Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “a sexualidade faz parte da personalidade de cada pessoa, é uma necessidade básica e um aspecto do ser humano que não pode ser separado de outros aspectos da vida”. Sendo assim, ela possui fundamental importância inclusive na saúde mental e, por isso, os profissionais da psicologia são agentes de ajuda e transformação em todos os aspectos que envolvem a sexualidade de seus pacientes. Nesta entrevista, o tema é abordado pela psicóloga Aline Sardinha.
Graduada em psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e terapeuta cognitivo-comportamental certificada pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC), tem doutorado e mestrado em saúde mental (IPUB/UFRJ) e especialização em psicoterapia de família e casal (PUC-Rio). É coordenadora do Núcleo de Disfunções Sexuais do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ) e atua em clínica particular como psicoterapeuta e supervisora.
Aline é criadora da terapia cognitiva sexual, uma psicoterapia especificamente voltada para o tratamento das questões sexuais e promoção de satisfação sexual, e coordenadora do curso de formação a distância em TCS que já formou mais de 500 profissionais em todo o Brasil. Também é autora de mais de 70 publicações, entre livros, capítulos e artigos científicos, além de pesquisas apresentadas em congressos nacionais e internacionais.
Uma de suas obras de destaque é o ‘Baralho da sexualidade – Conversando sobre sexo com adolescentes e adultos’, publicado pela Sinopsys Editora. Foi idealizado em 2017, visando facilitar a abordagem das questões relacionadas com a sexualidade na prática psicológica.
Este ano, ela lançou o livro ‘Aplicações práticas do baralho da sexualidade’, também pela Sinopsys, com os objetivos de reunir e apresentar as técnicas desenvolvidas criativamente pelos profissionais que têm utilizado o baralho em sua prática profissional nos mais diversos contextos. Dessa forma, não apenas divulga as boas ideias e amplia sua implementação, mas propicia um compêndio de possibilidades de utilização dessa ferramenta.
Por que se tornou psicóloga e como aconteceu o trabalho na área da sexualidade?
Diferentemente da maior parte dos colegas, eu sempre quis trabalhar na área de sexualidade. Fui fazer a faculdade de psicologia por conta disso. Entretanto, qual foi minha decepção? Cheguei lá e esse não era um conteúdo coberto pela faculdade de psicologia. Então, no meu caso, entrei e saí da faculdade e não tive nenhuma aula sobre os aspectos da sexualidade humana e de como se resolvem as questões relacionadas a ela; nada nesse sentido.
Como define sexualidade?
Sexualidade é uma função humana. Uma função fisiológica, psicológica, do mesmo jeito que a nutrição, do mesmo jeito que o sono e a necessidade de contato interpessoal. E ela se dá tanto do ponto de vista da relação do indivíduo com o próprio corpo quanto do ponto de vista da relação do indivíduo com outras pessoas com quem ele porventura venha a se relacionar sexualmente.
Quais são os principais problemas relacionados à sexualidade humana?
Existem algumas disfunções sexuais que são categorizadas e têm critérios estabelecidos. No caso das femininas, são as disfunções de desejo, de orgasmo e relacionadas à dor. E as masculinas são as disfunções relacionadas a desejo, ereção e ejaculação. Mas há também comportamentos problemáticos em relação à questão da sexualidade, como, por exemplo, desejos que têm alvos anômalos. É o caso das parafilias e dos transtornos parafílicos. Existem, ainda, comportamentos sexuais excessivos, como a compulsão sexual, em que a pessoa muitas vezes vai se ver colocada em situações que não condizem com os valores dela e o que ela entende como sendo saudável e seguro para ela mesma. Entretanto a grande maioria das queixas sexuais que aparecem no consultório são aquelas que não exatamente refletem uma disfunção sexual, mas, sim, a falta de educação sexual e os desconhecimentos das pessoas sobre sexualidade. Um exemplo é a crença equivocada de que o orgasmo feminino só pode ser alcançado com a penetração vaginal. Então cabe ao profissional de saúde investigar as causas reais dessas queixas. Portanto grande parte do trabalho em terapia cognitiva sexual parte de uma educação sexual ou de uma psicoeducação sexual.
Quais são as principais causas dos problemas relacionados à sexualidade?
