Nossa vida em sociedade implica em termos que lidar com as emoções que surgem espontaneamente a partir de nossa intimidade, mas também de elaborarmos tudo aquilo que é provocado em nós pelo contato com a realidade, e consequentemente com as outras pessoas, componentes que são dessa realidade externa.

Curiosamente, isso surge até nos sonhos, que é um dos atos mais íntimos de cada um: Freud[1] já apontava que nos sonhos aparecem emoções e sentimentos provenientes das profundidades de nossa vida emocional, mas também resquícios de situações vividas a partir de nosso dia a dia mais imediato, a que ele chamou de restos diurnos. São situações pelas quais passamos no nosso cotidiano, e que, por alguma razão interna, nos mobilizam, muitas vezes sem nos darmos conta disso no momento em que temos contato com elas. Surgem de maneira, digamos, “disfarçada”, nos nossos sonhos, quase sempre modificadas e em circunstâncias diferentes daquelas vividas, constituindo a maneira como o “teatro do sonho” se organiza.    

Termo e conceito

O termo política deriva de pólis, que era o nome dado a cidade-estado grega, a mais famosa das quais foi Atenas. Aristóteles, um dos maiores filósofos dessa época, dizia que o homem era um “zóon politikon”, um animal político, por natureza, ou seja, “é da natureza humana buscar a vida em comunidade e, portanto, a política não é por convenção (nómos), mas por natureza (phýsei)”[2].  

Política e Psicologia são, portanto, termos que estão mutuamente imbricados. Política trata de nossa vida em sociedade, psicologia diz respeito a maneira como nos relacionamos com nossa própria vida interior, que contém as emoções que nos são suscitadas por nossa intimidade e também pelo contato com a vida em geral, o que inclui nosso contato com nossos semelhantes. É aqui que a psicanálise tem uma contribuição importante a fazer.   

Bion nos fala do encontro do bebê com a mãe, e com a capacidade desta de “sonhar” as necessidades e angústias da criança. Chamou a esse fenômeno de “reverie”, ou seja, a mãe se coloca no lugar do bebê, e metaboliza a emoção vivida pela criança, que a recebe de volta mais amenizada. Por exemplo, o bebê pode sentir uma fome intensa, e sente isso como uma ameaça a sua vida, o que acaba evoluindo para uma sensação de terror.

A mãe percebe o que se passa, através de sua imaginação e da sua própria experiência de ter sido um bebê, cuida da criança e a tranquiliza. O que poderia ser uma grande crise emocional para a criança é assim contornada. Se a criança puder evoluir, ela poderá aprender dessa experiência, e gradativamente a vida passará a ser menos ameaçadora, e o contato com os obstáculos que irão surgir (a fome é um dos primeiros deles) será transformado em crescimento e criatividade.

Experiências inevitáveis

Podemos dizer que a mãe em primeiro lugar, e a família em seguida, constituem o primeiro contato que o bebê tem com um grupo, que posteriormente se amplia e passa a ser a sociedade. Estamos aqui já no âmbito da política, nesse sentido de lidarmos com o “não-eu”, aquilo que nos é externo, que pertence ao outro, mas que, de maneira as vezes fundamental, nos afeta. Estas são experiências inevitáveis pelas quais a criança passa, e que vão ser constitutivas na formação da própria personalidade.

Depois, passamos a lidar com a política no sentido mais habitual do termo, ou seja, com o outro num sentido mais amplo, e também com as estruturas sobre as quais nosso sistema de vida em grupo se organiza (capitalismo, socialismo, comunismo, etc,), o que inclui a nossa representatividade nesse tecido social maior, usualmente feita através de nossos representantes – os políticos.

Uma questão que sempre surge diz respeito a maneira como diferentes propostas são vistas por diferentes grupos. De certo modo, podemos dizer que cada um de nós “transforma” a realidade segundo sua capacidade de contato com ela, e segundo a repercussão emocional que essa realidade mobiliza na nossa intimidade.

Isto significa que podemos nos aproximar mais ou menos da verdade essencial de cada situação, a depender da higidez de nossa capacidade psíquica. Podemos exemplificar isso com a velha questão do copo meio cheio ou meio vazio. Se eu for mais otimista, vejo o copo meio cheio, se for mais pessimista vou enxergá-lo meio vazio, e se eu for realista poderei percebê-lo como realmente é: meio-a-meio. Claro que estou simplificando radicalmente a questão, mas isso porque ela nos leva a outro assunto, esse sim, muito importante e complexo.

