Esse é um assunto delicado que ameaça a prerrogativa da Psicologia, e não pode permanecer: por 7 votos a 4, o plenário do STF votou o ADIn nº 3481, de março/2021, e julgou inconstitucionais determinados artigos da Resolução nº 02/2003 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que restringiam a comercialização e o uso de manuais de testes psicológicos a profissionais inscritos nos respectivos Conselhos Regionais de Psicologia, além de determinar que as editoras registrem os dados do psicólogo que fizer a compra, alegando que isso prejudicaria o acesso desses materiais aos estudantes de Psicologia. A ação foi ajuizada pelo então sr. Procurador-Geral da República, Claudio Fonteles, em 2005. Os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Dias Toffoli divergiram do voto, argumentando que, por razões éticas, é padrão internacional estabelecer determinados limites ao acesso aos resultados dos exames, restringindo sua disponibilização; o Ministro Marco Aurélio também divergiu do voto, argumentando que a restrição ao acesso se mostra razoável para dar integridade e segurança ao material que aborde o diagnóstico, orientação e tratamento psicológico.

Com o devido respeito, penso que o sr. Procurador deveria ter se ocupado de outros assuntos efetivamente relevantes, de interesse nacional em benefício da população toda, e essa ação não teria seguido seu curso, uma vez que interfere em assunto que é prerrogativa desde que a Psicologia foi regulamentada como lei, em 1962.

Isso porque, já determina a Lei nº 4119/1962, que regulamenta os cursos de formação em Psicologia e a formação do psicólogo, que a formação em Psicologia deve ocorrer por conclusão de cursos regulamentados pelo MEC, e com o registro no respectivo Conselho Regional. Existem os cursos de Licenciatura e de Bacharelado em Psicologia, sendo que o primeiro é para docência não universitária e o segundo para o efetivo exercício da profissão de Psicólogo. Por sua vez, o art. 4º do decreto nº 53.464/1964, que regulamenta a referida Lei, determina que o psicólogo deve utilizar métodos e técnicas psicológicas com o objetivo de diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento.

Ora, e que métodos e técnicas são esses?

Os testes psicológicos são a ferramenta diferencial dos Psicólogos, para auferir diversos construtos: psicometria, personalidade, relações familiares e sociais, entre outros. A Resolução nº 02/2003 do CFP já determinava que os testes são material privativo de psicólogo. Dessa frase, temos que:

O próprio Código de Ética dos Psicólogos (Resolução CFP nº 10/2005, portanto também uma norma administrativa emanada de autarquia federal) já determina no seu art. 1º, alínea ‘i’ que:

Art. 1º – São deveres fundamentais dos psicólogos:

(…)

i) Zelar para que a comercialização, aquisição, doação, empréstimo, guarda e forma de divulgação do material privativo do psicólogo sejam feitas conforme os princípios deste Código;

Ocorre que, se os testes psicológicos passarem a ser comercializados indiscriminadamente a qualquer pessoa, então ocorrerá uma situação inversa da atual, quem preservar essa prerrogativa estará cometendo ‘violação ética’?

Ou seja, não há que se falar em ‘inconstitucionalidade’ quando se analisa que todos os dispositivos que respaldam a exclusividade no acesso e utilização de testes somente pelos psicólogos (diferenciando-os dos estudantes e dos demais profissionais de saúde) são provenientes de legislação federal e de normas administrativas emanadas por autarquias federais.

Restrição ao acesso de testes psicológicos

Além disso, a Lei que regulamenta a profissão de Psicólogo está em vigor desde 1962, não houve nenhuma lei posterior que a revogou, tornando-se assim um ‘direito adquirido’, ou, melhor dizendo, uma prerrogativa da Psicologia. E, como todos sabemos, e o sr. Procurador também deve saber por ser um operador do Direito, nenhuma norma legislativa ou administrativa deve afrontar a Constituição Federal de 1988. Apesar do lapso temporal, se houvesse alguma divergência entre normas da Psicologia e a Constituição federal, já seriam (ou deveriam ter sido) sanadas há muito tempo, no momento oportuno.

A comparação que o sr. Procurador utilizou para ‘pseudo’-justificar a restrição ao acesso e utilização indiscriminada de testes psicológicos pelos estudantes de Psicologia, com a proibição dos estudantes de Arquitetura de terem acesso aos livros, evidencia completo equívoco de interpretação, ou mais grave, completo desconhecimento dos cursos de formação de Psicologia, porque livros são um tipo de material, e testes são outro! Os estudantes de Arquitetura têm acesso aos livros que quiser, mas um estudante de 1º semestre não vai assinar um projeto de construção ou reforma de uma obra! Estudantes de Medicina têm acesso a todo o material didático disponível de que necessitarem, mas será que o sr. Procurador aceitaria ser operado por um estudante de 1º semestre? Da mesma forma, o estudante de Psicologia também tem livre acesso a todo o material pedagógico e didático disponível, mas a questão dos testes exige responsabilidade, preparo, conhecimento do construto que será avaliado, além de experiência e prática no manejo do próprio instrumento.