Para entender o que causa um problema sexual, é importante compreender que a sexualidade se ancora em aspectos biopsicossociais e relacionais. Isso quer dizer que a sexualidade vai exigir um funcionamento físico que seja compatível com a função sexual. Ela vai exigir que aspectos da relação entre as duas pessoas favoreçam a relação sexual ou o contato sexual, que as pessoas estejam numa situação de conforto emocional e de tranquilidade para que a relação possa acontecer. No que diz respeito a aspectos sociais, muito do sofrimento implicado nas questões sexuais tem a ver com as normativas sexuais. Por exemplo, em relação às minorias sexuais de gênero, grande parte do sofrimento não tem a ver com o funcionamento sexual inadequado, mas com o fato de que a sociedade não aceita a expressão dessa sexualidade. Quanto mais rígidas são as normas sociais, maior o sofrimento na área de sexualidade. O sofrimento também ocorre em função de uma discrepância entre a maneira que as pessoas acreditam que o sexo deveria acontecer e a maneira como realmente acontece. E isso é que chamo de fatores psicológicos, ou seja, em função da educação sexual deficitária, as pessoas acreditam que o sexo deveria acontecer de um jeito muito diferente do que ele de fato acontece na prática. Acreditam em uma série de mitos a respeito da sexualidade. E quando elas vão de fato para a situação sexual e se dão conta de que aquilo não acontece, acreditam que têm um problema. E aí se sentem mal e usam uma série de estratégias para tentar compensar aquilo de um jeito ou de outro. Um exemplo é uma mulher fingir o orgasmo porque não consegue alcançá-lo do jeito que acredita que deveria alcançar. Ou um homem usar uma medicação para ereção quando, na verdade, não tem problema de ereção, mas acredita que sua ereção deveria durar 30 minutos. Então esses medos, esses desconhecimentos, têm a ver com os aspectos psicológicos que vão fazer com que a pessoa se sinta muito mal e use estratégias que também não favorecem e que vão acabar gerando um ciclo de manutenção das dificuldades.
E as causas orgânicas?
Existem várias causas orgânicas que impactam a sexualidade. Na verdade, todo funcionamento do corpo impacta a função sexual. Costumo dizer que alguém que fez uma cirurgia na coluna vai ter muito impacto na vida sexual. E isso mostra o quanto a gente precisa estar atento à sexualidade das pessoas enquanto profissionais de saúde. Porque não são só os indivíduos que têm disfunções sexuais precisam de ajuda. Todos vão precisar de ajuda nas diferentes etapas da vida para se adaptar a elas. Além disso, é possível que a disfunção erétil ou as dificuldades de lubrificação ou de ter orgasmo, por exemplo, ocorram em função de causas físicas também, como questões hormonais ou vasculares. Há uma série de causas físicas que precisam ser avaliadas. Entretanto a gente sabe que elas não são as causas majoritariamente responsáveis pelo sofrimento em sexualidade.
Quais são os principais sintomas que indicam problemas relacionados à sexualidade?
O primeiro é o sofrimento. Se o indivíduo está sofrendo com aquilo, já é o suficiente para buscar ajuda. Outros sintomas que podem ser observados são os do não funcionamento do ciclo sexual. Por exemplo, a pessoa não consegue ter prazer, não consegue ter desejo, ejacula antes ou depois do que gostaria, não consegue se excitar, não consegue ter ereção ou a ereção não é suficiente para manter o ato sexual, ou não tem lubrificação, ou sente dor. Ou, ainda, percebe que seu comportamento sexual a leva a perder o controle e fazer coisas que originalmente não gostaria de fazer.
E quando é a hora de procurar auxílio de uma profissional da psicologia?
O profissional de psicologia pode ajudar nas diferentes fases da prevenção. A prevenção primária engloba a psicoeducação sexual, a educação sexual escolar, a orientação de pais, a atuação junto às equipes de saúde, para que elas possam aproveitar as janelas de oportunidade do contato do indivíduo com o sistema de saúde. É função do psicólogo inclusive atuar como agente promotor de políticas públicas que encorajem a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos por exemplo. No entanto os profissionais da psicologia acabam muitas vezes sendo procurados no que a gente chama de prevenção secundária ou terciária, ou seja, tratamento. Quando dá algum problema, aí as pessoas vão procurar a psicologia. Às vezes, não são nem problemas, como, por exemplo, no caso de uma família procurar auxílio porque o filho é transgênero. Trata-se de alguém que vai precisar de apoio psicológico e multidisciplinar para se desenvolver na sua identidade de gênero numa sociedade cisnormativa. Os psicólogos também podem atuar nas diferentes fases da vida, como menopausa, puerpério e em algumas situações de saúde, como, por exemplo, no pós-covid, em que várias pessoas tiveram disfunção sexual. O papel da psicologia é fundamental e transversal ao longo de todo ciclo de vida das pessoas.
De que forma esses problemas podem ser resolvidos com o auxílio da psicologia?
Um papel fundamental dos psicólogos é construir em todos os settings de saúde e instituições uma postura de acolhimento adequado das questões da sexualidade. Também é papel dos psicólogos a prevenção, que engloba a educação sexual, atuar ativamente na prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e assegurar que as pessoas vão ter contato com profissionais de saúde na prevenção primária. Já no campo do tratamento, ele pode ocorrer por meio das psicoterapias ou das orientações pontuais.