Percepção da realidade

Nesta luta por criarmos nossa própria percepção da realidade, acontece uma questão muito contemporânea e significativa para nossa saúde mental, que é a formação de grupos radicais, unidos através das diversas tecnologias digitais do nosso mundo contemporâneo, e que se julgam “portadores da verdade”.

Mais do que isso: esses grupos digitais julgam que, além de portadores da verdade absoluta, é seu papel fazer a catequese ou a conversão a seus pensamentos de outros seres humanos, supostamente menos favorecidos nesse contato com “a verdade absoluta”.

Estas situações são naturalmente indutoras de radicalizações, e é aqui que nossa vida mental é afetada. Melanie Klein, genial psicanalista de origem alemã, observou que existe um mecanismo mental, que ela chamou de “identificação projetiva”, através do qual as pessoas podem se influenciar umas às outras.

A era das fake news

Esse é um dos mecanismos utilizados pelo que em nossa época tem sido chamado de “fake news”. Elas se baseiam na ideia de que uma mentira repetida à exaustão acaba se tornando uma verdade para algumas pessoas. À medida em que é criada uma teia de mentiras, isso passa a ser deletério para o tecido social e também para a vida mental dos indivíduos.

Eles acabam sendo convencidos de alguma coisa que não tem nenhum respaldo na realidade, o que provoca discussões, destinadas a provar a qualquer custo que a pessoa está com a razão, a provar a superioridade de um ponto de vista sobre outro, embora sem lastro na realidade, e apenas com a intenção de “ganhar a discussão”.

Bion nos mostra que, para a saúde mental, a disposição à verdade é fundamental: a vida não pode ser construída de maneira saudável com base em mentiras. Infelizmente, a avidez em excesso, a busca desenfreada de prestígio e poder acabam sendo estímulos fortes para a construção mentirosa.

Estamos vendo isso acontecer nessa guerra entre Ucrânia e Rússia: o que temos como realidade é que um país está dizimando outra nação, com a justificativa de se proteger de um perigo que a Ucrânia poderia vir a representar no futuro, pela associação a OTAN. Claro que poderíamos nos perguntar se a OTAN seria necessária a esta altura, mas outras alternativas de caminho poderiam ser tentadas, que não implicassem na perda inútil e dolorosa de inúmeras vidas, famílias separadas, crianças desamparadas e muito sofrimento físico e mental.

Mente totalitária

Em artigo recente, Luis Meyer faz algumas considerações sobre o que ele chama de mente totalitária, acrescentando também a figura da mente aderente (aquele que participa e comunga com o ideal autoritário), e da vítima, a pessoa atingida pelo autoritarismo.

É uma análise interessante sobre o fenômeno do totalitarismo, visto da perspectiva de um funcionamento mental estruturado em termos de domínio e poder sobre o outro.

Citando Hannah Arendt e Bion, Meyer nos propõe que “o self autoritário, imbuído do sentimento de que possui todas as qualidades de existência”[3], volta-se para a vítima, e passa a funcionar como uma força ejetora da existência de uma mente independente. Utilizando com liberdade essas ideias, podemos dizer que as “fake news” procuram anular a capacidade de pensamento e de julgamento do outro, procurando sempre convencê-lo da verdade absoluta de seus conteúdos. É assim que a existência do outro é atingida e eliminada.

Na medida em que a pessoa atingida não consiga usar de sua própria “autoridade pessoal” para discernir o que é real do que é falso, sua saúde psíquica vai ser atingida. A mente, como dissemos anteriormente, não pode funcionar saudavelmente baseada numa mentira.

A “autoridade pessoal” de cada um é algo necessário de ser conseguida ao longo da vida. Diz respeito a tentar utilizar o próprio discernimento para se guiar pelos fatos, e não pela manipulação que frequentemente se faz dos fatos.

Tentar observar com cuidado e pensar sobre o que acontece, procurando não se deixar levar apenas pelas primeiras impressões e pelas impressões de outros. Nossas primeiras impressões, geralmente intuitivas, são importantes, mas devem ser acompanhadas pela observação da evolução das situações, e essa evolução pode eventualmente nos levar a mudar de ponto de vista.

Frustrações fazem parte da vida

A política com ”P” maiúsculo é aquela que se preocupa com o bem-estar da sociedade e das nações em geral, com a visão do estado como uma estrutura que pretende atender ao grupo de cidadãos como um todo.

