Quantas crianças e adolescentes da geração atual saberiam usar um telefone com teclado numérico em disco ou um guia impresso com os mapas da cidade, tecnologias tipicamente analógicas?
Apesar da avalanche tecnológica que nos faz imergir em um mundo em que o próprio conceito de presença é colocado em xeque, já que não é mais o corpo a única instância que determina essa concepção como propôs Merleau-Ponty; cada vez mais há um afastamento entre a produção e o produtor, com diversas camadas se interpondo entre a tecnologia e o conteúdo[2], de tal sorte que o material se distancie cada vez mais do digital (imaterial).
Códigos tecnológicos
Flusser, em sua obra “O mundo codificado” nos diz que não aprender os códigos tecnológicos implica em “estar condenado a uma existência sem sentido em um mundo que se tornou codificado pela imaginação tecnológica”.
Em outras palavras: mídia produz realidade. Se as mídias surgidas em outras épocas ora determinavam um tempo cíclico e imagético, ora um tempo linear e escrito, as mídias digitais da nossa era trazem uma nova percepção de tempo: o tempo sobreposto e fragmentado, em que tudo acontece mas nada nos passa, o tempo de uma ansiedade vazia.
Passamos a sentir e perceber pela lógica do algoritmo, que atravessa nossa experiência. Mergulhados no mundo, somos e acontecemos no tempo, este cada vez mais ritmizado pelo modelo digital.
Infinitos registros
Se, nos primórdios midiáticos, o que configurava a aura da fotografia era a tentativa de lidar com a perecibilidade humana, por meio de uma imortalização simbólica de um ente querido ou a calcificação da lembrança de um momento[3], hoje a imagem tem um sentido muito mais impermanente e narcísico.
Embora seja possível armazenar infinitos registros de imagens digitais na nuvem, como vídeos e fotos, isso já não importa mais: o momento já passou e a experiência não chega a se constituir enquanto tal em um mundo de prevalência da efemeridade.
Sob o auspício de um modelo binário e algorítmico, o que importa é meramente aparecer e acumular número de curtidas e visualizações: é ter o tal do engajamento, que, empobrecido em seu sentido, antes se referia a um envolvimento mais genuíno e enraizado nas próprias ações.
Sentido heideggeriano
A questão, então, não é sobre se estar no digital configura presença ou não, mas como o digital enquanto técnica no sentido heideggeriano faz emergir uma ressignificação do que é a própria presença.
Se, para Merleau-Ponty, só podemos ser e estar no mundo a partir do corpo, um “objeto que não me deixa”[4], o meio digital funda uma nova percepção de si mesmo e do entorno, que não que não é mais um mundo fisicamente à mão, próximo e palpável, mas um entorno que já passou pela curadoria da utopia digital, nos oferecendo um mundo enviesado pelas nossas preferências e noções de verdade.
Diante disso, propormos algumas formas de constituição psíquica e angústias nascidas desse contexto.
Obsolescência de si mesmo
Na década de 70, McLuhan já nos trazia reflexões acerca dos impactos das mídias, propondo que, muito além da comunicação, elas transformam nossos modos de perceber, de sentir e de experienciar o mundo.
O conceito de Aldeia Global, que preconizava uma sociedade cada vez menos determinada pelas barreiras do tempo e do espaço físico já trazia a rede como metáfora predominante da era digital.
Porém, a metáfora em si mesma se sobressaiu ao mundo físico, tátil e corporeamente alcançável, fazendo da subjetivação temporal e espacial realidade. Essa fragmentação do tempo e do espaço fez emergir uma sensação de esquizofrenia, de perda de um mundo contíguo e tranquilizador. O cotidiano passou a ser composto por retalhos de acontecimentos em terras onde talvez nunca pisemos.
Se, no passado, as tecnologias digitais se colocavam como extensões de nosso corpo e de nossa capacidade cognitiva, agora elas fazem parecer que a máquina e o software obsoleto somos nós, gerando angústia pela degradação de si.
