Em que momento perdemos o encantamento tão necessário ao aprendizado e ao engajamento dos alunos? Por que associar conteudismo ao padrão necessário para que metas sejam atingidas e para uma aprendizagem real? Tais questionamentos são feitos pela fonoaudióloga clínica e educacional Luciana Cordeiro Felipetto. Nesta entrevista, ela afirma que, partindo dos preceitos da neurociência e de tudo o que se está vendo como necessário à aprendizagem, conclui-se que a ludicidade é a ponte entre o ser, o saber e o aprender.
Mestre em ciências da educação e especialista em psicopedagogia, Luciana trabalha com crianças das mais variadas dificuldades e transtornos de aprendizagem. Palestrante nacional e internacional, também é autora do livro ‘A descoberta do mundo das letras’ e coautora dos livros ‘Contribuições da neurociência para uma educação integradora’ e “Neurociência e saúde educacional: vencendo limites’ volumes 1 e 2 (Wak Editora) e ‘O girassol azul’ (Selo Casa Kids)
Qual a importância da ludicidade na psicopedagogia e no contexto socioeducacional?
A ludicidade é fundamental para o processo de desenvolvimento e aprendizagem, não apenas das crianças, mas de todos nós e em qualquer contexto, seja clínico, familiar ou escolar. Não entendo o porquê de o conceito de ludicidade descaracterizar a seriedade das estratégias nos processos de aprendizagem, principalmente quando avançamos nas séries e nos segmentos da educação.
Não é raro que profissionais da equipe multidisciplinar, dentre eles os psicopedagogos, que utilizam jogos em suas intervenções, sejam questionados por pais ou outros familiares de pacientes sobre o emprego de brincadeiras em suas sessões. “Mas ele vai lá só para brincar?” Pois é, brincar é uma poderosa forma de atingir o desenvolvimento biopsicossocial de uma criança.
A educação infantil também carrega o estigma de que é local apenas de brincadeiras e por isso não é tão essencial. Vimos essa afirmação ser atestada na pandemia da covid-19, quando muitas famílias retiraram seus filhos das escolas de educação infantil por não entenderem a seriedade por trás das estratégias ditas lúdicas e por entenderem esse segmento como apenas assistencialista, um local para os filhos permanecerem enquanto desempenham suas atividades laborais.
Em que momento perdemos o encantamento tão necessário ao aprendizado e ao engajamento dos alunos? Por que associar conteudismo ao padrão necessário para que metas sejam atingidas e para uma aprendizagem real? Partindo dos preceitos da neurociência e de tudo o que estamos vendo como necessário à aprendizagem, conclui-se que a ludicidade é a ponte entre o ser, o saber e o aprender.
O lúdico traz encantamento, curiosidade, engajamento, motivação, enfim, inunda nosso cérebro de neurotransmissores tão importantes para a aquisição de novas aprendizagens e conceitos. Novas conexões neurais são formadas a partir desse brincar supervisionado e voltado para a experimentação e as vivências corporais.
Dê exemplos de atividades práticas da ludicidade na psicopedagogia.
O aprendizado por meio de jogos de tabuleiro, contação de histórias, brincadeiras de roda, brincadeiras genuínas que são feitas na infância, como pular corda, queimada, rouba-bandeira, andar de patins e bicicleta, é essencial para o desenvolvimento psicomotor, para o desenvolvimento da linguagem, das habilidades socioemocionais e tantas outras que é preciso reafirmar a sua importância. Na psicopedagogia, não é diferente. Muitos conceitos são aprendidos a partir de jogos de tabuleiro e brincadeiras. Com eles, é possível, inclusive, avaliar as crianças e se estão com prontidão de habilidades esperadas para a faixa etária e a escolaridade.
Fale sobre a ludicidade como ferramenta no auxílio da formação educacional.
Não é de agora que estudiosos e teóricos como Vygotsky, Piaget, Friedrich, Froebel e Montessori abordam essa temática em suas obras e publicações e trazem à tona a importante discussão sobre a colaboração da ludicidade no aprendizado da infância. A própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) afirma que o ato de brincar durante a infância promove a interação da criança com o seu cotidiano, proporcionando aprendizagens e potenciais para o seu desenvolvimento e que, quando brinca diariamente, amplia e diversifica seu acesso à cultura e conhecimentos.
A neurociência também atesta essa importância e vem desenvolvendo pesquisas nesse campo, demonstrando estar preocupada em trazer a ludicidade de volta às nossas práticas pedagógicas, principalmente para ser fator de engajamento na geração digital, que não explora mais o corpo e toda sua capacidade sensorial, pois está presa às telas.
