A terapia de vidas passadas (TVP) ou terapia de regressão pressupõe que o ser humano tem uma mente física e outras consciências multidimensionais que atravessam o metafísico. Além disso, considera que parte do que as pessoas armazenam de experiências está contido na memória extracerebral. Outra questão que fundamenta a abordagem é a de que vivências que foram traumáticas no passado geram efeitos no presente, mesmo que o indivíduo não consiga se lembrar do que aconteceu.

Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pelo neuropsicólogo Davidson Lemela. Graduado em psicologia pela Unisantos, pós-graduado em neuropsicologia pela Uniara e em neurometria aplicada pela Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN), ele é especializado em terapia regressiva pela Sociedade Brasileira de Terapia de Vida Passada (SBTVP). Desde 2002, atende como terapeuta na Clínica Lumyna, em Santos/SP.

Palestrante nacional e internacional e pesquisador, Lemela é espírita militante desde 1975. Recentemente, ele lançou seu terceiro livro, ‘Demônios ou hormônios? Ansiedade e depressão sob a ótica das vidas passadas’, que reúne resultados de sua experiência terapêutica com quase 5.000 sessões de regressão de memória a vidas passadas e centenas de pacientes em mais de 20 anos de prática clínica. Na obra, propõe um olhar diferenciado sobre ansiedade e depressão, além de abordar outros temas atuais, como autoestima, medo, felicidade, suicídio, culpa, família, conflitos globais e regeneração.

Por que se tornou neuropsicólogo e o que o levou a trabalhar com a terapia de vidas passadas?

Trabalhei com informática durante muitos anos em uma empresa do polo industrial de Cubatão/SP e minha especialidade, na maior parte desses anos, foi na área de computação e automação industrial. Porém sempre me interessei pelo tema de regressão de memória e hipnose. O primeiro livro sobre o assunto que li se intitulava ‘Dupla personalidade’, de Edgard Armond, em 1975, e que abordava, justamente, o caso de uma moça que se lembrava de vidas passadas espontaneamente. Ela era acometida por surtos psíquicos, por isso, era considerada uma pessoa desequilibrada. Chegou a ser internada e passar por tratamentos psiquiátricos e medicamentosos, de acordo com os recursos disponíveis na época em que se passava a história. Os primeiros psicofármacos produziam mais efeitos colaterais do que ajudavam efetivamente, por isso, a família resolveu levá-la a um centro espírita onde, por fim, foi socorrida. Nesse lugar, descobriram que seu problema tinha relação com uma vida passada sua, vivida na antiga Rússia, e não se tratava de doença mental. Quando encerrei meu trabalho na área da informática, matriculei-me em uma faculdade de psicologia. A intenção era buscar a formação acadêmica, uma vez que era uma exigência dos cursos de pós-graduação em terapia regressiva, pois era isso que eu queria fazer dali para frente. Após o curso em terapia regressiva, pós graduei-me em neuropsicologia a fim de expandir meus conhecimentos sobre a relação entre transtornos mentais e o funcionamento do sistema nervoso e encefálico. Tornei-me pesquisador, escritor, autor de artigos sobre doenças psicossomáticas e dos livros ‘O disfarce da memória’, ‘A escolha do amor’ e, recentemente, lancei meu terceiro livro, ‘Demônios ou hormônios? Ansiedade e depressão sob a ótica das vidas passadas’. Sou também palestrante nacional e internacional, defendi a tese do tratamento do transtorno do pânico, da ansiedade e da depressão por meio da terapia regressiva em palestras realizadas em várias cidades no Brasil, Estados Unidos e Europa. Desde 2013, sou colunista do The Journal of Psychological Studies, de Londres.

O que é exatamente a TVP, como e por que surgiu?

É óbvio que a hipótese da reencarnação por si só não a comprova. Uma teoria necessita passar por verificações objetivas, suportar estudos pormenorizados e, mesmo assim, ela ainda não pode opor-se ao status quo. Não podemos aplicar, na busca pela compreensão da alma e da reencarnação, somente a metodologia que serve à pesquisa no campo da ciência biológica. A alma humana não é mero ajuntamento de átomos e células que se pode medir e pesar, mesmo pelos mais delicados e sofisticados instrumentos de aferição da tecnologia moderna.

