Uma pessoa morre a cada 40 segundos por suicídio no mundo, o que representa 800 mil mortes por ano, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, estatísticas de mortalidade por suicídio giram em torno de 5,5 – uma taxa que vem crescendo ao longo dos dez últimos anos, ao contrário da tendência observada em outros países.
Para piorar este cenário, estudos recentes mostram que os índices de angústia, ansiedade, depressão, casos de violência doméstica, transtornos por consumo de álcool, abuso de substâncias e sentimentos de perda, são considerados importantes fatores de risco para suicídio, tiveram aumento significativo com o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19.
O tema é grave e ainda é visto como tabu, principalmente porque as doenças mentais, que são as principais causas de suicídio, enfrentam discriminações milenares. Para contribuir com o debate e divulgar alertas sobre a importância da conscientização das formas de prevenção ao suicídio e apoio às famílias que passam ou passaram pelo problema, foi criada, em 2004, pela OMS o Setembro Amarelo – já que o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio é celebrado em 10 de setembro.
Ainda que a campanha seja um sucesso, muito ainda deve ser feito para diminuir os índices de suicidabilidade no mundo. Essa é a opinião da médica, especialista em Saúde Pública e Psiquiatria, Maria Cristina De Stefano, que em 2012, precisou enfrentar a morte do filho Felipe de 34 anos, por suicídio e, desde então, tornou-se referência no assunto.
Nesta entrevista ao portal Sinapsys.News, a mãe, cidadã e especialista conta a sua história e como lidou com a perda do filho, explica quais os motivos que levam uma pessoa a se matar, como identificar uma situação de extremo sofrimento e como ajudar, inclusive o enlutado ou o sobrevivente de um ato suicida.
Como a morte do seu filho, em 2012, impactou a sua vida?
A vivência da morte por suicídio em uma família exige um enfrentamento de variadas situações novas e, na maioria das vezes, inesperadas. A desagradável notícia de um suicídio vai de encontro ao viver da normalidade pessoal, familiar e social. Entrar na vida de um suicida é entrar em um mundo assombrado de dúvidas, culpas e remorsos, às vezes, nunca resolvidos ou solucionados. Surgem pendências existenciais que se repetem a cada data de aniversário, da morte, dos Natais, das ocorrências vitais de um ser inexistente, porém sempre presente.
A morte do meu filho Felipe, aos 34 anos, em novembro de 2012, nos trouxe para campos desconhecidos tanto pessoais como profissionais, no meu trabalho como psiquiatra; encontrei no aprendizado da Suicidologia o entendimento que precisei para compreensão e aceitação da fatalidade ocorrida em nossa família. A família sobrevivente precisa ser acolhida em uma condição existencial estranha e invulgar, onde os rituais morais e religiosos não dão conta de amparar, suportar e superar esta morte tão enigmática.
2. O que é a Suicidologia?
A Suicidologia é um campo de conhecimentos, aprendidos em cursos de pós-graduação sobre o comportamentos, causas suicidas e aberto a variadas formações, como médicos, psicólogos, antropólogos, sociólogos e até pessoas de formação militar. Pretende capacitar uma rede de apoio que tenha competência para promover a Saúde Mental, prevenir, evitar suicidabilidade e atender ocorrências que estejam colocando em risco a vida de pessoas vulneráveis.
Como reconhecer os indícios de suicídio?
A pessoa em sofrimento emocional pode apresentar diversas alterações de comportamentos, sentimentos, humor, desânimo, apatia, tristezas, decepções, discurso de sofrimentos diversos em relação a sua própria importância existencial. Podem existir relatos de autoagressão, violências diversas e históricos de abusos variados em sua história de vida. Ideação suicida pode se alternar com reações de Ambivalência quanto à desistência de viver ou morrer.
Chamamos de dor psíquica os sentimentos de desamparo, desesperança e desespero, que podem ocorrer de forma aguda ou crônica, desencadeando reações que oscilam da raiva extrema até a depressão imensa, com componentes da personalidade prévia aos padecimentos emocionais devastadores da normalidade anterior da pessoa. Precisamos sempre lembrar que doenças graves podem levar à morte, assim como doenças mentais graves também podem levar para um final trágico.
Por que esses indícios são discriminados ou banalizados?
As doenças mentais sofrem há milênios de discriminações, segregações, tabus, preconceitos e mitos. Ainda hoje, assumir estar em sofrimentos emocionais como algo legítimo, é enfrentar críticas, deboches, ironias e desqualificação. O “bullying” é frequente perante os padecimentos emocionais e incluem até os profissionais de saúde que se dedicam a este campo de conhecimentos. Os psiquiatras são bastante depreciados entre os próprios médicos, e é raro, dentro do atendimento clínico, se perguntar “como vai sua saúde mental?”. O medo das respostas e a dificuldade do encaminhamento do paciente para um psiquiatra, bloqueia a pergunta inquietante. Tal questionamento pode levar a encaminhamentos precoces para atendimento especializado. A frase: “isto é coisa da sua cabeça” é comum e dá pouca ou nenhuma importância às queixas não evidentes ao clinico.
Em sua opinião, qual a motivação para que esse assunto ainda seja considerado tabu, apesar dos índices serem significativos de suicidabilidade?
