ato sexual.
A violência contra a mulher passou a existir também onde antes ela não existia nesse período de pandemia ou se agravou onde ela já era uma realidade antes? Explique.
Enquanto a agressão na rua teve um leve decréscimo, as agressões dentro de casa tiveram um aumento significativo. Levantamento do Datafolha encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicou que caiu violência na rua e aumentaram agressões dentro de casa. O “vizinho”, que em 2019 ficou em segundo lugar como autor das agressões (21%), neste ano sumiu das respostas. Em seu lugar, apareceram pai, mãe, irmão, irmã e outras pessoas do convívio familiar. Na comparação com os dados da última pesquisa, há aumento do número de agressões dentro de casa, que passaram de 42% para 48,8%. Nos dois primeiros meses de pandemia, dados do Fórum Brasileiro de Segurança mostraram um aumento do feminicídio no Brasil. Ao mesmo tempo, houve uma queda nos registros de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica. Segundo os especialistas, a queda refletiu a maior dificuldade em se registrar as agressões, já que o agressor passou a ficar mais tempo com a vítima. Mudaram também os participantes: cresceu a participação de companheiros, namorados e ex-parceiros nas agressões. Estamos falando de pessoas da família, que caracterizam esse fenômeno que não é uma violência doméstica como a gente tende a pensar no sentido de ser uma violência só do companheiro. Mas é uma violência intrafamiliar, que está acontecendo ali no seio da família
Quais são os principais fatores aos quais se deve esse aumento da violência contra a mulher na pandemia?
É preciso deixar claro que a violência contra a mulher sempre existiu. Vivemos em uma sociedade patriarcal, não apenas leniente com a violência contra a mulher, mas muitas vezes incentivadora. A cultura do estupro, na qual estamos todos submersos, tende a colocar a culpa da vítima, desresponsabilizando o criminoso. No caso da pandemia, observamos, não apenas um confinamento maior da família/casal, certamente um fator estressor, como a queda de renda e, muitas vezes, o desemprego do homem, habitualmente visto como provedor. Isso de forma alguma justifica, mas é um fator que deve ser observado. A violência de gênero é um reflexo direto da ideologia patriarcal, que demarca explicitamente os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. Como subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita ou sub-reptícia, coloca a mulher como objeto de propriedade do homem. Se os homens cometem e sofrem violências no espaço público, reinam soberanos no espaço privado, como detentores do monopólio do uso ‘legítimo’ da força física. Com efeito, o domicílio constitui um lugar extremamente violento para mulheres e crianças de ambos os sexos, especialmente as meninas. De acordo com esse discurso, toda mulher é vítima potencial da violência masculina. Essa violência atinge a todas as classes sociais, etnias e religiões. Embora entre as classes menos favorecidas a incidência pareça mais elevada, supõe-se que as classes média e alta também sofram do mesmo tipo de violência, só que, por medo de um constrangimento social, preferem omitir esses dados. Assim, podemos dizer que nenhuma classe social está isenta de violência masculina.
Quais as consequências desse aumento da violência para a saúde mental dessas mulheres e também de suas famílias como um todo? Como isso se manifesta nos consultórios?
É preciso deixar claro que cada mulher viverá o abuso/violência de forma única e singular. Vou ressaltar aqui os quadros nos quais penso que há maior dano no que tange à constituição subjetiva. Podemos pensar que essa mulher apresenta uma baixa autoestima; acredita em todos os mitos acerca dos relacionamentos violentos; é tradicionalista em relação ao lar, acredita firmemente na unidade familiar e no estereótipo do papel sexual prescrito às mulheres; aceita responsabilidade pelas ações do agressor; tem sentimento de culpa embora negue o terror e raiva que sente; revela uma aparência passiva para o mundo, mas possui bastante força para manipular seu ambiente a fim de evitar o abuso subsequente e ser morta; expressa reações graves de estresse, com queixas psicofisiológicas; acredita que ninguém será capaz de ajudá-la a solucionar sua dificuldade exceto ela mesma. Importante ressaltar que não estou deixando de lado/ignorando as condições socioeconômicas, que, muitas vezes, inviabilizam uma separação do agressor. Não é incomum ouvirmos que, em determinadas comunidades, “é melhor viver com um agressor do que não ter um homem dentro de casa”.
Intimidação, coação, ameaças, negação ou minimização do abuso, isolamento, culpabilização da vítima, dominação, controle econômico, manipulação dos filhos e abuso sexual são os elementos da “pedagogia da violência”, que tem como resultado as respostas de medo, depressão, culpa, passividade e baixa autoestima desenvolvidas pelas vítimas, como dito anteriormente. Parece então haver um consenso de que a violência sexual contra a mulher é, em realidade, um crime de gênero – não sem razão o discurso feminista repudia o termo violência doméstica, por entender que esse descaracteriza a essência do problema.
De que forma esses problemas estão sendo trabalhados e o que ainda precisa ser feito?
Da mesma forma que não podemos entender o psiquismo fora de seu contexto social, também não podemos reduzir o sofrimento humano à uma patologia social. Penso que o trabalho deva ser realizado nessas duas vertentes e, quando necessário e possível, recorrer aos dispositivos sociais que se encontram disponíveis para essas mulheres. Penso, também, que estamos dando alguns passos positivos no sentido de conscientização dos direitos femininos. Certamente são ainda tímidos e temos um longo caminho a percorrer, mas quero acreditar que estamos caminhando.