Os conselhos de psicologia e medicina têm rejeitado formalmente, sem conhecer, a terapia de regressão, que apresenta como pressuposto básico a hipótese da reencarnação, por acharem que não se trata de matéria cientificamente comprovada. Contudo, qual abordagem psicoterápica ou procedimento terapêutico o é? Onde se encontra a prova científica da existência do inconsciente de Sigmund Freud?

Até bem pouco tempo, a maior parte das melhores evidências relacionadas à reencarnação, ou provinham de casos surgidos em indivíduos que se lembravam espontaneamente terem vivido no passado, ou por meio do uso de métodos indutivos que provocavam lembranças de supostas vidas passadas. Assim, as mais promissoras evidências científicas relacionadas com a reencarnação, que se encaixam no modelo tradicional do método científico, provêm de casos espontâneos de recordações do passado, principalmente com crianças.

O professor Ian Stevenson (1918-2007), catedrático da Universidade da Virgínia, em Charlottesville, Estados Unidos, relacionou milhares de casos de lembranças espontâneas de crianças em todo o mundo, inclusive no Brasil. Cercado de proteção e rigor científico, ele colhia os informes prestados pelos pacientes, anotando o reconhecimento feito das pessoas e dos lugares da suposta vida anterior. Posteriormente, ele comparava essas informações colhidas com os dados obtidos na comunidade para testar a validade. Ele escreveu vários artigos e obras que tratam do assunto. Publicou um livro que ficou muito conhecido: ‘Vinte casos sugestivos de reencarnação’. Consta que ele possui um acervo de mais de 2.000 casos pesquisados em todo o mundo durante mais de 40 anos de trabalho.

No site da SBTVP, há uma afirmação que diz que “é necessário que todos que trabalham com a doença mental em sua abrangência estejam atentos a um novo paradigma que está surgindo desde o fim do século 20, no qual se faz necessária a inclusão do aspecto espiritual, transcendente no tempo e no espaço”. Fale a respeito.

A terapia regressiva constitui uma forma particular de abordar e tratar problemas psíquicos ou físicos, tendo por linha central uma concepção de natureza humana que inclui o conceito de reencarnação. Essa visão antropossociológica confere à terapia o status de modalidade terapêutica com respaldo científico e utiliza a regressão de memória como ferramenta para acesso ao inconsciente.

Podemos considerar que a terapia regressiva é uma proposta relativamente nova em abordagem da mente humana, uma vez que a própria psicologia, como ciência, está ainda engatinhando. Com pouco mais de 130 anos, podemos dizer que a psicologia ainda procura o seu caminho e seu espaço, principalmente no Brasil.

Esse novo movimento do pensamento psicológico tem raízes em Carl Gustav Jung, que iniciou sua vida profissional realizando experimentos mediúnicos, abrindo para a psicologia um vasto campo experimental e de importantes questionamentos. Essa força também chamada de psicologia profunda se liga fortemente à física quântica e à psicobiofísica.

Os questionamentos a respeito do paradigma vigente que passaram a envolver quase todos os ramos da ciência não é fato novo. O evento proporcionou um repensar na concepção de ser humano e de mundo, redirecionando os estudos e as pesquisas para o que então se entendeu serem as reais necessidades individuais humanas. A partir, então, das tradições orientais, surgiram estudos sobre os estados alterados de consciência, do sono profundo, dos sonhos, estados transcendentais, tais como mediunidade, reencarnação, entre outros.

O movimento da nova era, inteiramente novo na abordagem acadêmica, trabalhou, primeiramente, com hipóteses empíricas, iniciadas nas observações dos rituais e práticas místicas em que se procurava observar os fenômenos que envolviam os indivíduos em estado de transe. As pesquisas científicas que se seguiram confirmaram as hipóteses levantadas dos fatos observados, e o movimento cresceu, ganhando proporções inesperadas, despertando o interesse de pesquisadores e estudiosos em várias partes do mundo que passaram a se ocupar exaustivamente do assunto.

E quais as exigências que devem ser cumpridas para trabalhar com a TVP?

