“A sociedade é racista?”

A resposta mais comum a essa pergunta é: “Sim!”

OK. “Mas, você é racista?”

A resposta mais comum a essa pergunta é…

Exatamente!

As pessoas, em geral, reconhecem a existência do racismo, mas quase ninguém se assume racista. Como se não fizessem parte da ‘sociedade racista’ a que nos referimos na pergunta anterior. “Racistas são os outros”, sempre!

Existe um embaraço das pessoas em declararem que sentem receio quando um negro se aproxima na rua, ou senta perto no ônibus (tendência a trazer a bolsa para mais perto do corpo!), incômodo quando têm um negro no convívio social, mais grave ainda quando é um superior hierárquico, um profissional de alto escalão (poucos imaginam um cirurgião médico negro!), e muito mais grave ainda quando um negro se torna alguém da família! É comum as pessoas dizerem: “Eu não sou racista. ‘Até tenho’ amigos negros!”, como se isso fosse uma condição excepcional, que exigiria um certo sacrifício, um diferencial, como se fosse uma exceção. Mas a expressão ‘até tenho’ já traduz, em si mesma, uma certa resistência em arcar com as implicações da interação racial na sociedade. E por quê uma branca, neta de italianos, está falando de racismo?

Em primeiro lugar porque, como psicóloga jurídica, penso que todos os desdobramentos das relações sociais refletem o contexto sócio histórico delimitado, e cria representações sociais que estruturam estereótipos pejorativos contra os negros, e podem se tornar tão impregnados no psiquismo dos sujeitos, que se tornam ‘fossilizados’ (nos termos descritos por MOSCOVICI, 2015) de modo que sua origem permanece inconsciente e desconhecida. E, mais grave: tendo em vista que o racismo depende das representações sociais que a criança adquire do(s) seu(s) grupo(s) social(is) e não de imaturidade decorrente da tenra idade, significa que desde muito cedo as crianças podem assimilar o comportamento racista e ele não se desfaz com o tempo, permanecendo mesmo quando todas as circunstâncias utilizadas para ‘justificá-lo’ desapareçam. A estruturação do estigma (nos termos estabelecidos por GOFFMAN (2015), de um traço ou marca que diferencia e afasta o indivíduo do restante da sociedade e se torna uma característica de inferioridade) se direciona à cor de pele (ou raça), e os termos específicos se relacionam aos estereótipos ligados ao negro enquanto ‘mau’, ‘vilão’, que se tornam mais temerários quanto mais oculta a estigmatização.

Pacto narcísico

A visão de mundo da sociedade brasileira atual continua reproduzindo a mentalidade da elite escravocrata: com menos intensidade do que no século XIX, ainda encontramos resistências aos esforços de democratização dos direitos sociais e civis dos afrodescendentes. Segundo BENTO (2014), as instituições públicas e privadas ainda mantêm lugares de poder e prestígio elitista branco, estabelecendo um ‘pacto narcísico’ com a ideologia dominante. A sub-representação de negros forma um círculo vicioso no qual as políticas públicas de equidade social perdem o significado e o objetivo. Essa situação constitui o denominado ‘racismo institucional’, entendido como ações de organizações e da comunidade, em que existe uma explícita intenção de discriminar, mas o tratamento excludente que incide sobre determinado grupo tem por objetivo manter as aparências e o componente estrutural, social e histórico que refletem ou perpetuam a discriminação praticada no passado. Nesse caso, o combate à discriminação institucional depende de novos pactos que reavaliem a hegemonia racial e de gênero (a questão de gênero não será abordada neste artigo) em lugares de comando, para fomentar a presença de profissionais negros(as) com poder de decisão, comprometidos(as) com a justiça racial e capazes de dialogar com a diversidade do povo negro.

Ocorre, porém, que segundo PEREIRA (2002), a categorização do ‘outro’ em grupos, processo que caracteriza a estereotipização, depende do processo de comparação entre o exemplar específico e o exemplo mais típico da categoria (o protótipo), para decidir se aquele exemplar específico será ou não incluído no grupo conforme o grau de semelhanças ou diferenças. O mecanismo de contraste procura acentuar as semelhanças das características dos membros dos próprios grupos, e as diferenças em relação às características dos grupos externos. O resultado é um claro favorecimento do próprio grupo e a atribuição de valores negativos e a depreciação do(s) grupo(s) externo(s).

Elementos inconscientes

O racismo, conforme abordagem da Psicanálise, é decorrente de elementos inconscientes decorrentes da formação psíquica do indivíduo. Em diversos trabalhos, FREUD trata do ‘narcisismo’, no qual o detalhe diferente se é inadmissível ao sujeito e que torna o outro insuportável: base para a xenofobia e à aversão às minorias raciais, nacionais, religiosas ou culturais. O outro é sempre visto como ‘invasor’. O ‘intolerante’ sempre invoca a noção de ‘limite’. Mas, qual seria o território mínimo desse indivíduo ‘intolerante’? Trazendo-se para o racismo, temos que o sujeito racista sempre se vê como ‘vítima’ enquanto o outro se transforma em perseguidor, ameaçador, e que ‘merece punição’.

