Para a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da USP, fundadora e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas autora do livro recentemente lançado “Sexo no Cotidiano”, o fato do mundo ter enfrentado a pandemia da Covid-19 exacerbou uma tendência: a da busca, cada vez maior, pelo prazer – no mundo virtual.

A data é sugestiva: 6/9 e por isso foi escolhida para uma ação comercial de uma marca de preservativo, em 2008. O resultado da campanha não se sabe, mas o Dia do Sexo passou a ser celebrado categoricamente nesta data, desde então. E quantas mudanças ocorreram nestes treze anos…

Carmita Abdo revela nesta entrevista que é cada vez maior o número de pessoas, inclusive jovens, que buscam os consultórios para tratar traumas relacionados ao sexo, inclusive a dificuldade em lidar o prazer em meio ao fenômeno das relações virtuais. A psiquiatra e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Faculdade de Medicina da USP quebra tabus sobre sexualidade e fala de outras questões relacionadas ao sexo. Boa leitura.

O sexo, afinal de contas, tem sido subestimado ou superestimado na sociedade, sobretudo a ocidental? Por quê?

O sexo não é uniformemente avaliado pelas diferentes gerações, culturas e tendências religiosas. Há grupos que o superestimam e outros que o subestimam. Ao falar de sexo compartilhado ou presencial, estamos falando de algo muito mais praticado e valorizado pelas gerações mais velhas,  enquanto que entre os  mais jovens, embora não extinto, o sexo presencial é comparativamente menos frequente, dando a impressão de que esta geração está  desinteressada. Pelo contrário, está valorizando o sexo virtual e as possibilidades de obter prazer por meio de  aplicativos, de sites e das mais variadas formas de mídia eletrônica . Nunca se teve tanta procura por alternativas, as mais diversas, do exercício sexual, como na atualidade .

Inclusive ou principalmente no ambiente virtual?

Principalmente no ambiente virtual. Isso, claro, já era uma tendência, dada a facilidade de acesso, de privacidade e  por ser barato . Com a pandemia, essa prática incorporou-se ao cotidiano , fazendo com que o sexo virtual se tornasse quase que uma necessidade das pessoas solteiras , as quais  não podiam , pelo isolamento social da  quarentena, estar com outras. Muitas, começaram  contrariadas, mas desenvolveram gosto pela nova alternativa, chegando ao longo do tempo a  preferir o sexo virtual ao presencial. 

O aumento da preferência pelo sexo virtual traz consequência para o futuro dos relacionamentos presenciais?

É cada vez maior o número daqueles, inclusive jovens, que buscam os consultórios para superar a limitação de  não conseguir ter ereção no sexo compartilhado, apesar de conseguirem  na masturbação, frente a  um vídeo ou num encontro virtual. A auto erotização e a auto-estimulação, neste caso, se tornaram tão frequentes para esses que  não conseguem ser estimulados por outra pessoa, mas apenas por si próprios. Este fenômeno é mais comum entre o jovens, enquanto os mais velhos ,  em compensação, privilegiam o cheiro e o toque como formas de estímulo sexual.. Além disso, a exuberância dos corpos e dos desempenhos sexuais na internet também interfere negativamente no desempenho,  ainda mais de quem está iniciando a vida sexual: o iniciante se compara ao que vê e se julga muito inferior , diante dos corpos com genitais mais avantajados e mais desenvolvidos, com as curvas, os músculos e outros atributos que não tem. Isso acaba ferindo a sua autoestima e a sua autoimagem, o que consequentemente resulta no prejuízo da prática e do prazer sexual. Mas há também consequências positivas: maior possibilidade de conhecimento do próprio corpo, por exemplo, favorecendo mais prazer no sexo.

E quanto aos relacionamentos interpessoais? Eles também ficam comprometidos com esse comportamento?

Imagina um rapaz que tem uma namorada bonita, mas que não seja desenvolta sexualmente nem tão linda quanto à moça do vídeo: essa namorada pode  ser menos valorizada quando o encontro presencial se der. Raramente alguém   comenta que  acabou de fazer sexo virtual, quando surge um convite  para o sexo presencial. Costuma-se aceitar, mas sem muito entusiasmo, passando a impressão de inibição sexual ou falta de vontade – vontade essa que já foi satisfeita. Portanto, não há de fato desinteresse sexual , mas a substituição de uma forma por outra , não havendo  energia , libido, para absorver as duas em um curto espaço de tempo.

Com a pandemia, os parceiros sexuais que moram juntos puderam manter a vida sexual. Mas quem  tinha uma parceria distante, ou nem tinha, ficou sem a alternativa do encontro, apelando para a internet, por conta do isolamento social.