Como mencionei anteriormente, os conselhos que regulamentam os profissionais da saúde mental não reconhecem a terapia regressiva por considerarem que a reencarnação é uma questão religiosa e não acadêmica ou científica. Porém, a reencarnação é uma lei natural, assim como a lei da gravidade à qual estamos todos submetidos. O volume de provas documentais que existem e que evidenciam a reencarnação é tão extenso que metade dessas provas já seria suficiente para atestar qualquer teoria, por mais esdrúxula que fosse. No entanto, a reencarnação esbarra no preconceito acadêmico originário do orgulho que impede avanços maiores nessa área. Contudo, muitos profissionais sérios e de vanguarda já reconhecem o viés da nossa realidade espiritual na fonte da maioria dos males que afligem a natureza humana.

O grupo de profissionais que passou a utilizar a terapia regressiva não para de crescer. Em 1987, foi fundada, em São Paulo, a Associação Brasileira de Terapia de Vida Passada (ABTVP), o primeiro grupo oficial de estudiosos e pesquisadores da terapia regressiva no Brasil, que passou a ministrar cursos e treinamentos para profissionais da área da saúde mental. Com o passar do tempo, era de se esperar que um assunto tão novo e tão vasto como a terapia de vidas passadas acabasse se desdobrando em diversas entidades organizadas, conforme a identificação dos profissionais com os postulados filosóficos, práticas de consultório e escopo teórico, em que cada uma se estruturou.

Todas as instituições que existem adotam critérios definidos e rígidos para aceitação de profissionais em seus cursos de formação. Primeiramente, esses profissionais devem ser formados na área da saúde mental (psicólogos, médicos psiquiatras e terapeutas) e com um mínimo de tempo de atuação clínica, como em qualquer curso de pós-graduação. O treinamento oferecido pelas sociedades de terapia regressiva tem duração mínima curricular exigida na formação e especialização do profissional e inclui etapas de supervisão e acompanhamento de prática clínica, com avaliação de desempenho na aplicação da técnica e no desdobramento terapêutico. Avaliação periódica e final com provas escrita e teórica, bem como elaboração de trabalho escrito como tese de conclusão de curso. Além disso, todo aluno de qualquer instituto ou sociedade de terapia regressiva no Brasil deve se submeter, como exigência para a sua própria formação, ao processo terapêutico por meio da terapia regressiva, escolhendo um profissional credenciado e indicado pela instituição.

Não estamos querendo elitizar os procedimentos e habilitar o treinamento da terapia regressiva somente a essas instituições existentes ou aos psiquiatras e psicólogos formados por elas. Contudo, entendemos ser necessário um mínimo de experiência, não só profissional, mas também de vida, para tornar terapêuticos conteúdos de vidas passadas.

No mundo e no Brasil, qual a porcentagem aproximada de terapeutas que já trabalham com a abordagem?

Historicamente, os regressistas dividiram-se em dois grupos, conforme sua ideologia. Um deles, convencido da doutrina do renascimento, considerava a conversão a essa doutrina um pré-requisito necessário para o sucesso da terapia. O outro grupo, ao contrário, não se importava com a questão da verdade da reencarnação para seus pacientes, quanto para si mesmos. Ponderavam as chamadas “vidas passadas” como uma projeção, um impulso, provocado pelos conflitos e traumas inconscientes que se reproduzem durante a regressão. Para esses terapeutas, os resultados positivos da terapia independem da crença de que realmente se trata de uma vida passada. Crendo ou não, os resultados positivos alcançados são os mesmos.

No campo da experiência essencialmente pragmática, há hoje literatura surpreendentemente variada, abundante e convincente, a qual podemos examinar com espírito crítico: os livros da psiquiatra Maria Teodora Ribeiro Guimarães, de Campinas/SP, os meus livros, os livros do psiquiatra norte-americano Brian Weiss, o trabalho da norte-americana Hellen Wambach, PhD em psicologia, do psicólogo Morris Netherton, também dos EUA, que, em 1978, publicou a obra ‘Past lives therapy’, dando origem ao nome como a abordagem é conhecida mundialmente: TVP.

Desconheço se existe uma pesquisa oficial do número de terapeutas regressivos no Brasil ou no mundo, mas, na minha experiência em mais de 20 anos de prática clínica, pude observar um número expressivo de profissionais regressivos que vem crescendo nos últimos anos para atender a demanda crescente de pessoas que buscam por essa terapia.

