Podemos afirmar que, em maior ou menor grau, todos nós já experimentamos o sentimento de rejeição ao longo da vida. Alguns podem ter vivenciado essa sensação na primeira infância, no seio familiar. Outros, podem ter tido a experiência em relações com seus pares, através do bullying ou mesmo diante de uma amizade desfeita. Há ainda aqueles que sofrem ou sofreram rejeição na fase adulta e essa pode se mostrar como a famosa “dor de cotovelo” vivida por quem foi “trocado” por um amante insatisfeito.
A arte imita a vida
No Romance Razão e Sensibilidade, de Jane Austen, as irmãs Elinor e Marianne Dashwood são bons exemplos de mulheres que sofreram exclusão e rejeição social e afetiva. Diante de um contexto extremamente rígido e das dificuldades trazidas pela morte do pai, as Dashwood enfrentam situações icônicas nas quais sentem o poder aniquilador da influência da sociedade londrina e de alguns membros desta. Ler o livro ou assistir ao filme nos faz sentir o peso da rejeição vivenciada por estas mulheres.
Já Peter Bretter, do filme Ressaca de amor, é outro personagem que representa muito bem quem sofre o efeito devastador da rejeição. Diante do término de um namoro, Peter se vê derrotado tendo atitudes quase autodestrutivas, que seriam trágicas se não fosse o viés de comédia da trama. Até elaborar como superar e ressignifica sua “dor de cotovelo” Peter passa por altos e baixos expressivos.
E por falar em tragédia, porque não citar a célebre obra de Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame, cujo enredo ressalta a trama de amor, rejeição, vingança, paixão e ódio vividas por Quasímodo (o corcunda sineiro da catedral de Notre Dame) e demais personagens. Embora o foco do romance não seja a vida do pobre menino abandonado pela família por ter deformações físicas, não deixamos de notar seu sofrimento, sensação de desamparo e de aversão sofridos por ele desde o início da vida.
Efeitos avassaladores
De fato, os efeitos da rejeição e do abandono na primeira infância podem ser avassaladores. A psicanálise freudiana[1] já observava a interferência dos cuidados essenciais e das primeiras relações estabelecidas no desenvolvimento psicoafetivo das crianças. O psicólogo John Bowlby, em sua “Teoria do Apego[2]”, também enfatiza o poder dessas primeiras relações para o desenvolvimento saudável do ser humano. Para o autor, o alicerce da vida social e emocional depende dos primeiros vínculos formados. Sendo assim, podemos muito bem cogitar o grande impacto que a falta de vínculos, como em circunstâncias em que há rejeição, pode proporcionar.
Em sua obra “Cuidados maternos e saúde mental”[3], Bowlby descreve as consequências e o prejuízo causados por relações precárias entre mães e seus bebês ou pela inexistência dessa relação. Segundo Bowlby, a falta de laços afetivos saudáveis e positivos na primeira infância pode, até mesmo, ter relação com a delinquência juvenil. Um estudo de 2015 mostra os efeitos negativos da rejeição entre crianças excluídas por seus pares (colegas e amigos) revelando que estes também têm maior risco de se envolver em situações de delinquência, uso de drogas, problemas emocionais e escolares[4]. Esta pesquisa nos faz pensar que, embora a teoria do apego se refira às vivências mais remotas da vida de alguém, o papel do vínculo emocional e afetivo continua sendo essencial por toda a vida do ser humano.
Reconhecimento do outro
Para Bowlby[5], vincular-se é se sentir atraído pelo outro, é querer se relacionar com alguém a quem identificamos como um indivíduo também. Quando há o reconhecimento do outro, há então um interesse. E perceber o outro como um alguém com identidade própria, alguém digno de ser amado e considerado, é o princípio basilar da manutenção do vínculo. Trata-se de uma importante validação pessoal.
Aliás, o autor afirma que a manutenção inconstante do vínculo pode ser percebida como fonte de insegurança. Diz que “é comprovadamente produtivo considerar muitos distúrbios psiconeuróticos e da personalidade nos seres humanos como reflexo de um distúrbio da capacidade para estabelecer vínculos afetivos, em virtude de uma falha no desenvolvimento na infância ou de um transtorno subsequente”[6].
Parece então que a alternância de cuidados, a instabilidade relacional e o comportamento errático dos cuidadores ou figuras parentais podem favorecer a criação de padrões comportamentais e emocionais que favoreçam a vulnerabilidade e o adoecimento psíquico. E todos estes fatores geralmente se fazem presentes em situações em que há rejeição, já que ser rejeitado significa ser preterido, desamparado, desvinculado ou não-vinculado. O afastamento físico e/ou geográfico e a indiferença dos cuidadores podem ser maneiras de se expressar a rejeição.
Vinculação afetiva
De qualquer forma, a experiência de ser rejeitado é sempre ruim porque não permite que a vinculação emocional exista ou priva o indivíduo de vivê-la plenamente. Padrões comportamentais relevantes da vida adulta podem ser reflexos diretos de conflitos e rejeição na primeira infância.
Quiçá esta breve análise nos sirva para atentarmos para a importância do papel da vinculação afetiva na primeira infância e na vida como um todo. Que possamos compreender melhor as dores das privações emocionais, como acontece na rejeição, de modo que, como tão bem sugeriu o psicanalista Carl G. Jung[7]: possamos conhecer as mais diversas teorias e dominar as mais variadas técnicas, mas “que ao tocar uma alma humana” sejamos apenas “outra alma humana” disposta a se conectar e se vincular com a primeira.
Terapia do Esquema na causa da rejeição
Na abordagem de psicoterapia cognitiva chamada “Terapia do Esquema”, Jeffrey Young[8] propõem que alguns “esquemas” ou padrões comportamentais desadaptados são estabelecidos a partir do tipo de relação que as crianças têm com seus principais cuidadores. Esses padrões desadaptados partem de pressupostos estabelecidos, crenças e pensamentos que interferem na percepção da realidade e no comportamento, por consequência.
Uma pessoa que sofre rejeição e desvinculação na infância, pode facilmente desenvolver um esquema, uma forma desadaptada de ver o mundo e os relacionamentos. E o esquema gerado na infância, pode ser acionado sempre que a pessoa sente uma necessidade (emocional ou mesmo física) semelhante na vida adulta. O complicado, é que a pessoa pode agir no presente tendo como base as emoções e sentimentos, as sensações ruins que foram criadas no passado.
Sendo assim, o indivíduo com esquemas desadaptados vive a vida inteira “usando lentes contaminadas”. As consequências de se viver com esse padrão internalizado são inúmeras. Pessoas com esquemas desadaptados podem se tornar hipersensíveis tendo dificuldade em ouvir críticas e receber feedbacks, por exemplo. Podem ser inseguras (aliás Bowlby teoriza a respeito em “Apego seguro e desenvolvimento da autoconfiança[9]”), desconfiadas e até isoladas socialmente. Ou podem se tornar extremamente manipuláveis, já que tendem a se submeter às “migalhas emocionais” que prometam uma mínima vinculação ou conexão pessoal. Não é assim que alguns amantes se comportam, se submetendo a atrocidades para não terminar uma relação tóxica? O comportamento desadaptado e disfuncional termina por afastar os indivíduos daquilo que eles mais precisam: das pessoas com quem podem estabelecer vínculos saudáveis.