O suicídio é um fenômeno multifacetado, resultado da interação complexa entre fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais. Com taxas cada vez mais altas no Brasil e no mundo, é indispensável que profissionais da área da saúde mental busquem uma compreensão holística para identificar e abordar de maneira eficaz os sinais de alerta, incluindo fatores de risco, fatores de proteção, ideação suicida, planejamento e tentativa de suicídio.

Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pela psicóloga Roberta Borghetti Alves, coautora do Baralho para avaliação e intervenção do comportamento suicida, elaborado em conjunto com a psicóloga Vanessa Gomes Berteli e publicado pela Sinopsys Editora. Trata-se de um recurso embasado na terapia cognitivo-comportamental (TCC) e na terapia comportamental dialética (DBT) para instrumentalizar psicólogos clínicos a identificarem o nível de risco do comportamento suicida e proporem intervenções de acordo com a gravidade dos comportamentos apresentados por pacientes adolescentes, adultos e idosos. Conta com materiais de apoio, como plano de segurança, termômetro da crise suicida e roteiro de avaliação do comportamento suicida.

Roberta é professora da graduação e do mestrado em psicologia da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Psicóloga e supervisora clínica na Clínica Contemporaneamente. Formada em DBT pelo Instituto Elo. Mestra e doutora em psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Faz pesquisas e intervenções dedicadas ao comportamento suicida.

Quais são as causas mais comuns do suicídio?

O comportamento suicida hoje é tido como um fenômeno multicausal, ou seja, que vai ter várias causas interferindo, como fatores biológicos, aí entram os aspectos genéticos também; vai ter fatores psicológicos, em que entram características da própria pessoa, estratégia de enfrentamento; e os fatores ambientais, que envolvem os processos relacionais, os acessos a direitos humanos básicos. Então dizemos que o comportamento suicida envolve várias causas.

E quando pensamos nesses fatores potenciais de risco e de proteção, a literatura tem trazido que ter algum familiar que infelizmente tirou a própria vida aumenta ainda mais o risco. Muitas vezes estar no estado civil casado é um fator de proteção. Já ser solteiro ou divorciado, ou seja, não ter um amparo, uma rede de suporte social, passa a ser um fator de risco. Grupos de vulnerabilidade, como LGBTQIA+, população indígena, são populações que, por causa de todo o processo de preconceito, acabam também sendo fator de risco.

Geralmente, o público masculino acaba tendo mais mortes do que as mulheres, porque acaba fazendo uso de meios letais, como arma de fogo, corda ou outros recursos que são mais letais. As mulheres acabam tendo dados mais de tentativas do que os homens. O público de adolescentes, também é importante pensarmos, acaba sendo por meio de medicamentos. Tem um estudo internacional sobre crianças e adolescentes chamando a atenção sobre a questão da corda, das medicações e armas de fogo também.

Outro fator que potencializa é não estar em tratamento psicológico. Quando falamos em transtornos mentais, chama-se a atenção dos transtornos de humor, que oscilam entre 20% a 30%; transtorno da personalidade, principalmente borderline; transtornos de uso de substâncias também acabam tendo relação com o comportamento suicida; esquizofrenia também tem alguma relação inicial; e transtorno afetivo bipolar. De modo geral, esses são alguns dos transtornos mentais em que acaba havendo maior número de comportamentos suicidas.

É um mito dizer que só as pessoas que têm depressão tiram a própria vida, pois existem vários outros transtornos que podem ser fator de risco e que não devem ser negligenciados. Inclusive a literatura chama a atenção de que 95% da população vai apresentar algum sinal, alguma fala, alguma escrita de comportamento suicida, e 5% não. E aí a gente vai ter que lidar também com o luto daqueles profissionais que passam por esse processo de perder um paciente, o que não é algo fácil. Às vezes, 70% dos pacientes não apresentam algum transtorno mental e vão ter uma tentativa por várias motivações e uma delas, muitas vezes, é pela defesa da honra, por vingança de algum desafeto, por ausência de sentido de vida.

Hoje vivemos em uma sociedade em que o imediatismo, a dificuldade de tolerância à frustração, também acaba sendo um dos fatores. Então há várias motivações para irmos entendendo o que leva a pessoa a ter uma tentativa. Uma dica aos profissionais é buscarem entender qual o sentido de morte para seu paciente. Isso vai ser bem importante para se pensar em estratégias de intervenção. Qual o sentido da morte, do morrer. Se ele tem alguma religião, alguma crença, tudo isso também interfere no comportamento e pode ser um fator de proteção.

Como a TCC e a DBT são usadas em casos de ideação suicida?

Importante comentar que a TCC é padrão ouro quando falamos em risco baixo, em que se volta para a questão de ação suicida, e a DBT tem sido uma das abordagens padrão ouro para a questão de crise suicida. O vimos na revisão da literatura que fizemos com muito cuidado e é o que aparece no baralho, são estratégias de como lidar com pensamentos, com técnicas de distração, estratégias de resolução de problemas. Porque, muitas vezes, há uma dificuldade de resolução de problemas, crença de não ser bom o suficiente, de não ter capacidade. Então são trabalhadas algumas questões voltadas à alteração de pensamentos, estratégias de como lidar com essa ideação suicida. Lembrando que a ideação suicida pode ser passiva, em que o indivíduo gostaria que algo ocorresse e tirasse a sua vida, ou ativa, quando a pessoa já tem uma clareza de que gostaria de tirar a própria vida.