Fale sobre a importância da ludicidade na vida em sociedade.
A ludicidade é fator que agrega e desenvolve habilidades socioemocionais, gera empatia, torna as pessoas mais competitivas, focadas e em busca de objetivos que antes foram desenvolvidos a partir de brincadeiras que também trabalham nelas as funções executivas, que envolvem planejamento, controle inibitório e memória operacional.
O quanto o brincar ajuda os alunos agressivos?
O brincar gera nas pessoas vários tipos de sentimentos. Pessoas agressivas podem se sentir menos agressivas graças à liberação de neurotransmissores quando brincam. Mas esses sentimentos também podem ser exacerbados nesse contexto, que pode aflorar sentimentos como a competição.
Brincadeiras são boas opções de estratégias para se trabalhar a vez do outro, o ganhar e o perder, o controle das emoções e as regras sociais. A ludicidade e o brincar também são formas de assegurar situações em que as crianças possam expressar o que sentem. No consultório e na escola, podemos verificar a condição emocional de uma criança e suas expressões e sentimentos (tristeza, alegria, medo, raiva etc.) só de ver a forma como ela desenha e brinca.
E o quanto brincar ajuda na aprendizagem dos alunos inclusivos?
O brincar torna o processo de aprendizagem mais leve e garante prontidão em vários aspectos necessários para aquisição de habilidades para que ele ocorra. Com acima citado, gera engajamento, pois torna-se mais lúdico, concreto, motivador e isso beneficia todos os alunos e, principalmente, os que precisam de estratégias mais pontuais para aprender. Todos nós apreciamos uma boa brincadeira, uma excursão ao ar livre. São momentos que ficam marcados na mente dos estudantes e que são repletos de sentimentos, que foram estímulos e se tornaram aprendizagem afetiva, pois mobilizaram, além das áreas da aprendizagem, nosso sistema límbico, responsável pelas emoções.
Fale sobre ludicidade x tecnologia.
A tecnologia pode ser excelente aliada ao processo de aprendizagem desde que tenhamos parcimônia em sua utilização. Ela possibilita engajamento dos alunos e desenvolve curiosidade. A partir dela, os estudantes desenvolvem motivação e por aí vai se desenrolar todo o processo de aprendizagem de conceitos e de conteúdos. A tecnologia torna o processo concreto. Mas tudo dentro dos limites preconizados pelas associações que tornam a exposição ao tempo de telas algo aceitável de acordo com cada faixa etária. Excluir os alunos do processo tecnológico em plena era de avanços tecnológicos não é uma condição interessante. Sempre dá para se ter a medida certa para que as tecnologias auxiliem o processo.
Explique o Projeto de Robótica e Inclusão, do qual foi idealizadora e coordenadora.
Este projeto foi realizado em 2018 em parceria com um engenheiro elétrico e tinha como objetivo constatar se a tecnologia era mais uma ferramenta com poder de engajar e incluir a todos. Em nossas turmas de até seis alunos, trabalhavam juntas crianças sem queixas escolares ou de aprendizagem e crianças com dificuldades e com deficiências de todos os tipos. Crianças com TDAH (transtorno de déficit de atenção/hiperatividade), autistas, altas habilidades e superdotação, transtorno opositor desafiador (TOD), enfim, toda uma neurodiversidade.
Elas eram expostas a conceitos básicos de linguagem de programação e desenvolveram em grupos pequenos projetos em que todos colaboraram e tinham a missão de resolver um problema proposto pelo professor. Foi interessante demonstrar que a tecnologia é capaz de incentivar e incluir todos, pois eles estavam motivados e se encontravam no mesmo processo de descoberta e aprendizagem. Nenhum deles sabia a linguagem de programação, e aprenderam juntos, tinham que avançar juntos, como um time. Foi um belo projeto que durou aproximadamente um ano e meio. Assim, foi possível comprovar que, desde que bem utilizada, a tecnologia torna o processo mais colaborativo e motivador.
Fica a lição de que, quanto mais ampla e inclusivamente forem pensadas as estratégias de sala de aula, mais o processo ocorre e acontece para todos, independentemente de sua condição cognitiva e necessidades individuais. Professores: pensem em desenvolver estratégias de ensino que contemplem todos os seus alunos; assim, a troca entre cada experiência será única, pois eles entenderão as dificuldades individuais e vocês poderão propor novas estratégias para irem resolvendo as questões que surgirão.