Já a política, com “p” minúsculo, aquela movida por interesse escusos, que visam somente a um bem-estar mesquinho e avaro, procura invadir e controlar a mente do outro, levando-o a tomar decisões e criar opiniões que estão baseadas em mentiras, e consequentemente levam a profundas frustrações.

Frustrações fazem parte de nossa vida, desde o nascimento, mas quando percebemos que fomos manipulados, que fomos levados a acreditar em fake news, em mentiras e inverdades, somos tomados de profunda decepção com a vida, com o mundo e com nossa vida interna.

Essa situação, que podemos chamar de auto-ódio (em oposição a auto-estima), acaba por constituir um desafio a nossa saúde mental. E não só para a saúde mental, mas para nossa integridade física também. Muitos problemas físicos são influenciados pelos fatores psicológicos que entram em jogo como resultado do que chamei de auto-ódio.   Este constitui um desafio para nosso equilíbrio psíquico: confrontos exaltados em discussões, muitas vezes com nossos próprios familiares e com nossos amigos, acabam por minar nossa vida interior, e por consequência atingem também nossa saúde mental.

Estrutura emocional abalada

Quando podemos desenvolver uma maturidade que nos permite participar desses embates sem que isso atinja nossa estrutura emocional, não somos tão atingidos pelo radicalismo de certas opiniões.

Mas há sempre, em cada um de nós, áreas da personalidade que permanecem vulneráveis aos verdadeiros “ataques” verbais que nos atingem diariamente, seja no confronto direto com as pessoas, seja através das redes sociais, presentes praticamente a cada instante na nossa vida.

Freud percebeu, muito habilmente, que somos todos dotados do que ele chamou de pulsão de vida, uma disposição ao crescimento e auxílio mútuo, mas também de uma pulsão de morte[4], ou seja, de agirmos de maneira a nos prejudicarmos e aos outros.

Foi um dos conceitos desenvolvidos mais ao final de sua vida, e ele se torna evidente quando olhamos a organização do mundo a nosso redor. Dia a dia somos confrontados com a destrutividade que comanda muitas das ações humanas, e que compromete a qualidade de vida de muitos dos nossos contemporâneos. E em muitas situações compromete a própria possibilidade de continuar existindo como seres humanos dignos.

E MAIS…

Grau elevado de solidariedade

Felizmente, a humanidade tem contado ainda com um grau muito elevado de solidariedade, de disposição para o auxílio mútuo entre as pessoas, com a predominância desse sentimento de que a vida de maneira geral é muito maior e mais importante do que as miudezas e mesquinharias que aparecem no nosso cotidiano.

Isto se torna possível através da criatividade que cada um de nós consegue mobilizar e desenvolver ao longo do nosso trajeto de vida, que vai ser atravessado inevitavelmente por obstáculos e por percalços. Estes, quando enfrentados de maneira ativa permitem que desenvolvamos uma espécie de “musculatura” mental, que nos capacita a manter nossa saúde mental. 

Heródoto[5] nos relata, ao abordar a guerra entre gregos e persas, que Sólon, o ateniense, considerado um dos sete sábios da Grécia antiga, visitou Creso, poderoso e rico rei da Lídia. Este, orgulhoso de sua riqueza, perguntou a ele quem era o homem mais feliz que ele havia visto, certo de que a resposta seria ele próprio. Sólon respondeu que era Telo, um pouco conhecido cidadão de Atenas. Instado a justificar sua resposta, disse: ele residia numa cidade florescente, teve 2 filhos lindos e virtuosos, que lhe deram netos, e terminou seus dias em defesa de seus ideais. Foi também honrado por seus conterrâneos. Conta-se que Creso ficou muito surpreso com a resposta, que levava em conta o quanto Telo havia vivido uma vida de acordo consigo mesmo, com sua pólis e suas convicções.

Onde encontraríamos esse tipo de sabedoria hoje? 

Referências

[1] Freud, Sigmund in “A Interpretação de Sonhos”, p. 175, Imago Editora, 1972.
[2] Introdução a História da Filosofia, livro de Marilena Chaui, p.463, ed. Cia das Letras, 1994.
[3] Meyer, Luiz in “A Mente Totalitária”, Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 52, n.3, p. 55.
[4] Freud, Sigmund in “Além do Princípio do Prazer”, SE vol. XVII, p. 82, nota 1Imago Editora, 1976.
[5] Heródoto in “História: relato da guerra entre gregos e persas”, p. 59, Prestígio Editorial, 2ª edição, 2001.