Além dos fatores acima mencionados, questões morais e religiosas também contribuem para a marginalização dos doentes mentais, desencadeando uma trajetória de cronificação e abandono à própria sorte, incluindo até o aprisionamento em si mesmo e suicídio pela desistência de viver em perene sofrimento mental.
A pandemia, de alguma forma, pode contribuir para o aumento dos casos? Por quê?
A situação pública desencadeada pela atual pandemia tem agravado quadros de transtornos emocionais preexistentes, assim como desenvolvido alterações psicológicas em pessoas anteriormente vulneráveis. Ainda não temos suficientes dados estatísticos que demonstrem alterações epidemiológicas, porém sabemos que cerca de 40 pessoas por dia se suicidam no mundo ou seja, cerca de 1 milhão de pessoas por ano comentem suicídio, segundo informes atuais da Organização Mundial de Saúde. Portanto, é assustador como estamos enfrentando o que chamo de Epidemia Calada.
É possível apontar as principais causas de suicídio?
As duas maiores causas de suicídio são a Depressão Maior/ Transtorno Bipolar e as Dependências Químicas, com cerca de 51% das mortes, tanto de forma aguda como crônica. Os Transtornos Mentais caracterizados por quadros depressivos se alternam com dependências químicas, tanto de drogas lícitas como ilícitas, sendo o alcoolismo tanto causa como efeito da depressão e demências .Assim, se somam aos distúrbios emocionais da desesperança, desamparo e desespero as depressões, as dependências químicas, as demências tanto psicóticas como degenerativas e os quadros delirantes.
Como, a seu ver, devem ser as políticas públicas de atendimento à Saúde mental e conscientização sobre o tema?
Pesquisas mundiais e locais são feitas a partir de estudos de longo prazo por Instituições médicas, universitárias e pela própria OMS, dando origem a epidemiologia dos Transtornos Mentais. O Ministério da Saúde, em conjunto com a Associação Brasileira de Psiquiatria, elaboraram uma apostila intitulada “Falando abertamente sobre o Suicídio”, incluindo orientações para a Imprensa, já que é necessária uma abordagem ética sobre o assunto.
O atendimento específico às doenças mentais é feita nos Centros de Atenção Psico Sociais, os CAPS a nível municipal com equipes de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais. Políticas públicas de controle às Dependências Químicas também são portas de acesso aos atendimentos especializados. Hospitais Regionais também dispõem de leitos de urgências para ações emergenciais de doenças mentais agudas. Como encontrar uma rede de apoio – tanto para quem está em sofrimento e pensando em suicídio quanto para a família que perdeu alguém ou que reconhece os indícios de alguém próximo?
O suicídio não pode ser de forma alguma discriminado, assim como a tentativa de suicídio já, por si só, deve ser imediatamente atendida como situação de urgência e emergência a ser priorizada nos Prontos socorros e SAMU. Precisamos de protocolos de atendimento que deem conta não só do momento da primeira ocorrência, como na pósvenção da demanda contínua ao paciente. Incluir a família é crucial para a manutenção dos cuidados da equipe de saúde mental ao conjunto de ocorrências à prevenção de novas tentativas de suicídio. Devemos informar que a cada 3 tentativas ocorre 1 suicídio consumado!!! As mulheres tentam mais e morrem menos, mas os homens utilizam formas mais violentas, agressivas e fatais, morrendo já na primeira ocorrência.
O que sugere que seja feito se um grupo (familiar, de amigos, colegas de trabalho) reconhecer indícios suicidas em alguém próximo?
A rede de Atenção à Saúde formada por Unidades Básicas de Saúde, como os Centros de Atenção Psicossocial e até os hospitais de referência para doenças mentais podem ser as portas de entrada nos Sistemas Públicos ou privados de atendimento à saúde. Incluem os serviços universitários que muito contribuem para os atendimentos de urgência, os ambulatórios e internações em serviços especializados.
No Brasil o Centro de Valorização da Vida, CVV dispõe de telefone 188, gratuito e 24 horas por dia além de serviços on-line para atendimentos desde 2017, a partir de convênio com o Ministério da Saúde e Embratel. Há também integração com as redes sociais para identificação de links com rastreamento de busca nas palavras suicídio, meios de se matar, como morrer. Quando estas palavras surgem, aparece o link do site do CVV e do número 188. Além disso, o CVV atende famílias e pessoas sobreviventes através do Grupo de Apoio aos Sobreviventes do Suicídio (GASS), tanto de forma presencial como on-line.
E nesse cenário, qual acredita ser o papel da mídia em aumentar a conscientização sobre o tema?
A Imprensa tem assumido recentemente um papel de destaque na divulgação das ações do Setembro Amarelo, pois há importância crescente da Prevenção do suicídio e da Promoção da Saúde Mental. Os impedimentos devem se ater a não divulgação da forma do ato suicida e do chamado “sucesso mortal”, o que denota um contrassenso em relação ao fato “homicida de si mesmo”. Formas sensacionalistas e alarmistas devem ser evitadas, mesmo que não haja evidências epidemiológicas do aumento nos casos de suicídio causados por notícias sobre o assunto.