Vivemos em um tempo de múltiplas opções para escolhas existenciais, possíveis para o exercício da liberdade ontológica do ser humano nos diversos âmbitos da vida pessoal e social. Na sociedade contemporânea, diferente de antigamente, a religião já não exerce mais a fascinação e o domínio de outrora. Por muito tempo, as religiões adotaram um lugar de normatização social na história da humanidade; porém, atualmente contemplamos um certo declínio do compromisso religioso na sociedade. Como consequência, mudanças na relação do homem com a fé, os valores e as tradições também são observadas na transição entre os séculos.

Com a secularização dos anos perde-se o modelo pré-estabelecido pelas grandes instituições e estruturas da sociedade, como o Estado, a Igreja e a Família. Por outro lado, ganha-se uma liberdade que ao mesmo tempo pode ser uma “camisa de forças” para o ser humano, que se vê perdido diante das inúmeras possibilidades de existir num caminho rumo ao vazio existencial à medida que ele se inquieta com perguntas como: O que é certo ou errado? Questões como essa representam a dialética da existência humana, que sempre existiu, mas era antes controlada pelos dogmas de instituições tradicionais, como a Igreja, por exemplo.

Termômetro do vazio existencial

Outras indagações como Quais regras devo seguir? A quem devo obedecer? Fazem parte desta transição existencial que, na ausência de respostas tradicionalmente fundamentadas, levam o ser à experiência do vazio existencial. O vazio existencial, termo cunhado por Viktor Frankl fundador da Logoterapia e Análise Existencial (LAE), se apresenta quando a vontade de sentido é frustrada, ou seja, quando o homem não alcança sua realização existencial ou se concentra no desejo de poder e/ou na busca exclusiva pelo prazer (Frankl, 1978). Mas, que vontade seria essa e de que sentido estamos falando?

O homem se diferencia dos animais pela sua capacidade de buscar significados para suas experiências. Atribuir sentidos à vida e se aprofundar em sua existência é uma prerrogativa da vida humana e, segundo Frankl (2005), é isso que chamamos de vontade de sentido. Trata-se de uma vontade genuinamente humana que representa a busca do ser por um sentido na (e da) sua existência. Esse anseio é natural de todo ser humano; todavia, alguns passam uma vida inteira pautada na ideia de que a vida não tem sentido. Por vezes, esse ser esvaziado de vontade de sentido ou inibido de desejo por algo para além se si mesmo e do aqui e agora, nem se dá conta de que criar valores e ter atitudes que atribuam novos sentidos e significados à sua existência é genuinamente humano e potente para uma vida mais plena e feliz.

Sendo a vontade de sentido um termômetro para uma suposta “normalidade psíquica” (entre aspas!), é por meio dessa vontade que o ser encontra significados pelos quais viver. Logo, torna-se necessário que o ser desperte para seu potencial de viver uma vida plena por meio da busca por sentidos para sua existência. Para Frankl (2005), é pela experiência dos sentidos de vida, como o sentido do amor por si, pelo outro, pela sua comunidade etc., que a pessoa responde as questões que a vida lhe convoca. E é por essa via, ou seja, pelo movimento constante de busca pelo sentido da vida, que a pessoa realiza os significados que a vida lhe oferece (Frankl, 2005, p.29).

No exercício dessa liberdade, de forma responsável e na perspectiva do autocuidado e da autocompaixão, se imprime um campo de possibilidades para o exercício da espiritualidade como recurso para a autotranscedência do ser. Dessa forma, temos recursos potentes em mãos, a liberdade, a responsabilidade e a autotranscedência, as quais podemos usar para expressar nossa vontade de sentido de forma genuína. Além destas, a espiritualidade, como uma dimensão propriamente humana, também é um recurso que se pode lançar mão para responder às questões que a vida nos faz, mesmo em situações complexas e desafiadoras. E é nosso contato e cuidado conosco, com o outro, com o mundo, com a natureza e com o divino que nos permitem esta conexão e nosso encontro existencial com o que é mais humano da nossa existência: nossa espiritualidade.

E MAIS…

“Janeiro Branco”: mês da saúde mental

Essa visão integral do homem, que inclui a dimensão espiritual, tem interface direta com as discussões mais atuais do campo da saúde, especialmente da Saúde Mental. Desde 1988, a Organização Mundial de Saúde (OMS), adotou um conceito multidimensional de saúde, no qual incluiu a dimensão espiritual na definição do potencial de saúde e de prevenção de doenças. Entendendo a espiritualidade como relacionada ao significado e sentido da vida humana, a dimensão espiritual para a OMS não se restringe a crenças ou práticas religiosas. Pelo contrário, independente de credo ou religião, a espiritualidade se refere ao componente da experiência humana composto por aspectos cognitivos, experienciais e comportamentais, que se expressam através da busca de sentidos, sentimentos positivos, manifestações de crenças espirituais e de um estado espiritual interno (Koenig, 2012). Se refere à conexão que o ser pode estabelecer com o que transcende à sua existência material e que lhe confere um sentimento de pertencimento a algo para além de sua própria vida. Logo, ao restringir a compreensão do processo saúde-doença unicamente pela perspectiva das dimensões somática (física) e psíquica (mental) contraria-se a ideia de saúde integral da pessoa humana, inclusive como proposto pela OMS.

Baseado nesta premissa, desde 2014 comemora-se o primeiro mês do ano com uma ampla campanha para o cuidado à saúde mental: o “Janeiro Branco”. Inicialmente como um convite para as pessoas refletirem sobre suas vidas, seus relacionamentos e, por conseguinte, sua saúde mental e emocional, a campanha foi idealizada pelo psicólogo Leonardo Abrahão para chamar atenção para a importância do autocuidado, não só físico, mas também psicológico. Como símbolo de recomeço, mas também de 12 meses a mais de desafios, o primeiro mês do ano pode estar atrelado tanto a ideias otimistas de renovação, como pessimistas de desesperança, a depender da lente (cinza ou multicolorida) que adotamos para enxergar os eventos da nossa vida.

Dentre aqueles desinvestidos de vontade de sentido, não é difícil encontrar os que falarão “Mais um ano para que, já que nada vai mudar?!”, o que pode ser um sinal, como já falamos, do vazio existencial, esse mal-estar de diferentes épocas agravado pela queda das tradições seculares e pelas lacunas que estas tradições decaídas registram na nossa existência contemporânea esvaziada de novos sentidos. Com isso, mas não somente por isso, o número de pessoas que sofrem com transtornos mentais, como a depressão por exemplo, já chega a 300 milhões no mundo, segundo a OMS.

REFERÊNCIAS

Frankl, V. E. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia (R. Bittencourt, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.

Frankl, V. E. (2005). Um Sentido para a Vida: Psicoterapia e Humanismo (V. H S. Lapenta, trad.). São Paulo, SP: Ed. Ideias & Letras.

Frankl, V. E. (2016). A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus.

Koenig, H. (2012) Medicina, religião e saúde: O encontro da ciência e da espiritualidade. Porto Alegre: L&PM Editores.