Essa análise sobre o filme belga “Young Hearts” possui spoiler. Mas os fãs do longa-metragem de Anthony Schatteman não estão preocupados com isso, pois de fato já conheciam o filme antes mesmo de assisti-lo.

O mesmo aconteceu comigo: vi o filme aos pedaços, através das redes sociais de meus jovens leitores antes mesmo de acessá-lo em uma plataforma de vídeos. Houve muita recomendação, principalmente daqueles que leram meu livro juvenil “O mistério das quatro estações”, por acreditarem que as duas obras possuem pontos convergentes.

Singularidade da adolescência

Ao assistir ao filme, fiquei anestesiado. A obra denota a singularidade da adolescência, a necessidade de convívio social dos jovens e a importante manutenção da estrutura familiar que garanta respostas qualitativas aos medos e às inseguranças que essa fase da vida gera em todos nós.

Ao assistir esse filme, revivi alguns lutos de minha infância – a perda da identidade infantil, a perda dos pais da infância (quase sempre idealizados) e a perda do corpo da infância.

O filme provocou em mim o desejo de voltar ao universo da adolescência e encontrar soluções efetivas para alguns dos meus conflitos internos, tema trabalhado em terapia e representado em muitas de minhas obras adolescentes.

A passionalidade juvenil e a nostalgia são matérias-primas de projetos culturais de sucesso, sejam blockbusters americanos ou peças de teatro shakespearianas.

A referência a “Romeu e Julieta” no filme não é meramente ilustrativa: está no âmago de uma crítica muito bem construída sobre as barreiras culturais e institucionais que separam jovens apaixonados e os mantêm presos aos rígidos controles político-sociais desde a Antiguidade.

Simples e também profundo

É nesse filme simples e profundo, falado em língua holandesa, que a rebeldia juvenil finalmente se deflagra de forma inteligente, por meio do pensamento e não das ações, sempre a serviço da desconstrução dos imperativos sociais que censuram corpos e ideias.

No filme “Romeu e Julieta”, com DiCaprio e Danes, os jovens apaixonados se veem, pela primeira vez, através da distorção criada pela água de um aquário – forte referência aos espaços transicionais da infância citados por Melanie Klein, marcados por fantasia idílicas que atravessam a realidade e nublam as ações conscientes da criança.

Em “Young Hearts” acontece o mesmo: o aquário está lá, entre Elias e Alexander. Da primeira vez, em estado de sofrimento por se descobrir homoafetivo, Elias se deixa levar pelo íntimo fantasioso representado pelos peixes. É por causa desse conflito interno que Elias se separa de Alexander e entra em conflito com seu namorado.

Ao viajar com o avô, encontra um novo aquário e lembra de seu objeto de afeto. Certo de que conseguirá lidar com a realidade objetiva em que vive, em clara alusão ao desejo de afastar pensamentos derivativos, o protagonista bate no vidro do aquário, assusta os peixes e ri.

Com essa cena, Schatteman nos convida sutilmente a afastar as fantasias neuróticas derivadas da infância, principalmente quando nos distraem das principais demandas da vida adulta. 

Novelos emocionais

O filme apresenta uma comunidade funcional, com famílias fundamentadas através da tolerância, do diálogo e dos vínculos amorosos entre seus membros.

É desse universo bem estruturado que surge o amor entre os dois meninos, que se aproximam no bairro em que moram, na escola e através de interações profundas que valorizam, acima de tudo, o estupor da paixão e o desalinho de seus novelos emocionais.

Saeger interpreta Alexander, o ser continental, a referência do rapaz bem resolvido, desbravador, masculino e feliz – dono de uma segurança construída na forja de uma educação liberal.

Goossens, no papel de Elias, é o protagonista, um dos melhores atores de sua geração, dono de uma capacidade dramática madura e fascinantemente realista. Seu papel é delicado e feminino, dono de uma Ânima junguiana, revelada a conta-gotas para o público.

As lágrimas, sorrisos e olhares stanislavskianos desse jovem ator emprestam credibilidade ao filme e hiperbolizam a emoção de seus fãs, tanto meninas quanto meninos.

Convergência poética

O autor e diretor Anthony Schatteman carrega na latência sexual dos personagens e os defende ao afastá-los simbolicamente de uma lógica sexual adulta. Assim, respeita os limites das adolescências recém-descobertas dos personagens e, dessa forma, não contraria as mentalidades mais conservadoras.

Esse cuidado oportuniza uma convergência poética com diferentes públicos. A obra é articulada sobre ponto de vista plural e dicotômico e evade a bolha LGBT, pois causa alívio emocional ao jovem que precisa de esperança na funcionalidade familiar, na conquista dos direitos das minorias, na certeza de que desejos poderão se tornar realidades e na relação saudável entre amigos, principalmente nas escolas.

Assim, a conquista pelo público adolescente, principalmente dessa Geração Alpha, vai acontecer através de falas curtas, cenas breves e de desenlaces perfeitos para situações desiderativas.

Uma estratégia assertiva, pois os psicólogos já deixaram claro, através de pesquisas acadêmicas, que essa é uma geração que exige o gozo antes mesmo das condensações – isto é, só se lançam às construções (condensações pulsionais) quando percebem que há uma chance de deslocamento do desejo e dedescarrego (gozo)das emoções nofinal do processo.

Uma narrativa de esperança

A obra também possui pontos controversos: há uma expectativa de maior crise por parte dos personagens. O diretor acerta em não apresentar o típico dramalhão com final trágico comumente observado nos longas com legenda LGBT, porém, em alguns momentos, apresenta resoluções de conflitos bastante idealizadas. Importa salientar que a açãodos personagens não é estrambólica: está sempre no universo latente do garoto Elias, que descobre sua sexualidade.

