Há uma lista ampla de entidades nas classificações[1] de diagnóstico, e cada um, por sua vez, possui um também largo espectro de apresentação e sintomas que podem se sobrepor e confundir pacientes e profissionais. Sendo assim, transtornos menos comuns ou difundidos podem ser menos reconhecidos. O risco é de que exista uma lacuna entre os recursos linguísticos de que o paciente dispõe para elaborar sobre aquela experiência e a habilidade do profissional que o atende, seja um psicoterapeuta ou um psiquiatra, de associar o que está sendo dito a um transtorno de pouca repercussão na literatura psiquiátrica.
Esse é o caso da Dissociação, e, mais especificamente, da Despersonalização. A psiquiatra estadunidense Daphne Simeon (2004, p. 344, tradução livre) desenvolve:
A Dissociação é um fenômeno psicológico fascinante e uma das frentes menos exploradas na neurobiologia psiquiátrica. A Dissociação é definida como uma ruptura nas funções geralmente integradas de consciência, memória, identidade e percepção, levando a uma fragmentação da coerência, unidade e continuidade do senso de si mesmo [self]. A Despersonalização é um tipo particular de dissociação envolvendo uma integração interrompida de autopercepções com o senso de si mesmo, de modo que os indivíduos que experimentam a despersonalização estão em um estado subjetivo de se sentir alienados, separados ou desconectados de seu próprio ser.
Aqui nos debruçaremos principalmente sobre a Despersonalização. Trata-se de um fenômeno bastante observado na psiquiatria e que costuma ser descrito pelos pacientes como um estranhamento do ambiente; um estranhamento na continuidade do ser; uma sensação de estar perdido de si, desconectado de suas emoções; de apenas passar pelos movimentos da vida; de não estar habitando o próprio corpo; de estar se vendo de fora — algo semelhante a uma marionete.
Mudança no DSM-5
Em 2013, a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) renomeou o transtorno: o que antes era chamado de Transtorno de Despersonalização (Depersonalization Disorder – DPD), passou a se chamar Transtorno de Despersonalização/Desrealização (Depersonalization/Derealization Disorder – DDD). Tal mudança aconteceu porque a Despersonalização e a Desrealização são fenômenos que estão profundamente conectados e que, na grande maioria das vezes, acontecem ao mesmo tempo, apesar de apresentarem uma diferença basal — como explica Bezzubova (2014, p. 1, tradução livre): “A despersonalização refere-se à experiência de si mesmo [self], enquanto a desrealização refere-se à experiência da irrealidade do mundo ao redor”. Neste momento, faz-se importante salientar que estamos falando de uma experiência “como se”, ou seja, uma experiência na qual a crítica está preservada e a vivência é percebida como estranha, e nisso ela se distancia do delírio, que, por sua vez, se caracteriza por ideias fixas irredutíveis.
Quanto à sua duração, o fenômeno pode se manifestar como um transtorno, ou seja, ser persistente, recorrente, ou também apresentar-se como um sintoma temporário, o que ocorre com frequência após um grande evento estressor, como por exemplo um assalto, acidente ou a perda de um ente querido, ou mesmo durante crises de ansiedade e ataques de pânico.
É comum que as pessoas tenham tal sensação ao menos uma vez na vida. Contudo, nos casos em que ela se apresenta como um transtorno prolongado, a Despersonalização pode ser desencadeada por quadros depressivos, assim como por relações abusivas e por intoxicações químicas específicas na ausência de utilização continuada de substâncias[2]; tais gatilhos químicos são drogas como a cannabis, os alucinógenos, o ecstasy e a escetamina (SIMEON, 2004, p. 346).
Avaliação cuidadosa
É importante uma avaliação cuidadosa para descartar outros transtornos psiquiátricos como esquizofrenia, transtorno de pânico, transtorno depressivo maior, transtorno de estresse pós-traumático, dependência de drogas ou outro transtorno dissociativo.
Não há registros estatísticos robustos a respeito de sua ocorrência na população geral. Simeon (2004, p. 344, tradução livre) expõe alguns fatores que justificam o fato desse transtorno ser subdiagnosticado:
(i) familiaridade limitada por parte de muitos clínicos em relação ao transtorno e sua apresentação típica; (ii) relutância por parte de muitos pacientes em revelar seus sintomas por conta de uma expectativa de que eles não serão compreendidos, de que eles podem parecer loucos ou de que são incapazes de descrever suas experiências de despersonalização; e (iii) uma tendência de diagnosticar despersonalização como apenas uma variante da depressão ou da ansiedade, mesmo quando o diagnóstico de uma condição distinta é claramente necessário.
Ao que ela acrescenta: Como é comum com vários transtornos pouco reconhecidos e subtratados, os pacientes podem sentir um alívio tremendo ao terem contato com um clínico que consiga reconhecer seus sintomas pelo que eles são, esteja familiarizado com as características básicas de apresentação do distúrbio, e que seja capaz de dar a essa condição elusiva um nome e deixar o paciente saber que ele ou ela não está sozinho nesse transtorno. Os pacientes sentem frequentemente como se fossem a única pessoa que experimenta o transtorno, quando na verdade não são. (SIMEON, 2004, p. 344-345, tradução livre).
Tal acolhimento costuma ser fundamental no tratamento do transtorno. Nesse sentido, a psicanalista Rahel Boraks em seu texto A capacidade de estar vivo (2008), ao falar sobre as discussões da psicanálise a respeito do que é a vida, relembra a concepção de Winnicott, que vê o corpo como elemento central para entender-se vivo ainda nos primórdios da vida, uma vez que “as primeiras experiências se organizam de modo corporal” (BORAKS, 2008, p. 113).
