O psicólogo Marcelo Alves dos Santos afirma que a sociedade moderna exige constante vigilância na cadeia produtiva, somada à estabelecida e devotada manutenção da formação individual. “Afinal, o mercado exige processos mais eficientes e profissionais cada vez mais qualificados, que precisam apresentar e desenvolver não apenas conhecimentos técnicos, mas diversas qualidades pessoais (soft skills), ou seja, comunicação eficaz, empatia, colaboração, organização, flexibilidade, resiliência, trabalhar sob pressão, entre outras. Tudo isso, em condições de urgência por conta da velocidade com que se tem alcançado os avanços tecnológicos, produtivos e farmacêuticos”, observa.
Ele complementa que, devido a essa dinâmica, a sociedade contemporânea configurou-se a partir de movimentos de extrema racionalidade em relação ao mundo do trabalho. “Isso conduziu a contradições da vida moderna, pois se espera que o trabalhador dê conta de todas as expectativas exigidas sem a possibilidade de adoecimento, tornando-o um programado portador de habilidades e competências, numa perspectiva individualista”, constata.
Comenta, ainda, que a produção de sentido, em relação a viver uma vida feliz, prazerosa e com boas vibrações (Nora Mclnerny), vista como um empreendimento coletivo, apesar da individualidade esperada, é postulada e reforçada pela cultura racional do mundo do trabalho. “Esses fenômenos modulam um complexo industrial otimista, ou melhor, um otimismo tóxico exigido a todos”, ressalta.
Sendo assim, é possível notar grande parte das pessoas buscando seu minuto de fama nos espaços das redes sociais. Essa tentativa visa alcançar o estrelato com produções de seu próprio reality show, transformando o espaço privado em público, uma mercadoria a ser vendida e consumida por estranhos, alienada a um mundo de perfeição e felicidade que só existe no curto período do clique da câmera fotográfica ou da gravação de um vídeo. “Temos nisso a expectativa de que a felicidade se estenda, seja plena e ininterrupta, com efeito estendido àquela existência, com árdua vigilância para que seja ignorado o doloroso, o desprazer, a tristeza, a falta etc.”, diz.
Segundo Marcelo, a vida moderna, com suas exigências, cobra o afastamento das pessoas de sentirem e demonstrarem esses sentimentos honestamente, decretando a necessidade do constante otimismo e da perfeição, seja na vida real, seja na vida virtual. “Tudo isso impede o simples ato de estar vivo na sua plenitude, pois deveria ser possível apresentar-se de forma contraditória, imperfeita ou até mesmo infeliz, uma vez que isso também nos constitui como seres humanos. Não poder viver as imperfeições ou escondê-las dificulta a constituição de nossa própria identidade, de sermos reais e não ficcionais, mas, principalmente, de nos afastarmos do adoecimento coletivo, chamado otimismo tóxico”, destaca.
Marcelo é doutor e mestre em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); professor no Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), campus Higienópolis, São Paulo/SP; coordenador de Desenvolvimento de Estágios e Carreiras (CDEC) dos campi Higienópolis, Alphaville e Campinas; pesquisador do Núcleo de Estudos em Liderança e Diversidade nas Organizações (NELO) na UPM/SP e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Identidade Metamorfose (NEPIM) na PUC-SP. Também trabalha como psicólogo clínico com ênfase em relações interpessoais e tratamento de pacientes com doenças psiquiátricos (interdisciplinaridade psicologia/psiquiatria), atuação e pesquisa com terapia cognitivo-comportamental (TCC).
Defina otimismo tóxico.
Separadamente as palavras têm significados totalmente adversos. Otimismo significa o comportamento de quem sempre busca ver o lado bom em tudo e em todos e para quem a soma dos bens supera a dos males. Já a palavra tóxico significa que tem propriedade de envenenar, que contém substância capaz de entorpecer por afetar o sistema nervoso, droga cujas propriedades fazem mal ao organismo. Portanto temos otimismo como algo positivo e tóxico como algo negativo. A junção dessas duas palavras forma o que a gente vê hoje: uma sociedade moderna em que aquilo que era bom se tornou prejudicial. Por quê? Porque é exigido de todas as formas sem que haja uma reflexão sobre ser verdadeiro ou não aquele otimismo, sem que haja uma reflexão sobre o quanto estamos sendo vítimas de uma exigência coletiva e que deixa de lado parte de quem somos ou de como somos numa sociedade que nos exige o tempo inteiro sermos como se é desejado que seja. Então são duas palavras que unidas significam um adoecimento coletivo.
Quais são as principais queixas e patologias que aparecem nos consultórios de psicologia decorrentes desse modo de viver?
