Jorge Forbes, médico psiquiatra e presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana analisa os tempos líquidos, os efeitos da pandemia e também fala sobre a ética do medo e o futuro da profissão
Quando o sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, trouxe para a sua obra o conceito de modernidade líquida, nos anos 1990, mostrando como as relações sociais e políticas após o fim da Segunda Guerra Mundial se tornariam frágeis, fugazes e maleáveis, ele sequer poderia imaginar como isso faria ainda mais sentido durante a pandemia do coronavírus. O que antes se supunha acontecendo de maneira pontual, revelou-se, de uma hora para a outra, uma realidade urgente a ser enfrentada. Na visão de um dos principais nomes da Psicanálise no Brasil, Jorge Forbes, o momento é de transição, entre um modelo de organização social chamado por ele de Terra Um, baseado na verticalidade, na hierarquia, na autoridade, para a Terra Dois, caracterizada pela solidariedade e interdependência.
Nesta entrevista exclusiva ao portal Sinapsys, o médico psiquiatra e psicanalista, membro das Escolas Brasileira e Europeia de Psicanálise, da Associação Mundial de Psicanálise e presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana, também fala sobre a ética do medo e o futuro da profissão. Confira:
Se o medo, antes da pandemia, já fazia parte da sociedade, como ficou agora que estamos vivendo em meio a uma pandemia?
Antes de tudo, é preciso diferenciar a pandemia da Ética do Medo. Uso uma classificação de Freud, num texto que está completando 100 anos, “Além do princípio do prazer”, no qual ele fala das três maneiras distintas do homem reagir ao perigo, que se diferenciam pelo objeto perigoso e pela maneira com a qual passa a se defender desse objeto. Quando o objeto é conhecido, e o homem possui meios para se defender, ele tem medo. Se conhece o objeto, mas desconhece como se defender, o homem sente angústia. Mas, quando não conhece nem o objeto, nem o meio, o homem sente terror. Com o surgimento da pandemia, ficamos aterrorizados. Por essa razão, muitas pessoas tentaram se defender das formas mais primitivas conhecidas, e que fazem parte das suas histórias pessoais. Os histéricos ficaram mais histéricos, os obsessivos mais obsessivos, os paranoicos ficaram cheios de razão e por aí vai. A tendência é que, conforme as informações sobre a doença e as maneiras de preveni-la fossem sendo conhecidas, o terror daria vez ao medo. Outra coisa é a ética do medo, que foi trabalhado especialmente por um discípulo de Martin Heidegger, Hans Jonas, que escreveu o livro “Princípio responsabilidade”, no qual diz que, na falta de padrão, na queda das verticalidades, que correspondem à mudança da modernidade para a pós-modernidade, hoje Terra Um para Terra Dois nos meus termos, nós deveríamos entrar numa ética do medo, na ética da prudência. E isso se antepõe à ética da criatividade, a ética do desejo, a ética do entusiasmo – inerentes ao risco e que faz parte da vida humana. A vida humana sempre nos surpreende, nos equivoca, nos traz bons e maus encontros. O ideal do medo é o ideal da neurose obsessiva.
É possível encontrar um GPS que mostre o caminho a ser tomado neste ‘novo normal’?
Não há piloto automático e esse GPS precisa ser atualizado a cada minuto. Neste momento, temos duas opções: para as pessoas que acham que dá muito trabalho viver, elas podem se acomodar em algum livro de autoajuda ou uma igreja que nasce a cada esquina, por exemplo. Mas há as pessoas que querem participar da construção do verdadeiro renascimento que representa a revolução tsunâmica da tecnologia, que ‘horizontalizou’ os laços sociais, no início dos anos 1990, transformando uma sociedade vertical, padronizada, rígida, hierárquica, linear a Terra Um, em uma sociedade flexível, múltipla, criativa, responsável, que é TerraDois. Esse é um momento único na história da humanidade e devemos estar contentes de podermos viver isso. Concluo que temos um medo localizado que é o coronavírus, que é diferente da ética do medo, que é uma ética de prevenção. A Terra Dois está para os audaciosos, tais quais as caravelas que descobriram o novo mundo, que para aqueles que querem voltar rápido para casa.
Temos o caminho do meio? Nem caravelas, nem cavernas?
Estamos tirando o pé de uma terra e pondo-o em outra, com muita insegurança e receio, mas é um medo localizado. A vanguarda já está lá do outro lado, mas é minoria. Também já podemos identificar os early adopters, como as empresas as chamam as pessoas que se dispõem a ser os primeiros a experimentar novas formas de viver, que estão teorizando e legitimando o novo mundo. Tem, ainda, o pelotão de trás, que segue o movimento. E bem atrás estão os apavorados, que ainda estão querendo reivindicar o local do pai, ou colocar palmatórias nas escolas, ou algo semelhante, bradando pela militarização na vida (e qualquer alusão não é mera coincidência), achando que a vida fica melhor quando você não tem qualquer tipo de dúvida.