Há cuidados específicos da psicologia para diferentes públicos na área da sexualidade, como, por exemplo, adolescência, fase adulta, terceira idade, LGBT+? Explique.
Cada uma dessas populações vai ter necessidades específicas, e a gente precisa conhecer os momentos específicos pelos quais cada uma dessas pessoas está passando. Tanto os momentos do ciclo de vida, como adolescência, fase adulta e terceira idade, quanto populações que têm necessidades especiais, que sofrem estressores específicos. Na adolescência, são questões relacionadas ao desenvolvimento psicossexual, ao início da função sexual, ao início da vida sexual. Na fase adulta, são questões relacionadas ao comportamento sexual, às disfunções sexuais, às dificuldades relacionadas às diferentes estratégias do repertório sexual. E na terceira idade, começam as associações com doenças físicas, como diabetes, síndrome metabólica, problemas osteomusculares, o próprio declínio da função sexual, com menopausa ou declínio hormonal do homem. Em relação às populações LGBT e outros grupos minorizados, há questões relacionadas a estressores de minorias e questões específicas. E é muito importante que o psicólogo conheça essas questões que são daquela faixa etária ou daquela população específica para evitar fazer um olhar individualizado, subjetivo, ou atribuir a causas psicológicas fatores que podem estar relacionados à etapa da vida, a questões socioculturais ou a questões biológicas. Então esse olhar biopsicossocial é muito importante para a psicologia, especialmente na área da sexualidade.
Como os profissionais da psicologia estão preparados para atender questões relacionadas à sexualidade?
A maior parte dos profissionais da psicologia não tem sequer uma disciplina relacionada à sexualidade. A gente entra e sai da faculdade de psicologia quase sem saber questões relacionadas ao desenvolvimento psicossexual, sem saber como tratar disfunções sexuais, sem saber a melhor maneira de abordar a sexualidade dos pacientes de forma geral. E isso é uma grande questão, porque não só as disfunções sexuais e os problemas sexuais de forma geral são muito prevalentes, como nós somos muito despreparados, não apenas os psicólogos, mas também outros profissionais de saúde. E aí a gente deixa uma lacuna grande de atuação tanto no sentido de prevenção, com educação sexual, quanto no sentido de tratamento das questões relacionadas à sexualidade, assim como no sentido de políticas públicas baseadas em evidências que são orientadas pelos profissionais de saúde. A maior parte dos profissionais não se sente nem apta a lidar com questões relacionadas à sexualidade e acaba encaminhando o paciente para outras pessoas.
Por isso surgiu a ideia de criar o ‘Baralho da sexualidade’?
Foi exatamente nesse sentido que surgiu a ideia de criar o ‘Baralho da sexualidade’. Nos últimos anos, venho me dedicando bastante à pesquisa e ao treinamento de profissionais de saúde na terapia cognitiva sexual. E fui percebendo que existia essa lacuna. Então toda a estratégia da TCS é focada em facilitar o treinamento, especialmente a distância, porque há poucos centros urbanos, como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, onde há alguns profissionais especializados na área. No restante do Brasil, não tem. O baralho veio principalmente para instrumentalizar os profissionais de saúde com ferramentas baseadas em evidências que eles possam usar para, pelo menos, fazer uma primeira etapa da abordagem. E as evidências mostram que a simples abordagem adequada da sexualidade já resolve muitos problemas. Os profissionais não precisam ser todos treinados para o tratamento, mas todos precisam ser treinados e serem capazes de fazer uma boa abordagem, uma boa educação em sexualidade, dar orientações baseadas em evidências.
E como surgiu a ideia de organizar o livro ‘Aplicações práticas do baralho da sexualidade’?
Originalmente o ‘Baralho da sexualidade’ foi pensado para dar conta de todas as demandas na terapia cognitiva sexual. E ao longo do tempo, profissionais de saúde de diversas áreas, não só psicólogos, foram me relatando que estavam usando a ferramenta nos mais diferentes settings e de formas que eu originalmente jamais tinha pensado. Isso é uma evidência da enorme necessidade que havia de ferramentas para abordar a sexualidade. E assim surgiu a ideia de criar esse livro, como uma forma de mostrar as possibilidades de aplicação do baralho, dar visibilidade para esse trabalho que vem sendo feito e incentivar mais profissionais a utilizarem. Foi elaborado como uma receita de bolo, com capítulos curtos que mostram a aplicação prática. E na apresentação do livro, encorajo os profissionais a se apropriarem do baralho como uma ferramenta que vai ajudá-los a darem conta das demandas que eles têm, ou seja, que eles possam fazer uso criativo e adequado desse recurso.