A princípio, é preciso entender que a modernização e a expansão dos instrumentos tecnológicos, como eletrônicos, informática, mundo virtual, nos trazem uma nova forma de viver. As pessoas hoje vivem uma difusão em função do virtual e do real. Ao mesmo tempo, há uma exigência coletiva globalizada (globalização), que também traz para próximo de nós situações ou exigências de vida que são diferentes da nossa cultura. A questão é que todos esses processos promovem o atrofiamento ou mesmo o enfraquecimento que dá autonomia à vontade das pessoas, a vontade individual. O filósofo francês Auguste Comte já falava que há uma tendência de sucumbir a uma pressão coletiva muito grande. Então o que se vê são pessoas vivendo uma agonia, uma desordem social. Como diria o sociólogo francês Émile Durkheim, trazemos uma apatia diante de todas essas situações dos fatos sociais. Com isso, acabamos adoecendo. E uma das psicopatologias da vida moderna que aparecem muito nos consultórios é o transtorno bipolar, porque a pessoa oscila o tempo todo, ela é exigida a representar uma felicidade quando está triste e a esconder uma tristeza para parecer feliz o tempo todo. Outra patologia é o transtorno obsessivo-compulsivo, porque, para darem conta da situação do dia a dia, as pessoas criam rituais que podem se tornar futuramente rituais que gerem um adoecimento como o TOC, que também acaba sendo, na sua grande maioria, um descontrole emocional. Ainda aparecem esquizofrenia, problemas dermatológicos, cardiovasculares, obesidade. E tudo isso com muita angústia, a angústia da vida, a angústia do viver dentro de exigências cada vez maiores em que as pessoas não dão conta de responder a todas as demandas que a vida moderna acaba dando ou cobrando. Essa angústia gera um desconforto, podendo gerar até ideações suicidas. O próprio Durkheim, quando explica a questão do suicídio, fala que é uma ação individual intencional e consciente que decorre da morte do indivíduo que age sobre si mesmo. Porém, ele traz a questão do suicídio também como um fato social, que pode ser gerado pelas exigências as quais a pessoa não vê possibilidade de cumprir, sentindo uma angústia para além daquela que é possível suportar. Portanto, temos vários tipos de adoecimento que vão gerar a necessidade de tratamento, o qual começa medicamentoso e depois, inevitavelmente, demandará também um tratamento psicoterápico. Isso porque o ajuste desses desajustes sociais que são gerados na nossa vida cotidiana vai exigir um profissional que nos auxilie a tentar colocar essas coisas dentro de uma ordem aceitável, dentro de uma condição de equilíbrio. E sabemos que, às vezes, sozinho é muito difícil ou mesmo apenas com remédio não se alcança uma mudança necessária para a convivência com todas essas situações do cotidiano da vida moderna.
Como as pessoas deveriam conduzir suas vidas para se sentirem plenas?
É muito comum numa sociedade de consumo oferecerem receita para tudo e tentarem vender a ideia de que uma receita serve para todo mundo. Na verdade, isso não é possível. Cada pessoa tem a sua forma de viver uma vida plena. É preciso entender que uma pessoa plena é aquela que consegue ter uma vida completa, não no sentido mais estrito da palavra, mas, sim, completa naquilo que ela se sente bem e preenchida fazendo, o que vai além das exigências de uma vida produtiva. Outro fato importante para construir uma vida mais saudável do ponto de vista da saúde mental diz respeito à preocupação que se tem com o outro. Hoje vivemos uma vida de exposição, o privado virou público, e essa exposição, por ser coletiva, faz com que o outro esteja muito presente em nossas vidas. Ninguém vive sem se preocupar com o outro independentemente de quem seja esse outro. Mas o fato é que essa preocupação excessiva com a exposição que o outro está fazendo da sua vida privada também gera uma dificuldade de a pessoa administrar sua própria vida, pois é natural fazer comparações. Já dizia o filósofo francês Jean-Paul Sartre que o outro, de alguma forma, está relacionado a nós mesmos. Quando falamos do outro, inevitavelmente falamos da nossa relação com ele, mas principalmente dessa relação do que eu vejo no outro e do que eu posso estar vendo em mim. Aquilo que me incomoda no outro pode ser, na verdade, uma representação do que é incômodo em mim. Nesse sentido, é preciso saber alinhar bem aquilo que acompanhamos, aquilo que vemos do outro nessa sociedade da exposição e não se angustiar com aquilo que o outro traz. Também uma preocupação exagerada com o passado não é saudável. Temos que viver mais o presente, lembrando que o passado nos serve de arcabouço de conhecimento para poder ter um presente mais saudável. E com esse presente mais saudável, naturalmente o futuro será melhor planejado. Ainda é importante lembrar que as coisas que pensamos e para as quais damos nomes têm um impacto importante em como agimos. Por exemplo, se eu falo que estar sozinho é um problema, isso vai se tornar um problema. No entanto, estar sozinho, muitas vezes, é apenas um momento de introspecção e reflexão. Sendo assim, é preciso perder o medo de estar consigo mesmo. Também são necessários perder o medo da mudança, abrir mão do controle excessivo das coisas do cotidiano, diminuir o excesso de trabalho, diminuir a culpa pela diminuição do excesso de trabalho ou pelo menos se esforçar para se sentir menos culpado em função dessa mudança. Entender que você não pode e não precisa estar certo o tempo todo é mais um passo para uma vida plena, afinal de contas, como diz o dito popular: você prefere ter razão ou ser feliz? Lógico que não significa que essas dicas vão abraçar a todos. Uma ou outra terá sentido para alguns. Afinal, cada um vai ter que construir sua própria receita de vida plena.