Dentro da TCC, intervimos conforme for o nível de risco que é avaliado com o uso do baralho: baixo, moderado ou alto. Há cartas específicas para desde a ideação suicida, com estratégias de distração. Caso aquele pensamento de tirar a própria vida seja recorrente, como lidar? Com recursos de distração, recursos de stop, que é justamente parar, recuar, dar um passo para trás, observar o que está acontecendo, que é um recurso da DBT. Para riscos moderados a altos, utiliza-se recursos de mudança de temperatura corporal, que tem estudos que trazem. Marsha Linehan (psicóloga norte-americana) criou a terapia comportamental dialética inicialmente, antes de ser para pacientes com sofrimento borderline, para mulheres com risco crônico suicida. Ou seja, é uma abordagem testada, padrão ouro, também para essa demanda.

A mudança em temperatura corporal, que pode ser colocar o rosto dentro de um de um balde ou bacia com água gelada, prender a respiração e isso ativar a resposta do mergulhador, faz com que diminua o risco, a crise naquele momento, diminui o impulso, há um relaxamento muscular progressivo. Então há várias estratégias e ferramentas que podem ser acessadas no baralho a partir do nível de risco. Tem estratégias de risco baixo, moderado e alto, com recursos da TCC para risco baixo e moderado, porque ela é uma abordagem que utiliza muito a questão da linha do raciocínio, do pensamento. Já a DBT, trabalha muito as questões da emoção intensa, para risco moderado e alto. Conseguimos trazer essas duas abordagens terapêuticas, que são padrão ouro, de acordo com o risco suicida que vão ajudar muito os profissionais a terem clareza e segurança na hora de aplicar com seus pacientes.

Como promover a conscientização sobre saúde mental e reduzir o estigma em torno do suicídio e dos transtornos mentais?

Um ponto importante quando falamos sobre suicídio é justamente a educação socioemocional, podermos falar sobre o tema nas escolas, em diferentes locais, em lives, no Instagram…  Eu cuido como usar o termo (nas redes socias), porque, muitas vezes, acaba não gerando engajamento. Precisamos realmente ir desconstruindo esse tema, entendendo que se trata de um sofrimento complexo, que nem sempre teremos as respostas. Mesmo que façamos vários recursos, vai haver algum suicídio que ocorre sem termos clareza da causa.

Então é importante termos, cada vez mais, pesquisas sobre esse tema, congressos, eventos… Começar a pensar em estratégias desde a infância até processo de plano prevenção para a população idosa. Dar acesso, por exemplo, de pensar e em estratégias de plano de preparação para aposentadoria. Há várias estratégias que poderiam ajudar a falar sobre o suicídio ou o comportamento suicida de modo geral, entendendo que ele vai ser multicausal. Cada vez mais rompendo o tabu de que o silêncio é a melhor resposta quando não é.

Uma das estratégias que mais devemos utilizar é falar com segurança e, sempre que falar, apontar quais são os locais que a população pode ter acesso. Hoje existe o site Mapa da Saúde Mental, em que é possível acessar informações de onde procurar um psicólogo, um psiquiatra, profissionais da saúde mental. Lembrando que também temos a atenção básica. Quem estiver em sofrimento deve procurar o local de mais fácil acesso para ser assistido.

Você pode compartilhar um case em que o baralho teve um impacto significativo?

Tenho recebido ótimos feedbacks da utilização do baralho em casos nos quais faço supervisão e outros que atendo, porque realmente é um instrumento que supre uma lacuna na nossa realidade. Um exemplo é de uma moça de cerca de 22 anos que apresentava alto risco suicida. Com a aplicação da ferramenta, fizemos a avaliação dela, hoje ela tem um plano de segurança, treinamos com ela esse plano de segurança, ou seja, quem ela pode acionar no momento que tiver a crise, as pessoas chaves, quais são os sinais que apontam que ela está entrando em risco. Fizemos todo um processo de identificação dos sinais, dos alertas, tanto sensações físicas quanto emoções, pensamentos que podem avisá-la de que está em uma crise. Debatemos estratégias de enfrentamento de como lidar com situações que são problemas, eventos que desencadeiam essa crise suicida. Treinamos no consultório, nos atendimentos, relaxamento muscular progressivo, técnicas de distração. Utilizamos também a mudança de temperatura corporal e atividade física intensa.

Ou seja, fizemos toda a aplicação do baralho desde a avaliação do risco, em que identificamos que ela tinha risco alto (na hora, paramos de fazer as avaliações dos outros transtornos e focamos na crise suicida). E hoje a paciente está mais estável. Uma dica importante aqui. Se o paciente está com risco alto, é preciso continuar fazendo semanalmente a avaliação do risco suicida? Sim. Você vai precisar fazer até o risco diminuir. E, claro, quando o risco é alto, precisamos acionar a família, a rede de apoio, porque sozinhos não damos conta.

É possível dar alta a um paciente suicida quando o risco diminui ou ele exige acompanhamento contínuo?

No caso de diminuir o risco de suicídio do paciente ou de ele apresentar risco baixo, ou seja, não apresentar mais ideação suicida, o protocolo pede que se vá trabalhando quais outros fatores de risco poderiam desencadear uma nova crise. Depois, sim, é possível chegar a um processo de alta. Mas, claro, não conseguimos, dentro da psicologia, dar 100% de garantia. Mas, sim, é possível o processo de alta.