Como a TVP funciona na prática?

O processo terapêutico funciona por meio de encontros regulares. São feitas sessões iniciais de entrevistas e anamnese com o objetivo de colher informações precisas sobre a problemática do paciente. Durante as primeiras sessões de terapia, entregamos ao paciente um questionário composto de 12 perguntas que englobam, essencialmente, temas relacionados à sua história de vida: sua infância, família, suas dificuldades, seus problemas, emoções e sentimentos.

Após as sessões de anamnese, iniciamos as sessões de regressão, em que não utilizamos hipnose, apenas um relaxamento. O paciente, durante a regressão, não irá dormir nem ficar inconsciente. Ele se lembrará de todos os fatos vivenciados e sentirá as emoções que acompanham os fatos recordados. Em cada sessão de regressão, iremos conhecer um personagem do passado, sua história, pelo que passou, o que fez, como viveu e como morreu. Após, iniciamos o processo de terapia de apoio, quando trabalhamos o conteúdo do passado relacionando-o com os problemas atuais do paciente. São necessárias, em todo o processo terapêutico, umas dez sessões de regressão até a alta. O trabalho todo leva em torno de seis meses a um ano.

Para quais transtornos mentais ela é mais indicada e por quê?

Aplica-se na solução de distúrbios de comportamento, fobias, transtornos obsessivos e de ansiedade, depressão, problemas físicos crônicos, bem como de ordem pessoal e interpessoal, como dificuldades de relacionamento, padrões de comportamento e características de personalidade.

E quais os resultados que os tratamentos com a abordagem vêm alcançando?

Os resultados dos tratamentos tradicionais da depressão e da ansiedade, principalmente, têm demonstrado que os procedimentos e medicamentos convencionais, muitas vezes, são pouco eficientes para uma cura efetiva. Existe um consenso, até mesmo entre os médicos e psicólogos tradicionais, de que a ação dos psicofármacos se limita, em muitos casos, a diminuir os sintomas graves ou atenuar as crises mais agudas, mas sem, no entanto, lograr uma remissão definitiva da doença. A TVP sugere um olhar e um tratamento diferenciados sobre essas patologias. A proposta da TVP não se baseia em conceitos simplesmente teóricos, mas é o resultado comprovado pela prática terapêutica que se confirma por décadas. Em minha experiência clínica, com quase 5.000 sessões de regressão de memória às vidas passadas e centenas de pacientes em mais de 20 anos de prática clínica, pude comprovar a eficácia dessa abordagem de vanguarda. São milhares de histórias reais obtidas por meio da regressão de memória que falam por si e que se transformaram em evidências claras que me autorizam a propor essa visão diferenciada e um olhar ampliado sob a ótica da nossa imortalidade.

Existe alguma contraindicação para a TVP? Explique.

Ante a demanda dessa nova proposta de cura e a partir da hipótese científica da reencarnação, muitos me perguntam se não seria contrário às leis de Deus ou, ainda, arriscado do ponto de vista terapêutico provocar nos pacientes lembranças de um passado esquecido. Argumentam que, se reencarnamos sem nos recordarmos de nosso passado, até que ponto não poderia ser prejudicial ao paciente induzi-lo a recordar-se do que é, estrategicamente, ignorado? Questionam se, ao expor o paciente a emoções intensas do passado, o fato não poderia, em vez de ajudá-lo, perturbar ainda mais a sua vida no presente? Eu reitero a alegação que reconheço justa, explicando que, do ponto de vista da amnésia imposta pela reencarnação, induzir intervenções na memória de uma pessoa de forma irrefletida, por simples curiosidade, de fato não é algo que eu recomendo. Contudo, esclareço que, do ponto de vista da proposta clínica da terapia regressiva, durante as sessões de regressão de memória, o paciente não irá se lembrar do que está esquecido, pois o que está esquecido não incomoda. Tampouco o processo de rememoração irá descortinar todo o véu que encobre o seu passado, mas apenas o ajudará a entrar em contato com episódios e personagens de histórias pontuais, muitas delas comoventes, trágicas e mal resolvidas. Por essa razão, não estão esquecidas, pois ficou algo pendente, como se fosse a ponta de uma linha que ficou solta, interferindo, hoje, em suas emoções, em suas escolhas, no seu comportamento e relacionamentos, provavelmente, há muito tempo, às vezes, a vida.

