“Parece haver um consenso entre os filósofos no sentido de a pandemia marcar um corte epistemológico, ou seja, o início de um novo tempo. Alguns arriscam, inclusive, dizer que o século 21 teria começado apenas agora. Seja como for, as cicatrizes deixadas foram inúmeras”, afirma a psicóloga Joana de Vilhena Novaes. Uma das organizadoras (junto com a psicóloga Junia de Vilhena) da coletânea ‘O corpo que resta… Corpo, luto e memória’ (Appris), ela aborda, nesta entrevista, as consequências da reclusão imposta pelo novo coronavírus e o papel da psicologia nesse atual contexto.

Doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Joana tem pós-doutorados em psicologia médica e em psicologia social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É coordenadora do Laboratório de Práticas Sociais Integradas (Lapsi) da Universidade Veiga de Almeida (UVA) e do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (Lipis) da PUC-Rio. E é professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA.

Por que se tornou psicóloga e como se voltou para o trabalho na área social?

Venho de uma família de excelentes contadores de história e, talvez por isso, desde muito cedo, me senti capturada pelas narrativas alheias. Seus tramas e dramas sempre me pareceram um convite irrecusável para mergulhar no universo particular que não fosse o meu próprio umbigo. Da mesma forma, a consciência acerca das desigualdades abissais que marcam a estrutura social brasileira não escapava às pautas familiares. Olhando retrospectivamente, penso que muitas das nossas escolhas são forjadas nesse caldo chamado família. Sou filha de um sociólogo e de uma psicanalista, tive uma socialização cujo eixo central dificilmente me permitiria ser indiferente ao sofrimento humano.

Quais as principais consequências do isolamento social na pandemia que hoje são vivenciadas por crianças, adolescentes, adultos e idosos?

No caso de crianças e adolescentes, destacamos, entre os sintomas na chamada geração “nativa digital”, uma sociabilidade experimentada por meio do incremento de práticas conhecidas como “desafios virtuais” e que poderiam ser descritas da seguinte forma: hiperexposição, diluição de fronteiras público-privadas-íntimas e espetacularização de si. A considerar os desafios como práticas assumidas como brincadeiras ou games lançados por alguma microcelebridade que estimula a realização de tarefas a serem cumpridas, filmadas e compartilhadas, a fim de que haja a validação de seu “eu digital”. Fenômeno social mais conhecido com o a espetacularização do eu. Nesse jogo, muitas vezes perigoso, são dados comandos e feitas prescrições que estimulam autolesões ou provocam danos geralmente desconsiderados pelos adolescentes. Conforme ensaio divulgado em maio de 2020 pela revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a partir de uma pesquisa feita no Google Trends, foi possível observar que a busca pelo termo “desafios on-line” (challenges on-line) cresceu bastante no mundo inteiro após a medida de isolamento social ter sido implementada. Destaca-se, nesse aspecto, um aumento pronunciado nas taxas de mortalidade de adolescentes, que tiveram um incremento de 81% no período, passando de 606 óbitos e 3,5 mortes por 100 mil habitantes para 1.022 óbitos e 6,4 suicídios para cada 100 mil adolescentes.

No caso dos adultos e dos idosos, as orientações de reclusão impostas pela pandemia do novo coronavírus, bem como a classificação dos idosos como “grupo de risco”, vêm na direção contrária ao movimento de inclusão dos mais velhos na esfera pública e a luta pela conquista de direitos para a pessoa idosa, como sua inclusão em espaços de lazer e de sociabilidade. Há um risco do retorno da imagem do idoso como improdutivo, um peso morto para o estado, a sociedade e suas famílias (Dourado, 2020). Portanto, o equilíbrio entre a contenção da pandemia e a proteção do idoso e a manutenção de sua autonomia e inclusão social apresentou-se como um dos grandes desafios dessa crise.

Diversos estudos feitos na população geral brasileira e de outros países (Barros et al., 2020, Brooks et al., 2020, Dubey et al., 2020, Holmes et al., 2020, Qiu, Shen, Zhao, &Wang, 2020) apontam um grande impacto psicológico por conta da pandemia e do isolamento social, com repercussões na esfera emocional, física, cognitiva, comportamental e social. Do ponto de vista emocional: medo, ansiedade, humor deprimido, depressão, estresse, TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), irritabilidade. Quanto aos sintomas físicos: transtornos de sono, dificuldade de concentração, alteração do apetite e fadiga.

Qual sociabilidade será possível depois de tanto isolamento, lutos e traumas vividos durante a pandemia?

Parece haver um consenso entre os filósofos no sentido de a pandemia marcar um corte epistemológico, ou seja, o início de um novo tempo. Alguns arriscam, inclusive, dizer que o século 21 teria começado apenas agora. Seja como for, as cicatrizes deixadas foram inúmeras: dos corpos insepultos, aos rituais fúnebres que não puderam ser devidamente realizados, resultando em uma melancolização em massa; ao estresse pós-traumático, passando pelos sintomas hipocondríacos; a vida parece, por um tempo, ter ficado reduzida à sua dimensão biológica. Contudo, é legítimo afirmar ter havido certo adensamento dos laços sociais por meio de práticas solidárias que nos permitiram atravessar tempos tão sombrios. Se, por um lado, àqueles a quem foi permitido o isolamento social, percebemos o incremento das fobias de contato, por outro, foi possível a empatia despertada nesses tempos trágicos.

De que forma a psicologia pode contribuir nesse sentido e que outras medidas psicossociais são necessárias?

A ideia central de intervenção psicossocial postula a autonomia como um trabalho de interpretação e processo de mudança do sujeito e da sociedade. Da mesma forma, é a dimensão política e social da autonomia que deve ser trabalhada na intervenção psicossocial. Nesse sentido, pensar o campo de atuação da psicologia ou nos psicólogos enquanto agentes de transformação, empenhados no acolhimento e na promoção da saúde, significa refletir sobre a dimensão ética das práticas psicológicas. O atendimento de urgências subjetivas (dispositivo de acolhimento aos sujeitos em crise, que são levados às instituições, a partir de demandas variadas, com o pedido de acolhimento emergencial do sofrimento psíquico), grupos de acolhimento e a clínica com refugiados (também conhecida como clínica da errância) são ilustrativos de algumas modalidades de intervenção individual ou em rede na atenção primária.