A raiva é uma emoção universal e inata que todos sentem em algum nível. No entanto, a psicologia mostra que existe muita dificuldade em vivenciá-la. Alguns a bloqueiam e evitam, outros a manifestam por meio da impulsividade e de comportamentos agressivos. Esses dois casos tendem a favorecer a manutenção de crenças negativas e comportamentos não saudáveis causadores de sofrimento para si e para os outros.

Assim como as demais emoções, a raiva tem funções importantes, como proteção, regulação e reparação diante da frustração, da ofensa e da injustiça. Ela mostra às pessoas quando há problemas de âmbito social e pessoal, as conscientiza de suas crenças profundas, daquilo em que acreditam, e alerta quando seus valores não estão em conformidade com situações pelas quais passam. Em resumo, sinaliza que é preciso se afastar de algo que está fazendo mal, de algum limite ultrapassado, de algo que precisa ser refletido e amadurecido. Além disso, pode impulsionar a resolução de problemas e a demonstração de força contra injustiças.

Baralho

Diante dos desafios de manejo emocional, o profissional de saúde mental precisa estar preparado para ajudar seus pacientes a conviverem com as suas emoções e a lidarem com elas de maneira saudável. Estar conectado de forma sadia com a própria raiva é uma virtude que permite uma vida plena, seja em pensamentos, emoções ou comportamentos.

Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pelo psicólogo Bruno Luiz Avelino Cardoso, coautor do Baralho da raiva: avaliação, psicoeducação e técnicas para intervenção, publicado pela Sinopsys Editora. Esta ferramenta contém estratégias terapêuticas para avaliar, acessar, psicoeducar e manejar essa emoção de forma leve, acessível e didática. Além disso, aborda distorções cognitivas e sensações fisiológicas e comportamentos associados a essa resposta emocional a fim de esclarecê-la e poder manejá-la com assertividade, proporcionando bem-estar ao paciente.

Bruno é terapeuta cognitivo certificado; doutor em psicologia (comportamento social e processos cognitivos) pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com período sanduíche na Pennsylvania State University e apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); mestre em psicologia (processos clínicos e da saúde) pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), com estágio de pesquisa sobre violência e habilidades sociais na UFSCar.

Também é especialista em terapia cognitivo-comportamental pelo Instituto WP (IWP/Faccat) e em sexualidade humana pelo Child Behavior Institute of Miami. Tem formação em terapia do esquema (Wainer/NYC Institute for Schema Therapy) e em terapia do esquema para casais pelo Instituto de Teoria e Pesquisa em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental (ITPC).

Professor adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia: Cognição e Comportamento da Universidade Federal de Minas Gerais. Supervisor da prática clínica e autor de livros e recursos nas áreas das terapias cognitivo-comportamentais, terapia do esquema e relacionamentos e treinamento de habilidades sociais.

Contextualize a questão da raiva nos dias de hoje.

Embora uma emoção universal que todos nós temos – todos sentimos raiva –, ela ainda é muito injustiçada, digamos assim, em nossa sociedade. As pessoas ainda tentam muito inibi-la ou realmente tirá-la de cena. Um exemplo que mostra muito isso é o filme Divertidamente, em que aparecem as emoções, o painel de controle e como os personagens lutam, a Alegria principalmente, para tirar a tristeza, a raiva e outras emoções que são avaliadas como desconfortáveis de sentir do controle.

Contudo, essas emoções que nós temos fazem parte da nossa formação como um todo. E o fato de a raiva, atualmente, ser muito ignorada traz um problema, porque, quanto mais eu ignoro e evito essa emoção, mais eu posso ter a tendência de me comportar de uma forma inadequada diante dela. Hoje a gente vê muitas pessoas tendo explosões de raiva – desregulação emocional – por não saberem como lidar com essa emoção. Pessoas que, passando por uma situação desafiadora, começam a utilizar essa raiva de uma forma mais explosiva e, às vezes, violenta e prejudicial nas relações interpessoais.