Poderia descrever com alguns detalhes um caso específico tratado com a regressão e que teve o objetivo do tratamento alcançado?

O caso a seguir foi extraído de meu arquivo pessoal, e a paciente procurou a terapia com queixa de ansiedade.

Vagando, perdido numa casa escura e vazia… Assim começa a história de uma vida pregressa de Ana, paciente que chegou ao consultório com a queixa de ansiedade crônica. Em sua primeira sessão, disse que possuía uma grande frustração na vida: não ter se casado. Aos 30 anos, foi abandonada pelo noivo às portas do casamento e, desde então, amargava a solidão por ter escolhido ficar só. Morava com a mãe, que traiu o marido com o tio e depois abandonou o lar, deixando tudo para trás. Na ocasião, ambas dividiam um espaço, sozinhas, num pequeno apartamento, rememorando o passado e o que fizeram da própria vida.

Ana era uma mulher triste, amarga e que nunca havia se preocupado com o tempo desperdiçado na busca descomedida pelas coisas materiais e prazeres passageiros. Sua maior dor era um vazio que sentia dentro da alma, um vazio que nada conseguia preencher. E quando lhe perguntei se faltava algo ou alguém para preencher esse vazio, ela não soube responder, apenas afirmou, em tom filosófico, que é como se sentisse, incessantemente, na presença da ausência: uma saudade infinita que não sabia do que nem de quem. E essa sua amargura e seu inconformismo haviam a transformado em uma pessoa mal-humorada, crítica e de difícil convivência.

– A casa é simples e tem um pequeno jardim na entrada. Fica isolada no meio de uma área repleta de árvores, muito mato e flores diversas. O sol brilha intenso, porém o clima é frio. Ao longe enxergo um pequeno lago e nada mais chama a minha atenção, não vejo ninguém.

Então pedi que entrasse na casa.

– A porta está aberta – sussurrou a paciente deitada na poltrona enquanto se imaginava seguindo por um corredor estreito que ia dar em uma pequena saleta.

– Descreva se existem móveis, objetos ou utensílios – pedi.

– A sala está vazia, as janelas cerradas, as paredes e o chão estão sujos. Sigo por um pequeno hall e entro na cozinha. Um fogão à lenha apagado, uma pia pequena e mais nada, nenhum móvel ou objeto, tudo abandonado.

Perguntei à paciente onde ficam os quartos.

– Tem uma escada de madeira ali ao lado, após a sala…

Pedi, então, que subisse as escadas. Nesse momento, a respiração da paciente começou a alterar-se, fazendo com que seu peito arfasse em descompasso. Percebi que seus olhos se reviravam em baixo das pálpebras fechadas enquanto sua artéria carótida pulsava em um ritmo acelerado. A paciente encontrava-se em estado alterado de consciência, mergulhada, profundamente, no processo de rememoração do seu passado. Posteriormente, ela me confessou que, a partir daquele momento, experimentou como se estivesse lá, andando na casa e vendo de olhos abertos, sentindo até o cheiro de pó e mofo, típico de um local sujo e abandonado. Hesitou em subir as escadas. Permaneceu longos minutos em silêncio.

– Quando você chega no alto da escada o que vê? – perguntei incentivando-a a falar, a fim de prosseguir com a história. Com voz alterada, quase como um sussurro inaudível, respondeu:

– Este é meu quarto… Onde ela está?

– Ela quem? O que tem nesse quarto?

– Nada, está vazio, tudo está vazio, não tem nada… Onde ela está, que eu procuro e não acho?… Há tanto tempo que eu a procuro nessa casa, nossa casa… Quando isso vai acabar?

– Mas quem você procura? Como é você aí, um homem ou uma mulher? – perguntei.

– O quê? Por que você está me perguntando isso? Quem é você? Onde está Gabrielle? Onde está minha amada que procuro há tanto tempo… Gabrielle… – sua voz ecoa na habitação vazia.

A paciente se via mergulhada no seu personagem passado, Giovanni, um ex-combatente da primeira guerra mundial que perdera a vida no verão de 1917, quando fazia parte de uma tropa de assalto do exército italiano.