Papel estrutural da mãe
Winnicott entende que, nesse momento, a mãe possui um papel estrutural, pois é ela quem vai dar suporte e orientação ao bebê nesse processo de organização corporal da experiência. Após essa primeira etapa, outras experiências, que não só corporais (mas também), vão contribuindo para a construção e transformação da personalidade daquele indivíduo, que sempre vai ter essa experiência com a mãe como um referencial do que é estar vivo. Rahel (2008, p. 113) sintetiza: “Nessa concepção, na qual um ser se dá a partir da presença humana do outro, estar vivo é poder ser nutrido física e emocionalmente, é poder ser sustentado e poder conviver”.
Sendo assim, encontrar um profissional que compreenda o transtorno e que ajude o paciente a nomear o que sente, pode fazer também com que, mais do que isso, ele consiga novamente — ou finalmente —, ainda que de forma incipiente, sentir-se ouvido, visto e, por consequência, vivo. Quanto a isso, a psicanálise, e, mais especificamente, Winnicott e Rahel (2008), atentam ao fato de que, para além do aspecto sintomático do transtorno, a Despersonalização pode ser uma forma de levar a vida. São casos em que a pessoa não se sente real para si mesma, e, dessa maneira, não consegue desenvolver conexões genuínas com as pessoas e com os acontecimentos que a cercam, a ponto de não assimilar a importância ou realidade do mundo externo, mantendo-se constantemente em estado de sobrevivência, sem conseguir experimentar o que realmente seria estar vivo.
Tais quadros podem ser desenvolvidos, como colocado anteriormente, em decorrência de algum grande acontecimento — seja ele pontual ou prolongado — na vida de um indivíduo, ou mesmo ser a única forma de experienciar a vida que uma pessoa conhece. Rahel (2008, p. 114, grifo da autora) discorre:
Em certas circunstâncias a capacidade de estar vivo e sentir-se real pode ser perdida. No entanto, é preciso destacar que ter uma experiência de perda implica uma organização emocional sofisticada, capaz de manter o indivíduo vivo para a própria experiência da perda. O que se observa com muita frequência, na clínica atual, é que alguns indivíduos nem sequer chegaram a alcançar a experiência de estar vivo e, diante da perda, é o próprio self que naufraga, evidenciando uma vitalidade falsa ou não integrada.
Experiência de desamparo
Diante de uma experiência tão profunda de desamparo, o que resta ao indivíduo é cultivar um terreno infértil de desejos e emoções como forma de sobreviver a um mundo igualmente inóspito para si e para o que seriam as suas necessidades. É aí, retomando o que foi dito acima, que entra o trabalho do profissional psiquiatra ou psicanalista: na tentativa de oferecer ao paciente um espaço de escuta, compreensão, e, consequentemente, um espaço que
[…] possibilite o encontro com a própria vitalidade: para que esta seja integrada, é importante que possa ser uma “experiência” tanto para o analista como para o analisando. Estou me referindo a um jogo, a uma abertura para se deixar ser transformado pelo outro e ser capaz, ao mesmo tempo, de criar um sentido próprio para essa transformação. É esta dinâmica transformado/transformador que deve estar presente no encontro analítico, sem o que se perderá a vitalidade e a própria análise. (RAHEL, 2008, p. 116).
Em suma, todos os tratamentos vão na direção de lembrar o paciente de que a experiência da vida é feita de oscilações, e de que há outras formas de se viver que não enredado por sentimentos de medo e agonia. Essa experiência estática e homogênea do que é a vida é, na verdade, uma sobrevida, criada pelo paciente como um mecanismo de defesa para passar por uma situação aterradora, seja em um contexto social ou químico (no caso do uso abusivo de drogas). O trabalho do clínico e dos fármacos envolve mostrar ao paciente que outro mundo existe e, muitas vezes, guiá-lo nessa busca para que alcance uma existência plena. O tratamento das comorbidades, portanto, faz-se fundamental para um tratamento bem-sucedido.
Transtorno de Despersonalização
Assim, apesar de subdiagnosticada, a Despersonalização é um transtorno bastante comum e desesperador, que merece atenção e tratamento. Ainda que se apresente como um sintoma, sua identificação precoce pode evitar muito sofrimento e até mesmo que se instale como uma doença. É preciso estar atento aos indícios que nossos pacientes e entes queridos nos dão, porque a dificuldade de expressar ou mesmo elaborar o que se passa é uma das causas da falta de registro de casos e, nesse arranjo entre a falta de referenciais do paciente e o pouco conhecimento do clínico, o transtorno pode se tornar cada vez mais solitário e doloroso.
REFERÊNCIAS:
BEZZUBOVA, Elena. Depersonalization in the DSM-5. Psychology Today, Online, 13 jun. 2014. Disponível em: https://bit.ly/3xOrLT3. Acesso em: set. 2022.
BORAKS, Rahel. A capacidade de estar vivo. Revista Brasileira de Psicanálise. São Paulo, v. 42, n. 1, p. 112-123, 2008.
SIMEON, Daphne. Depersonalisation Disorder. CNS Drugs, v. 18, n. 6, p. 343-354, 2004.
NOTAS DE RODAPÉ:
[1]Essa lista ampla de classificações é o famoso Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM, ou, em português, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.
[2]Simeon (2004) nos lembra que a Despersonalização em decorrência do uso continuado de drogas não deve ser diagnosticado como Transtorno de Despersonalização.