Saímos do ‘Setembro Amarelo’, mês de atenção à saúde mental específica para a prevenção do suicídio, e começamos o ‘Outubro Rosa’, mês de atenção à saúde integral da mulher. Neste artigo, quero estabelecer a correlação entre as duas coisas, não somente pela mera sequência de meses, mas pela importância de se destacar a saúde mental das mulheres, que já sofriam sobrecarga social, laboral, familiar, muito antes da pandemia, e agora se agravaram neste contexto mundial, sobretudo nas condições adversas do Brasil.
Desde que a menina nasce, já começam as cobranças sociais quanto ao serviço doméstico, casamento, nascimento de filhos… em menor escala, surgem as preocupações com a carreira acadêmica e escolha da profissão. Ainda vivemos, inconscientemente, o estereótipo da ‘sacralização da maternidade’, como se fosse a ‘prioridade’ na vida de uma mulher. Conforme escrevi em outros artigos, condicionamos a menina a padrões sociais: no aniversário dela, no Dia das Crianças, no Natal, o que costumamos dar a ela? Bonecas, maquiagem, brinquedos de cozinha…
Cobranças destinadas a elas
As mulheres se tornam mais suscetíveis aos chamados Transtornos Mentais Comuns (TMC), caracterizados por sintomas como fadiga, esquecimento, insônia, irritabilidade, dificuldade de concentração, dores de cabeça e queixas psicossomáticas, e tais TMC alteram o funcionamento normal dos indivíduos, prejudicando seu desempenho na vida familiar, social, pessoal e no trabalho. Além disso, apresentam mais sintomas de angústia psicológica e desordens depressivas do que os homens, relacionados aos sintomas de ansiedade, humor depressivo, insônia, anorexia nervosa e sintomas psicofisiológicos.
Nem sempre a mulher consegue conciliar as tarefas domésticas e familiares com a carreira acadêmica e/ou laboral, muitas vezes tendo que se dedicar à primeira e abandonar a segunda, condição que não é exigida do homem. Para ele, é ‘fácil’ abandonar a família, esposa e filhos, e se dedicar à carreira, e isso é visto como “ambição, desejo de sucesso, preocupação com o sustento da família”. Mas, e se a mulher faz isso? É vista como “egoísta, materialista, gananciosa, não se preocupa com os filhos (hã????)”, sem nem se cogitar que ela poderia estar tentando se realizar pessoal e profissionalmente, até para oferecer uma qualidade de vida mais satisfatória para a família! Mulheres que renunciam à guarda dos filhos em favor dos pais, ou oferecem uma Guarda Compartilhada, sofrem cobranças sociais severas, como ‘mães desnaturadas’ (!!!).
Papéis sociais
Sabe-se que os papéis masculino e feminino, assim como as representações sociais da maternidade e paternidade, são construídos conforme período histórico, cultura e sociedade. Mesmo assim, encontramos pessoas e profissionais que reproduzem acriticamente tais modelos, como se fosse “naturais”, sem questionar o fundamento disto (a reprodução do modelo pós Revolução Industrial) e sem considerar as transformações sociais em que pais (homens) reivindicam maior participação na vida dos filhos, enquanto as mães alcançam mais espaços no mercado de trabalho e no meio acadêmico. SCHNEEBELI e MENANDRO (2014, p.177) afirmam que esses modelos se tornam verdadeiros pilares das representações sociais de maternidade e paternidade, “ancorados” em um modelo tradicional e arcaico, sedimentando-se no imaginário social como se fosse algo “inato”.
No que concerne à representação social, “quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna” (MOSCOVICI, 2015, p.41) , e o que causa mais equívocos nas Varas da Família é a representação social ligada à maternidade, como se houvesse um “instinto materno”, o que é contestado por BADINTER (1985) , pois esta autora descreve a maternidade como uma construção social, para que a mulher permaneça no mundo doméstico, e se dedique à abnegação da vida pessoal para zelar exclusivamente pelos filhos.
E, no que isso se reflete na saúde mental da mulher? Em absolutamente tudo!