O perigo da banalização profissional

A livre comercialização e utilização de testes psicológicos, sem supervisão ou orientação, sem os devidos conhecimentos básicos e prática no manejo do material, vai banalizar sua aplicação, é como o cidadão leigo querer comprar o seu próprio instrumento cirúrgico e realizar suas próprias cirurgias para não precisar contratar cirurgiões (mas, se houver uma ação vedando a restrição à comercialização de materiais cirúrgicos, certamente o Conselho Federal de Medicina e as entidades representativas da categoria médica não concordarão…).

À guisa de comparação, desde 2002, o Projeto de Lei do ‘Ato Médico’ está em trâmite no Congresso, e diversas categorias de profissionais da saúde se mobilizam para impedir sua aprovação da forma como está redigido, porque um dos dispositivos pretende usurpar a prerrogativa dessas demais categorias (exceto da Odontologia), de realizar diagnósticos, arrogando-se ser uma exclusividade dos médicos. Nesse sentido, será necessário que Psicologia envide esforços para garantir mais essa prerrogativa (além da atribuição de realizar diagnósticos, também regulamentada pela mesma Lei nº 4.119/1962) e assegure a exclusividade de aquisição e utilização de instrumentos psicológicos, que são os testes.

Referencial de embasamento técnico

Em diversas áreas de atuação dos psicólogos, a utilização dos testes se torna um grande diferencial, pois auxilia o psicólogo a aprofundar determinados aspectos que poderiam não ser devidamente observados somente com entrevistas: mensuração de aspectos cognitivos, traços de personalidade, percepção de suporte familiar e de interações sociais, estados de humor (depressão, ansiedade, agressividade). Os testes são utilizados como referencial em pesquisas científicas, seja mediante estudos de validade, seja como parâmetros para se identificar incidência de determinado fenômeno psicológico que se queira estudar. Aliás, a própria elaboração de um teste psicológico é uma tarefa complexa, exige anos de estudos e pesquisas, definição do material que será utilizado, definição do público-alvo, psicometria e análise estatística, etc. Em Psicologia Jurídica, por exemplo, a utilização de testes embasa uma avaliação psicológica aprofundada quanto à verificação se uma acusação de abuso sexual é verdadeira ou falsa, qual a percepção que uma criança tem da vinculação afetiva com cada um dos genitores, se aquela pessoa apresenta déficits cognitivos suficientes para ser civilmente interditada, se a pessoa ou família adotante efetivamente apresenta condições de se qualificar à adoção etc. São situações que exigem extrema responsabilidade por parte do profissional, não é possível haver qualquer conclusão idônea somente com uma ‘entrevista’ básica e inconclusiva, é preciso que haja embasamento técnico mediante instrumentos validados por órgão competente, como os pareceristas do SATEPSI, do CFP.

Decisões arbitrárias prejudicam o desenvolvimento científico e profissional e não corresponde à realidade e ao pleno exercício da Psicologia brasileira.

E MAIS…

Como dizia Rui Barbosa “Quem não luta por seus direitos, não é digno deles”.

Penso que os psicólogos precisam se mobilizar, mediante abaixo-assinados e manifestações públicas, protestando contra essa decisão equivocada e temerária, que ameaça uma das principais prerrogativas da Psicologia. As entidades representativas da Psicologia não podem se limitar a “notas de repúdio”, “comunicados” ou “declarações” ao público e à imprensa. Os psicólogos exigem providências imediatas e efetivas do Conselho Federal de Psicologia e demais entidades representativas da Psicologia, para defender esta importante prerrogativa da categoria.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 4119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sôbre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo.
BRASIL. Congresso Nacional. Decreto nº 53.464 de 21-01-1964. Regulamenta a Lei nº 4.119, de agosto de 1962,que dispõe sobre a Profissão de Psicólogo.
BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº 02/2003. Define e regulamenta o uso, a elaboração e a comercialização de testes psicológicos e revoga a Resolução CFP n° 025/2001.
BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº 10/2005. Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo.
BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº 05/2012. Altera a Resolução CFP n.º 002/2003, que define e regulamenta o uso, a elaboração e a comercialização de testes psicológicos.
REDAÇÃO. STF invalida restrição na venda de testes psicológicos. Migalhas, 08/03/2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/341366/stf-invalida-restricao-na-venda-de-testes-psicologicos?s=FB>. Acesso em 08 mar. 2021.