A partir daquele momento, eu estava diante de um soldado que não possuía consciência plena de sua realidade extrafísica, encontrava-se mergulhado nos últimos acontecimentos que marcaram sua vida e sua morte. A personalidade atual da paciente, Ana, cedera espaço para ele, que se encontrava alienado ao mundo externo que o cercava. Sua mente funcionava em circuito fechado, preso ao pensamento obsessivo de encontrar sua esposa, Gabrielle.

– Conte-me o que aconteceu?

– Mas quem é você? – balbuciou o pobre soldado que se via ainda com os trajes militares e uma enorme ferida aberta no peito com o sangue escorrendo aos borbotões.

– Eu sou um amigo e estou aqui para ajudar você.

– Eu não o conheço, mas, se diz que é meu amigo, irá entender o que sinto.

– Então, o que aconteceu?

Em lágrimas ele narrou:

– Eu sei que morri, mas não entendo. Se morri, por que ainda não fui para o céu? Eu acho que não mereço o céu e talvez eu esteja no inferno mesmo, pois fiz muita coisa errada, muita maldade na guerra… E eu não precisava fazer aquilo, mas quando você está lá, no campo de batalha, parece que vira um selvagem… Meu Deus, será que tenho perdão? Depois que morri, vim para nossa casa, o único refúgio que tenho, mas ela está vazia e não encontro mais a Gabrielle. Nem sei quanto tempo estou vagando aqui, esperando-a voltar… O senhor disse que ia me ajudar, sabe onde ela está?

– Sei – disse seguindo minha intuição terapêutica.

– Graças a Deus… Agora irei encontrá-la. Onde ela está, que não a vejo? Onde?

– Mas antes precisamos conversar.

– Conversar? Mas o que o senhor quer conversar? – Mostrou-se impaciente comigo diante da perspectiva de reencontrar finalmente sua Gabrielle.

– Por favor, meu irmão, me conte o que aconteceu – inquiri em tom carinhoso, instando-o em dividir comigo sua história.

– Eu era um bom rapaz, trabalhador e honesto. Quando conheci Gabrielle, foi amor à primeira vista. O senhor não sabe como ela era linda e como eu estava apaixonado. Vago por essa habitação procurando-a, mas não a vejo, mas sinto seu perfume, como se estivesse sempre ao meu lado. Nós nos casamos e viemos morar nessa casa para construirmos nosso ninho de amor e felicidade. Pretendíamos ter muitos filhos e envelhecer um ao lado do outro, mas essa guerra maldita me arrancou do lar, me expulsou da vida de Gabrielle e até hoje, nem sei quanto tempo faz, procuro por ela desesperadamente.

– O que aconteceu na guerra? – quis saber para poder entender a razão pela qual ele se encontrava perdido e por qual motivo não havia ainda recebido intercessão a seu favor.

– O senhor nem queira saber, tenho vergonha do que fiz. Nosso pelotão era um grupo de soldados que tomava de assalto as trincheiras inimigas e ficou conhecido como Arditi. Nós rompíamos as defesas rivais a fim de preparar o caminho para o avanço da infantaria. Éramos ousados e destemidos. Com nosso moschetto armado de baioneta, invadíamos o reduto do inimigo e não tínhamos piedade, não sobrava ninguém vivo. Tanto que recebemos o apelido de “Companhia da Morte”. O senhor acha que tenho perdão? O senhor acha que Deus me perdoa? Tenho medo de encontrar Gabrielle e confessar a ela o que fiz… O senhor acha que ela irá me perdoar? – repetiu a última frase várias vezes num choro convulsivo.

– Meu amigo, preciso lhe perguntar uma coisa muito importante e quero que você me responda com sinceridade: Você se arrepende do que fez?

Ele parou de chorar. Ana, deitada na poltrona, na personalidade de Giovanni, enxugou os olhos e ficou longos minutos em silêncio. Por fim, virou-se para mim e respondeu:

– Ah! O senhor não imagina a dor que sinto na alma pelo que fiz. Essa dor é mais forte do que a dor desse ferimento no meu peito que não fecha, e minhas lágrimas de remorso são mais abundantes do que esse sangue que jorra incessantemente…

– Você se arrepende, Giovanni, de coração?

– Do fundo da minha alma eu me arrependo, mas sei o que fiz e tenho certeza de que não terei clemência.