Encontramos isso em diversos cenários, como no dia a dia, por exemplo, saindo com os amigos e alguém explode de raiva nessa situação; às vezes, no cotidiano, quando a pessoa vai a um restaurante e não é atendida na solicitação ou, então, se sente injustiçada por alguma coisa. Hoje também vemos isso muito na internet, inclusive as chuvas de ataques de haters (do inglês, odiadores) que vão acontecendo na rede, em que as pessoas, motivadas pela raiva, começam a atacar outras pessoas e agir de uma forma muito direcionada pela raiva que traz mais sofrimento. Tudo baseado no não saber como manejar uma emoção que faz parte da nossa existência e que, às vezes, é muito ignorada.

Qual o papel das distorções cognitivas e crenças na forma como as pessoas lidam com a raiva?

Nós, que trabalhamos com a terapia cognitivo-comportamental (TCC), percebemos que existe um papel mediacional nas nossas emoções. Embora tudo se relacione – emoções, comportamentos e pensamentos –, as distorções cognitivas podem até aumentar determinada situação e fazer com que a raiva se potencialize e a pessoa veja injustiça inclusive onde não há. Então, as distorções cognitivas têm realmente um papel muito importante. As cartas do baralho com distorções cognitivas ajudam o paciente a identificar as distorções que, às vezes, ele nem sabe que faz. E elas são tão comuns. Todos nós fazemos distorções cognitivas em algum momento da vida.

O que leva o ser humano a ficar com a raiva tão introjetada a ponto de um dia explodir?

A raiva é filogeneticamente selecionada. Nós temos essa emoção desde sempre, nós nascemos com as emoções. Mas, à medida que vamos sendo expostos a situações, essa raiva pode ser modelada pelo ambiente de formas diferentes. Uma pessoa pode aprender que ela só consegue ter a sensação de justiça quando explode e agride o outro, por exemplo. Ou então que ela só consegue ter o que pede quando grita, bate, puxa o cabelo do coleguinha, quando morde e aí ela consegue ter o brinquedo da outra criança. Como esse comportamento vai sendo reforçado desde a infância, vai mantendo também padrões de expressões inadequadas da raiva ao longo do tempo.

Quando falamos especificamente de hoje em dia ou quanto as pessoas estão utilizando de estratégias disfuncionais da raiva, como, por exemplo, explodir lugares, bater em outras pessoas, mostramos só essa desregulação realmente da raiva. E, às vezes, as motivações desses crimes alegadas por essas pessoas são bullying, ou que não quiseram namorar com elas, ou pediram algo que não foi atendido. Parece que tem uma baixa tolerância à frustração muito alta em alguns casos.

Por outro lado, também vemos que existe uma falta de preparo social em relação à empatia, o quanto as pessoas não conseguem ser empáticas umas com as outras ao ponto de fazerem bullying. Isso não justifica, por exemplo, o comportamento de sair batendo nos coleguinhas ou acabar com a vida de alguém. Mas mostra como a nossa sociedade, de uma forma geral, ainda está muito adoecida nesses elementos básicos sociais: empatia, respeito e outros valores de convivência que são importantes.

É possível utilizar o baralho fora do contexto clínico?

Com certeza. O clínico é um dos contextos em que podemos utilizar o baralho, mas também podemos utilizá-lo nos contextos social, jurídico, em atividades hospitalares, nas organizações, nas escolas… Por exemplo, nas organizações, se quisermos trabalhar a regulação emocional das pessoas que fazem parte do contexto de trabalho.

Vamos imaginar um cenário em que essas pessoas trabalham com um público que não sabe lidar muito bem com tolerância à frustração e o atendente precisa se regular muito bem para poder trazer respostas que não sejam agressivas ou mediadas pela raiva. Nesse contexto, o baralho auxilia os trabalhadores a entenderem essa emoção e a utilizarem e expressarem de formas mais saudáveis.

O baralho também pode ser utilizado nas escolas para fazer o ensino das emoções com crianças e adolescentes, ou seja, tem uma infinidade de possibilidades de utilização da ferramenta em diversos contextos, não somente o clínico.