Como conciliar uma vida plena, uma vida saudável, com as exigências da vida moderna?
O fato é que todos nós buscamos uma certa liberdade, idealizamos a liberdade, idealizamos os direitos que gostaríamos que fossem respeitados, idealizamos uma vida possível de ir e vir, mas, ao mesmo tempo que se é livre, a gente sabe que muitas escolhas não são dadas. Acabamos sendo muito submissos a ideologias postas. Dessa forma, há excessiva preocupação com a beleza, com o corpo, com a vida do ter e, às vezes, a diminuição da preocupação com o ser. A excessiva preocupação em ser feliz ou buscar uma felicidade plena e não perceber que a felicidade se encontra nos pequenos movimentos do dia a dia. Em consultório, costumo falar para as pessoas que é na soma das pequenas felicidades que se consegue ver uma felicidade maior, uma felicidade mais plena. Sendo assim, não se pode desprezar pequenos momentos da vida, que são momentos de felicidade, seja na contemplação de um pôr do sol, seja na conversa com um amigo, de preferência uma presencial e não apenas virtual, seja no caminhar, seja no respirar, seja no contemplar o dia a dia. São situações cotidianas aparentemente simples, mas que, infelizmente, na vida moderna, acabam deixadas para trás por causa de uma agenda cada vez mais recheada de obrigações e deveres que nos leva ao adoecimento. Devemos entender que a liberdade é algo a ser conquistado, sim, mas, por vezes, somos submissos a ideologias. Então a gente precisa também olhar para essas amarras que nos são postas e tentar, de alguma maneira, nos livrarmos delas. Viver a vida com bom humor, dar risada, dar mais risada da vida. A antropóloga e professora Mirian Goldenberg fala que o maior capital que temos é o tempo e nós trocamos esse capital por afazeres, por obrigações ou por atender a essas ideologias: eu preciso do corpo perfeito, da beleza perfeita, do carro do ano, das viagens internacionais para postagem em redes sociais. Às vezes, acabamos não saboreando cada instante da vida. Quando ela fala que o maior capital que temos é o tempo, está coberta de razão. O tempo é algo que não se compra, ele apenas vai. Portanto, é preciso saber administrar bem o tempo de vida que se tem (no Brasil, hoje, a média de vida útil do ser humano está em 77 a 80 anos), balanceando uma vida saudável, uma vida de felicidade, uma vida regrada, mas uma vida também de trabalho, ou seja, saber trabalhar essa balança das obrigações, mas, ao mesmo tempo, do prazer. Isso facilita muito conciliar as exigências da vida moderna com uma vida saudável.
Qual o papel da psicologia nesse contexto?
Se pensarmos que todo esse processo em busca de uma vida plena no mundo moderno exige muito autoconhecimento, autogerenciamento, autocondução, por vezes, sozinha a pessoa encontra dificuldades. Isso porque está viciada em comportamentos que para ela são difíceis de serem mudados, ou está condicionada a uma vida de muitos afazeres, ou a uma vida de exigências em que seus prazeres e sua vida estejam em segundo lugar, ficando sempre em primeiro lugar o atender essas exigências da vida moderna, que são o trabalhar, o correr, o pagar contas. Sendo assim, o psicólogo entra como um fator importante ou como alguém importante na vida dessa pessoa que, infelizmente, de alguma maneira, está desregrada consigo mesma. Com todo conhecimento técnico que possui de uma ciência chamada psicologia, o profissional da área vai auxiliar no que diz respeito à própria história de vida dessa pessoa, vai conduzi-la na sua autodescoberta, na compreensão de suas dificuldades. Vai auxiliá-la nesse relacionamento mais íntimo com seu mundo interior, com esse olhar para dentro, para si mesma. Porque, por vezes, como dito anteriormente, nosso olhar está para fora, está para o mundo do trabalho, está para o outro, está para as exigências que são postas e sem a reflexão devida sobre como tudo isso nos afeta, causando muitos adoecimentos da ordem da saúde mental. E, naturalmente, a partir dessa compreensão, o psicólogo vai auxiliar a pessoa a dar um stop na sua própria vida e começar a olhar e se organizar a partir das suas próprias necessidades, das suas exigências. Trata-se de uma das profissões mais requeridas e mais procuradas nessa vida moderna, porque autoconhecimento, autogerenciamento, auto-observação, tudo isso, às vezes, é muito difícil de as pessoas conseguirem sozinhas.