Há exatos 1 mês, no dia 15 de janeiro de 2024 foi sancionada no país a Lei 14.811/24 que alterou o Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Crimes Hediondos para que o ato de praticar bullying, inclusive na modalidade digital, o cyberbullying, seja tipificado como crime e tenha a pena agravada quando o delito for cometido contra menores de 18 anos. 

Este é sem dúvida um passo importante. Não é novidade para aqueles que trabalham com crianças e adolescentes a extensão da prática de bullying nas escolas e as consequências devastadoras, e por vezes fatais, de tais práticas.

Transformações importantes

Naturalmente, esta medida a nível legislativo precisa de todo um movimento da sociedade civil, dos profissionais que trabalham em escolas e outros dispositivos educacionais, como as instituições de contraturno escolar, os centros de convivência etc., no sentido de detectar vestígios de maus-tratos sob a forma de bullying aos alunos e usuários, e tentar implementar práticas que modifiquem estas dinâmicas.

O ambiente escolar é uma referência fundamental para a criança e para o jovem, constitui-se no entorno dentro do qual buscará se inserir por meio de suas capacidades em desenvolvimento. De fato, o conceito que vai construindo sobre si mesmo recebe uma carga considerável das experiências do dia a dia, e o convívio com os pares vai modular tanto este conceito quanto a capacidade de permanecer engajado, envolvido e esperançoso com relação às suas potencialidades.

A maneira como é visto é determinante em todo este processo, trata-se de um círculo virtuoso ou vicioso, dependendo da natureza positiva ou negativa destas experiências: quanto melhor conseguir se sentir com seus pares, maior será sua crença em seu potencial; quanto menos inserido, mais marginalizado, menos apreciado e respeitado, maiores serão as dificuldades a serem enfrentadas no seu mundo interno e na convivência com os demais. Maiores e mais implacáveis também lhe parecerão os obstáculos inerentes ao percurso. Neste sentido, é muito legitima esta preocupação dos órgãos públicos, e medidas como esta podem oferecer um limite necessário para situações que poderão tomar rumos excessivos e perniciosos.

Função terapêutica de interdição

É a sociedade, através dos seus dispositivos legais, exercendo a função terapêutica de interdição aos que transgridem (Winnicott, !963)[1] e intercedendo por aqueles que, em dificuldades, já não conseguem mais interceder por si mesmos.

São as crianças e os jovens que se sentem inadequados, errados e incompreendidos que são objeto de bullying.

Entretanto, sabemos que as dificuldades não se iniciam na escola. O ambiente familiar é o primeiro entorno da criança e sua natureza mais ou menos receptiva, tolerante ou amorosa é fundamental para a ideia que a criança desenvolve sobre si própria. Sabemos ainda que o momento da vinda de cada criança e o desejo dos pais por um filho, ancorado no édipo de cada um deles, também tem um papel determinante nesta composição.

A ideia que a criança vai formando sobre si mesma como mais ou menos valorizada, mais ou menos digna de amor e mais ou menos capaz decorre das primeiras experiências junto aos pais, e mais especificamente junto à mãe, ao longo da primeira infância. O investimento contínuo dos pais na família como um ambiente seguro e acolhedor, e em cada um dos filhos como um ser que se dirige para o desenvolvimento é fundamental para que cada filho possa sentir-se bem situado e fortalecido.

Tempo de convivência com os pais

Ora, hoje as crianças têm cada vez menos tempo de convivência com os pais. É fato usual que os filhos ainda no primeiro ano de vida passem a frequentar creches, berçários e pré-escolas. Pais e filhos ficam afastados de casa por longas horas, numa idade muitas vezes bem precoce. Observamos ainda a elevada incidência de separações entre os pais incidindo no investimento afetivo de cada um deles nos filhos. Toda esta conjuntura não favorece a função que os pais, e apenas eles, podem e devem desempenhar junto aos filhos[2] (Guignard, 2014).

A criação de cada bebê é um processo laborioso que exige investimento e dedicação, alguns diriam até mesmo devoção[3] (Winnicott, 1956). Aos pais cabem tarefas de continência dos afetos e limites que precisam ser exercidas de forma firme, constante e amorosa. Nada muito complicado ou por demais solicitador, mas estas funções, as funções parentais, precisam ser exercidas pelos pais.

Nenhuma escola ou instituição com sua equipe docente, seja ela qual for, será capaz de substituir o trabalho dos pais. Este é um trabalho feito com amor que transmite amor, estimula funções amorosas e a capacidade de construção e crença em si mesmo.

E MAIS…

Medidas preventivas podem e devem ser tomadas

Do meu ponto de vista, é preocupante e se constitui em um sinal de alerta a incidência de bullying na nossa população infanto-juvenil a ponto de ocasionar um projeto de lei e sua implementação no país.

Naturalmente toda uma série de medidas preventivas podem e devem ser tomadas nas instituições educacionais, mas acredito que precisamos, sobretudo, sensibilizar, estimular e apoiar os pais a exercerem efetivamente a parentalidade[4] (Lebovici, 1993).


[1] Winnicott, D. W. (1963/2007) – Psicoterapia dos distúrbios de caráter. In O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artmed.
[2] Guignard, F. (2014) Psychic development in the virtual world. In: Psychoanalysis in the Technoculture Era. Alessandra Lemma & Luigi Caparrota, Routledge, London, 2014.
[3] Winnicott, D. W. (!956/2000) – A preocupação maternal primária. In Winnicott, D. W.. Da Pediatria à Psicanálise, obras escolhidas. Rio de Janeiro, Imago.
[4] Lebovici, S. (1993). On intergenerational transmission: From filiation to affiliation. Infant Mental Health Journal, v. 14, n. 4, 260-72.