Mas, resistir às mudanças não é, afinal, humano?
De um lado, a mudança nos fascina, a esperança é sempre a ambição do novo, do diferente, do agora vai. Mas, por outro lado, há o medo que afirma que pode ficar pior. A maior parte das pessoas prefere o sintoma do conhecido do que o risco do novo. A neurose de cada um é algo que cada um se queixa, mas afaga como se fosse um ursinho querido, pois o benefício secundário da neurose é muito grande. Isso acontece porque o ser humano é um ser que primeiro existe, depois se forma, diferentemente dos animais, que já nascem formados. Sartre resumiu isso numa expressão singela e esclarecedora: ‘nos animais, a essência precede a existência; nos humanos a existência precede a essência”. Isso significa que o cavalo sabe ser um cavalo – o que é uma vantagem e desvantagem, porque um cavalo ou qualquer outro animal só sabe ser o que é. Nascemos desprovidos de qualidade, somos seres muito frágeis, porque nossa essência é vazia e frágil. Por outro lado, somos a única raça criativa dentre os animais. Por isso, não há nada mais perigoso que o bicho homem: não conseguimos prever um comportamento. Essa nossa constituição é múltipla, liquida, horizontal, criativa. Mas é a primeira vez em que a sociedade deixa de ser vertical para ser horizontal, em 28 séculos! Todas as éticas anteriores são verticais, todas as maneiras como o mundo se equilibrou até agora foi a partir de laços sociais baseados na verticalidade, na disciplina, no linear, na hierarquia. Estamos em Terra Dois, com remédios de Terra Um. Já estávamos numa sociedade horizontal no seu funcionamento, mas fingíamos que nada estava acontecendo: que a escola continuaria como sempre foi, ou o direito, ou a psicanálise baseada no complexo de Édipo. Fingimos maravilhosamente que nada estava ocorrendo, que a revolução tecnológica não mexeria com a gente, que tudo se resolve com um muro. De repente, está todo mundo assustado porque teremos de aprender a viver numa terra pós pandemia. Temos de aprender a viver de uma nova forma. O vírus vai passar, a pandemia passa, mas o efeito da solidariedade e da incerteza que ele trouxe, da vida arriscada que temos, espero que não passe. Espero que não tenhamos de ficar congelados em nenhum novo normal, outra vez.
De que maneira essa nova realidade vai afetar o trabalho do psicanalista?
Fui formado no conceito do “Freud Explica”, pelo qual uma pessoa faz análise para se conhecer melhor – e, em decorrência disso, passa a agir melhor. Essa maneira de enxergar a Psicanálise ainda é a mais conhecida, pressupõe que a ação humana seja, num primeiro momento, elaborada antes de agir. Mas, a essência vazia do homem, o leva a agir primeiro e, só então, explicar o que fez. Quando a sociedade rompe com as padronizações do sentido, fica mais evidente que a ação humana é anterior ao seu pensamento. Por isso, eu acredito no conceito que chamo de “Freud Implica”, pelo qual dizemos à pessoa que, em inúmeros momentos da vida, não existe nada além daquilo que ela mesma está dizendo sobre si mesma. E, por isso, ela tem que tomar mais cuidado, no sentido de consequência, com o que diz. Todas as tentativas de tampar os buracos com os quais somos constituídos são fadadas ao insucesso. A clínica que exerço hoje leva em conta o complexo de Édipo, mas, além, também leva em conta que o mundo mudou, que é necessária uma psicanálise pós edípica, que além do tratamento dos traumas passados, cuida das angústias do futuro: se tenho 10 opções para escolher e se eu escolher uma, perco 9…
Qual é a sua perspectiva para a profissão de Psicanalista?
Os profissionais devem acordar para a pós-modernidade. Achei muito curioso ouvir vários colegas assustados, na pandemia, sobre usar alguma plataforma digital para atendimento, achando que não daria certo. Para a Psicanálise é um momento especial. É a teoria e a prática que melhor elabora o conceito lacaniano de Real, que melhor elabora o desejo e, por conseguinte, que melhor pode ajudar as pessoas nesse tsunami que atravessamos, além de ser a que pode ajudar a sociedade civil, empresas e escolas a se refazerem em um novo mundo. A Psicanálise é capaz de levar a uma ética de Terra Dois, e não à moral congelante como querem fazer.