Nesse sentido, o autor/diretor aproveita a expressividade de seu ator protagonista para apresentar os solilóquios internos do personagem no melhor estilo de Dostoievski.

A história se passa no interior de uma Bélgica idealizada, cuja sociedade liberal está decidida a abraçar a diversidade. O otimismo do autor/diretor pode não ser realista, mas constrói uma narrativa paralela que alimenta os atuais jovens de esperança.

Sua visão telúrica e pouco realista do mundo está também impressa nos diálogos sempre assertivos dos adolescentes, na textura de uma fotografia acalentadora e tépida, no contato dos indivíduos com uma natureza paradisíacae com a facilidade de entendimento entre os personagens naturalmente terapeutizados.

Ou seja, o diretor decidiu eliminar as crises vividas pela humanidade atualmente: a dicotomia entre direita e esquerda, a evolução dos argumentos da extrema-direita contra a diversidade de gênero e o aquecimento global.

Temas do século 20 e 21

Não é um acaso: grande parte dos adolescentes e jovens atuais está cansada dos temas do século 20 e sonha finalmente tomar posse de novos temas neste novo e idealizado século 21.

São mentes que desejam o imediato cessar das crises humanitárias; que exigem o fim do desmatamento e da poluição, mas que, contraditoriamente, investem pesado nas relações digitais e no universo virtual que impõem ao mundo o fim do capitalismo como o conhecemos e o começo de uma nova era marcada por um tecno feudalismo.

Aliás, esse é outro tema de natureza ambiental e ecológica que parece não perturbar os personagens que vivem no mundo confortável de Schatteman: os adolescentes desse filme não são viciados em internet e parecem viver em uma era analógica e marcado por saudáveis relacionamentos sociais.

Se foi sem querer ou de propósito, não sabemos. Mas é fato que isso transforma o filme em um lugar onde todos queremos viver, passível de ser assistido muitas e muitas vezes pelos adolescentes idílicos que residem dentro de nós.

Neurose grupal

Outro fator relevante na obra é a neurose grupal vivenciada pelo grupo de amigos de Elias e Alexander – uma extensão continental das famílias dos dois protagonistas.

São observadas nos estudos de Wilfred Bion sobre a natureza das dinâmicas grupais certas lógicas inconscientes que estão contidas no longa-metragem em questão.

Entre elas, destaca-se a ansiedade em torno da própria adolescência: uma fase muito breve e marcada pela emoção, pela descoberta da sexualidade, pelo luto da perda da infância, pela busca da identidade e pelo medo da vida adulta.

O grupo de amigos de Elias busca, na união de seus membros, uma forma de autorregulação frente às suas necessidades psicológicas individuais. Esse sistema de compensações gera expectativas e interesses entre eles: busca pela liderança do grupo, o desejo inconsciente de manutenção da adolescência através dos laços fraternos e do interesse pela extensão do grupo a partir da união de seus indivíduos – o que consagra a perpetuação do propósito grupal por meio do pacto, do contrato de união emocional e sexual.

Importa falar sobre a descoberta da sexualidade de Elias e sua transmutação do período de latência para a fase genital. Esse parto não é barulhento como vemos nas obras americanas e latinas: é continente, reservada e adocicada com o mel das relações parentais bem resolvidas, amaciadas pelas conversas e pelas elucidações dos mais velhos.

A natureza dos desejos, dos medos e do ciúme de Elias em relação a Alexander também colocará em discussão a antiga adversidade de dois extremos – liberal e conservador – que cria, desde sempre, antagonismo entre ID e superego, entre desejos e censuras em qualquer ser humano, com maior taxa de mortalidade entre os adolescentes, distópicos, impulsivos, aventureiros e apaixonados.

É claro que Schatteman reservaria momentos de neurose e de agressividade ao seu protagonista, principalmente quando tenta se libertar do envolvimento emocional com o pai egóico e com a própria cultura heteronormativa.

Contrato edipiano com o pai

O espectador mais atento perceberá que já existe uma lógica homoafetiva na família do protagonista concentrada e deflagrada através do narcisismo artístico do pai de Elias. É uma homossexualidade simbólica, pois o homem se identifica amorosamente por outro homem, que é ele mesmo.

Em um ato de desespero e de perturbação da ordem hierárquica familiar, o protagonista quebra a moldura com o disco de ouro conquistado pelo pai-cantor.

Com isso, simbolicamente, quebra o contrato edipiano com o pai e se inscreve definitivamente em uma nova mentalidade.

Essa cena responde alguns questionamentos sobre o Édipo homoafetivo: é evidente que o menino que nasce gay buscará no pai o objeto de afeto tal e qual um menino hétero buscará na mãe.

Uma das cenas mais comoventes acontece no finalzinho do filme, quando Elias tem uma conversa franca com seu avô. É o momento em que o jovem descobre que não perderá o amor dos membros masculinos de sua família caso tenha interesse amoroso por um garoto.

O avô fazendeiro e autossuficiente esclarece que o amor é o imperativo dominante nas relações humanas e dá a autorização oficial para que o menino finalmente se dispa de suas roupas sociais e mergulhe no lago de suas necessidades individuais.

Assim, ele ganha, simbolicamente, um novo batizado, onde recebe um novo nome e uma nova identidade. O mais bonito é ver o avô mergulhar com Elias nesse mesmo lago, denotando que também é um ser em evolução, interessado em se desconstruir a cada instante.

Schatteman mostra que é possível construir um mundo ideal dentro do mundo real, desde que exista dignidade e espaços minimamente convergentesque respeitem e garantam os direitos individuais.