Compreendi, por fim, que a culpa mantinha Giovanni preso ao passado impedindo-o de ser socorrido de forma efetiva. Ele não se perdoava pelo que fizera durante o período que servira ao exército italiano, quando extrapolou suas atribuições com atrocidades desnecessárias. É certo que, em uma batalha, matamos ou morremos, porém crimes contra a humanidade podem ser cometidos tanto em tempos de paz quanto na guerra. Giovanni é uma alma que carrega o peso da culpa, a qual ele considera inafiançável. Até aquele momento, essa culpa o mantinha preso aos fatos passados que se refletiam na personalidade de Ana por meio dos sentimentos de tristeza e amargura associados à sensação constante de um vazio que ocupava um espaço imenso em sua existência desde a infância.

No Livro dos Espíritos, na questão 973, Kardec indaga qual seria o maior sofrimento que o homem poderia se ver sujeito. Os espíritos respondem que a mais horrível dor que o indivíduo pode sofrer consiste em pensar que está condenado sem remissão.

Voltei-me para Giovanni, que soluçava sem parar. Senti que havia chegado seu momento de libertação. As Leis Maiores entenderam que a ovelha desgarrada poderia ser trazida de volta ao rebanho. Então, como se estivesse diante de meu próprio filho e com todo amor que possuía no coração por aquela alma sofrida, disse:

– Meu irmão, me ouça. Preciso lhe dizer uma coisa que, tenho certeza, você não sabe. Deus já o perdoou. Ele só esperava que você reconhecesse seus erros, se arrependesse e pedisse perdão. Todos nós aqui sentimos a sinceridade de sua alma, do filho rebelde que clama pela misericórdia do Pai e que agora só precisa se perdoar.

De repente, se fez um estranho silêncio. Ana levantou os braços e de sua boca ouvimos o clamor de Giovanni:

– Meu Deus… Seu perfume… Eu a vejo ao longe… Está vindo em minha direção. Minha Gabrielle, meu amor, onde você estava? Por que me abandonou sozinho nessa casa vazia? Por que não veio me buscar?

Sentimos que, a partir daquele momento, Giovanni, enlouquecido de felicidade, iniciou um diálogo com o espírito de Gabrielle presente na cena. Nós só ouvíamos a fala dele, porém, ao final, Ana nos contou o que ocorreu entre ambos e que é reproduzido a seguir.

Gabrielle surgira com trajes típicos relativos à época em que se conheceram. Apresentou-se jovem e com cabelos presos atrás, tipo um coque. Uma luz azulada esparzia de seu peito envolvendo Giovanni, que, embora aturdido, não cabia em si de alegria. Ela então, delicadamente, pousou a mão em seu ombro e falou mansamente:

– Meu querido, estive sempre ao seu lado, nunca o abandonei, o meu amor é tão grande e tão intenso que jamais o deixaria. Esperava o momento em que pudesse trazê-lo de volta, aguardei ansiosa por essa hora. Orava e pedia a Deus que os anjos o socorressem, pois meu coração se despedaçava a cada lágrima que via rolar em seu rosto. Amo você e quero vê-lo feliz novamente, quero dividir minha vida com você, quero estar ao seu lado para sempre.

Gabrielle não o condenou, nem sequer o julgou, não pronunciou qualquer palavra de crítica ou de admoestação, apenas o abraçou, demonstrando todo seu amor. Giovanni soluçava e balbuciava palavras ininteligíveis, abraçado à sua amada.

– Vamos, meu amor, vamos que vou cuidar de você. Precisamos tratar essa ferida, trocar essa roupa, você precisa descansar, ficar bem, para depois pensar no seu futuro.

Naquele momento, pensei o quanto Giovanni não tinha consciência, ainda, de que o seu futuro já havia sido delineado e se cumpria na decisão inteligente que ele tomara para a reencarnação atual na personalidade de Ana, com todas suas dificuldades e seus desafios.

Gabrielle partiu com Giovanni adormecido. Voltou-se para nós e, num olhar de gratidão e carinho, despediu-se, levando consigo seu tesouro nos braços.

Refleti no quanto o amor incondicional pode curar as feridas e transformar vidas presas ainda nos dédalos da culpa ou da mágoa.