Embora não se deva fazer  exercício de futurologia, pois a chance de errar é grande, podemos supor que – como as demais atividades terão de agora em diante caráter híbrido ( parte on line, parte presencial), essa também será uma possibilidade para o sexo, quando o isolamento social for superado. Por outro lado, havendo apenas  interesse pelo sexo virtual, correríamos o risco de tornar os órgãos dos sentidos, responsáveis pelo tato, o paladar e o olfato, cada vez menos estimulados –  fato que pode gerar consequências. Seriam perdas que acarretariam necessariamente o  desenvolvimento de outras fontes de excitação. Mais um aspecto a considerar é a sedução que nos leva a sintonizar com  outra pessoa, para conquistá-la. Decidindo escolher entre as diversas opções disponíveis no aplicativo, têm-se acesso a um sexo mais imediato e,  ás vezes, atropelado , sem envolvimento, sem a necessidade da sedução tradicional. Se já é complexo descobrir quem é quem , quando se estabelece um relacionamento presencial, imagine agora? Nessa era dos aplicativos, surgem aqueles que  se passam por quem não são e outros que se tornam presa fácil. Apesar disso, as pesquisas  mostram que 25% dos relacionamentos que se iniciam por aplicativos se efetivam em namoro . Portanto, não devemos demonizar a internet. Ela, se bem dirigida, é extremamente benéfica. Por exemplo: a Educação Sexual pela internet,  é uma alternativa muito interessante que deveria ser mais oferecida ,  como forma de ampliar as  chances de uma iniciação sexual mais saudável.

Apesar de tantas possibilidades, inclusive a virtual, sexo ainda é um tabu…

Nem todo mundo  está pronto para conversar com adolescentes ou adultos sobre sexo. O ideal é que isso aconteça com profissionais especializados – e neste caso a internet pode ser uma solução, levando esses profissionais ao encontro dos interessados.

Num momento em que se fala de diversidade e inclusão, como, a seu ver, a sociedade encara o sexo entre a população LGBTQIA+, idosos e pessoas com deficiência?

A diversidade é um fato, para o qual nem todos estão preparados. Só se consegue inclusão por meio da educação , no sentido do respeito ás diferenças. Temos um caminho a percorrer até conseguir este cenário. Quanto aos idosos: muita gente acredita que tenham  vida sexual precária: se por um lado o repertório sexual se restringe, devido à menor mobilidade física para posições ousadas por exemplo, a transa ganha em qualidade por conta do envolvimento, da cumplicidade e da intimidade. Também pouco se fala dos deficientes, como se eles não tivessem libido, a qual está preservada e saudável em boa parte deles. Apesar de estarmos num momento de mudanças, uma parcela da sociedade ainda não encara com naturalidade  essas questões.

Quais são, a seu ver, os maiores traumas relacionados ao sexo?

No caso de homens, o centro das atenções é o pênis: desde o tamanho até a capacidade erétil que, quando não são satisfatórios,  os constrangem e os deixam em condição inferiorizada em vários aspectos da vida, não só no aspecto sexual. Já para as mulheres é questão de muito sofrimento o desejo sexual não  compatível ao da parceria: às vezes, elas têm mais necessidade romântica que erótica, obrigando-se a fazer mais sexo  do que de fato desejariam e incidindo em   auto – agressão. Não se trata de violência da parceria, pois esse é um segredo guardado a sete chaves, no intuito de supostamente não por em risco o relacionamento.

Como a senhora enxerga as abordagens terapêuticas para a cura destes traumas – estão acompanhando as mudanças do tempo? Por quê?


Os terapeutas estão par e passo com as mudanças, mas o desafio é que quem os procura nem sempre está á  vontade  para relatar o que levou á busca de ajuda. Por exemplo, o motivo alegado pode ser falta de ereção – mas ao  aprofundar o conhecimento do caso, o terapeuta se dá conta que a falha  acontece não  por uma disfunção, mas por uma preferência não convencional que impede a função sexual em condições convencionais.   Para ilustrar: um fetichista pode procurar terapia, com a queixa de ereção não  satisfatória, num relacionamento, o que é real. Entretanto , se excita com uma calcinha, fato que não havia sido referido de pronto.

Qual a sua mensagem para esse Dia do Sexo?

No dia do Sexo cabe lembrar aqueles que não têm no sexo uma fonte de prazer. Em 2016, coordenei a pesquisa “Mosaico 2.0”, com 3 mil participantes , entre 18 e 70 anos. Os entrevistadas pertenciam a  sete regiões metropolitanas: São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador, Belém, Porto Alegre e Distrito Federal. Ficou constatado que  7 a 8% das mulheres e 2 a 3% dos homens brasileiros  vivem bem sem sexo , direcionando sua libido para outras formas de realização, como uma carreira, uma missão ou um projeto . Esse grupo de assexuais, que não é pouca gente, também se constitui numa diversidade , a qual – como as demais – merece todo o nosso respeito.