Discussões do movimento feminista
Apesar de todas as discussões do movimento feminista nos anos 1960 e 1970 quanto aos pilares de sustentação da divisão sexual do trabalho, por meio da qual se destina ao homem o trabalho produtivo, em que se recebe salário, e à mulher o trabalho reprodutivo e o estatuto dos afazeres domésticos como inatividade econômica e como atribuição e responsabilidade exclusiva das mulheres, cuja função econômica é omitida, somente a partir dos anos 1990 sistematizaram-se estudos correlacionando trabalho doméstico e profissional e saúde mental: o trabalho doméstico está frequentemente associado a sintomas depressivos, ansiosos ou psicossomáticos devido à rotinização das tarefas, à desvalorização e interrupções constantes das mesmas; no caso das profissões remuneradas, tem-se a remuneração inferior (não haver equiparação salarial para homens e mulheres com a mesma função, conhecimentos, experiência e tempo de trabalho), a dupla jornada (a mulher chega em casa de um dia inteiro de trabalho e ainda tem que cuidar da casa, porque o marido está muito “cansado” para lavar a louça, está “descansando” na frente da televisão!), idade, situação conjugal, quantidade de filhos.
Tais fatores se intensificam quando o trabalho exercido pela mulher é informal ou autônomo (portanto, os benefícios previdenciários são reduzidos ou ausentes). Mas, a falta de reconhecimento subjetivo do trabalho desempenhado pela mulher é o maior fator de adoecimento psíquico. Da mesma forma, o desemprego quando se tem uma família inteira para sustentar, ou o cerceamento de oportunidades de trabalho para mulheres jovens (alegando inexperiência, mas ocultamente, risco de ter que pagar salário-maternidade para a trabalhadora ficar em casa no período do parto), também são fatores de suscetibilidade aos TMCs.
No tocante à escolaridade, ainda nos deparamos com a situação arcaica de vermos mulheres permanecendo mais tempo na carreira acadêmica, mas sem as mesmas oportunidades laborais e/ou salariais dos homens. Ou, inversamente, mulheres com escolaridade reduzida, interrompida nos primeiros anos do EF (quando tem sorte de cursar!), devido à desvalorização da família ao estudo feminino (e criticamos o Talibã!), gravidez precoce, etc.
Sequelas agravadas
Como se não bastasse todo este cenário preocupante, temos que a pandemia da COVID-19 causou ou agravou desigualdades sociais e déficits econômicos e laborais, principalmente no Brasil. As instabilidades econômicas são fatores de risco para os transtornos mentais (depressão, ansiedade), e vêm cronificando os TMCs principalmente em mulheres já predispostas a eles. Segundo SOUZA et al. (2018), intensificaram-se as cobranças socialmente impostas à função da mulher e à maior tendência de experimentarem transtornos de humor, influenciam para que haja maior prevalência de psicopatologias entre as mulheres jovens. Diante desse quadro, atenção especial deve ser direcionada a essa população, uma vez que apresentam significativa prevalência e recorrência, a longo prazo, de desenvolverem transtornos mentais, além do suicídio.
Os diagnósticos da mulher devem ser contínuos. Sem descuidar dos exames preventivos ao câncer de mama e de útero, a prevenção e tratamentos à saúde mental das mulheres também deve ser motivo de atenção especial dos agentes de saúde. Afinal, somos integradas, mente-corpo. O adoecimento de um compromete o equilíbrio e o desempenho de ambos.
Vamos nos cuidar!
“Loucura” como pretexto para desqualificar a maternidade
A partir da emergência do alienismo no século XVIII, e de seu fortalecimento nos séculos seguintes (quando se torna psiquiatria), um forte parentesco entre a loucura, a periculosidade e a infantilidade se estabeleceram na cultura ocidental (FOUCAULT, 1994). Desde então, “[…] a pessoa em sofrimento psíquico é rotulada de doente mental e tratada como um ‘ser agressivo por natureza’ que, por isso deve ser afastado da sociedade de bem por guardiões da ordem”. (JARDIM; DIMENSTEIN, 2007, p.53). Em sua pesquisa acerca da correlação entre doença mental e gênero dos genitores, BARBOSA e JUCÁ (2017) entendem que “(…) as nuances que permeiam as decisões jurídicas são de várias ordens e a maternidade por parte das mães com sofrimento psíquico grave tende a ser vista como impedimento para o laço da mãe com o seu filho, muito mais em decorrência do estigma da periculosidade do que por uma análise mais aprofundada da questão, o que fortalece a necessidade de estudos sobre a temática.” (p.247), que apontam que as mulheres tendem a ser destituídas formalmente e, com mais frequência, informalmente, dos seus lugares de mães em decorrência de sua condição psíquica e, mais ainda, da falta de suporte social. É nesse contexto que ser mãe e “louca” configurou-se como um fator considerado de risco à integridade da criança. Segundo os últimos autores mencionados, essa relação da periculosidade com a loucura precisa ser desmistificada, posto que não existe nenhuma evidência de que a agressividade esteja mais presentes nos que apresentam um sofrimento psíquico considerado grave do que na população considerada “normal”.