Mas, de onde vem essa estranha predileção por padrões de pensamento inexatos, insuficientes, rígidos, irônicos e frequentemente danosos? FLORACK; SCARABIS (2005) esclarecem que o indivíduo preconceituoso geralmente vive em um ambiente social carregado de conflitos e medos desnecessários de serem atacados ou molestados pelo ‘outro’, considerado hostil, resultando em queda na qualidade de vida, devido à elevada frequência de hábitos socialmente nocivos no cérebro. Contudo, o mero debate acerca do tema, ou a reeducação comportamental pode não surtir os efeitos esperados; se abordado de forma equivocada, o combate aos estereótipos pode ser inócua ou se tornar mais intenso ainda. O combate aos preconceitos deve ocorrer quando o sujeito compreender o papel que eles desempenham no pensamento.

Em segundo lugar, a minha motivação para escrever é pessoal. Sou casada com homem negro, há 17 anos. Temos dois filhos, agora adolescentes. Isso não foi bem recebido entre parentes meus, e mais grave ainda na vizinhança, que inclusive articulou uma situação desagradável para prejudicar meu marido, no bairro, quando meus filhos tinham entre 4 e 3 anos: uma chamada anônima (óbvio!) à polícia militar, que abordou meu marido na porta de casa, na frente das crianças, quando ele saía para trabalhar. A suposta ‘queixa’ era de que alguém parecido com ele (demais!) teria furtado um celular de um taxista, na avenida próxima. Quando eu questionei sobre a rotina de abordagem a moradores negros na porta de casa, e que o caso seria levado à Corregedoria da PM, os policiais ‘acharam’ outras ocorrências e ‘desapareceram. Mas anotei seus nomes e patentes. Tudo isso, na frente da plateia de vizinhas que esperavam um desfecho favorável, mas não obtiveram êxito. O racismo foi o tema da minha dissertação de mestrado na UNISA, e como disse minha professora de Metodologia Científica, “pesquisamos o que nos incomoda”.

E MAIS…

É uma questão de cidadania

Racismo não é um tema exclusivamente para ser discutido entre negros. Também os brancos podem (e devem!) participar, porque é pelo debate que muitos comportamentos automáticos emergem à consciência e podem ser reformulados. E também impedem o ‘racismo reverso’ que sofri outro dia. Estava eu olhando uma postagem nas redes sociais de um sociólogo negro, convidando as pessoas ao debate sobre racismo. Mas, ao final, ele escreveu: “Os brancos também podem participar. Mas não serão sinceros.” (sic). Fiquei estarrecida com a frase. Por quê, segundo ele, os brancos não seriam sinceros ao falarem de racismo? Porque são brancos? ‘Todos’ os brancos são sempre racistas? ‘Todos’ os negros são sempre conscientes do racismo? Com a palavra, o presidente de uma instituição destinada à valorização da cultura negra, que utilizou termos pejorativos e impróprios contra Zumbi, manifestou-se contra o Movimento Negro e propôs a extinção do Dia da Consciência Negra! Ele é negro, mas não se considera como tal. Vamos conversar sobre consciência e ‘sinceridade’? Vamos conversar sobre estereótipos e preconceito contra brancos?

O importante, na realidade, é que, conforme afirma BENTO (2006), independente de discutirmos se o racismo é decorrente de diferenças econômicas ou educacionais, precisamos dirimir todos os fatores psicológicos (conscientes ou não), sociais, econômicos e políticos que originam, direta ou indiretamente, a discriminação, e elaborarmos estratégias de ação que valorizem as características dos afrobrasileiros (no sentido de valorização da autoestima) e da busca da cidadania racial (no sentido da proteção legal, social e jurídica como sujeitos de direitos). Como afirma Angela DAVIS, “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”!

Referências:
BENTO, M.A.S. Cidadania em preto e branco: discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 2006.
FLORACK, A.; SCARABIS, M. Pensamentos perigosos. Viver Mente e Cérebro. São Paulo: Segmento, ano XIII, n. 145, p. 68-75, fev. 2005.
FREUD, S. O mal-estar na cultura. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2015.
_____. O estranho. In: FREUD, Sigmund. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). 129. ed. Rio de Janeiro: Imago, v. XVII, p. 138-162, 2006.
_____. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2015.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
PEREIRA, M.E. Psicologia social dos estereótipos. São Paulo: EPU, 2002.
SILVA, D.M.P. Racismo: a Psicologia e o Judiciário no trato dos crimes de intolerância racial. Curitiba: Juruá, 2017 (publicação da dissertação de mestrado).