Cada vez mais desejamos nos manter atualizados, perseguindo ansiosamente um tempo impossível e sendo perseguidos pela constante sensação de termos chegado atrasados, como quem perde o ônibus mesmo tendo corrido para alcançá-lo.
O passado se esgota em frações de segundos; o presente é inundando por um fluxo incessante de informações impossível de se acompanhar e o futuro, antes imaginado como inesgotáveis possiblidades tecnológicas de automatização a nosso favor, hoje é um abismo que reproduz o eco de um presente sem experiências e, portanto, sem lembranças.
A sensação de onipresença dá lugar a sensação de não estar em lugar algum.
Narcisismo digital
O mito de Narciso na era digital traz uma imagem que não reflete o si mesmo, mas um simulacro de si sedutor e cruel.
Mais do que substituir a aura da presença física, a presença nas redes sociais se funda na perseguição de um ideal imagético impossível de ser alcançado, dada a sua discrepância com a realidade e a volatilidade com a qual esse ideal de belo muda.
Esse simulacro é sedutor porque, diante de filtros e recursos digitais de manipulação de imagem, é possível se chegar ao padrão atual de beleza, apagando defeitos e ressaltando as características consideradas positivas.
Por outro lado, é também cruel, já que, cada vez mais distante da realidade e manipulado, torna o real frustrante, enfadonho e sem glamour. Assim, não se trata apenas da substituição da presença, mas de uma reconfiguração da presença como uma entidade ou avatar idealizado de acordo com os padrões estéticos vigentes.
Nova percepção
O meio digital inaugura uma nova percepção de si e do entorno, que não é mais a de um mundo fisicamente próximo e palpável, mas um mundo que já passou por uma curadoria e que, filtrado pela utopia digital, oferece um recorte enviesado pelas nossas preferências e noção de verdade e realidade.
Para se destacar de uma multidão cada vez maior, recorre-se a objetificação de si mesmo e a criação de uma autoimagem em bits, que acaba por imprimir uma realidade ao corpo físico e real por vezes angustiante e ansiosa, expressada em distúrbios alimentares, distúrbios de imagem e exaustivos e onerosos procedimentos estéticos que invertem a lógica da relação real e representação.
Se antes, a representação tentava ser fidedigna ao real, agora é o real que tenta se aproximar de sua própria representação.
Ansiedade do afeto binário
O abandono é um temor originário, que solapa nosso sentimento de onipotência no início de nossas vidas, ainda quando somos bebês.
Diante de tal percepção aterradora, irrompe um mecanismo neurótico como tentativa de reduzir a complexidade do entorno e da mãe enquanto outro, colocando esse outro como objeto e não como ser inteiro, permitindo, em sua fantasia, seu controle e manipulação.
Assim, no obsessivo, há uma recusa em perceber-se dependente em relação ao outro[5], substituindo o todo (mãe; ser) pela parte (seio; objetos).
Porém, a neurose sempre chega tarde demais enquanto tentativa de controle, deixando a fantasia originária de abandono escapar por entre os dedos para os campos afetivos cotidianos, operando sempre o mesmo mecanismo de redução do horizonte de significação.
Se antes, o que confirmava o olhar era o cuidado (handling e holding), agora essa confirmação vem por meio de simples visualizações ou curtidas.
O olhar, outrora acolhedor e afetuoso, agora é frenético e distante. Ainda assim, esse olhar empobrecido em sua significância é mais tranquilizador ante o desespero do abandono e solidão digital.
As redes sociais se dão como a brincadeira de peek-a-boo feita com os bebês: mostra-se presença, mas não afeto.
Porém, no caso das redes sociais, a aparição do outro se dá a partir de tantas camadas midiáticas, que sua despersonificação e desmaterialização o transformam em números, curtidas e visualizações, cumprindo o ritual neurótico de uma objetificação cada vez mais distante do humano, travestindo o afeto e o cuidado em um cumprimento fáctico de uma atenção esvaziada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRANCHES, Antonio. O enigma da técnica. In: Item – revista de arte. n. 3, Tecnologia. Rio de Janeiro, 1996.
CASANOVA, Marco. Existência e Transitoriedade: gênese, compreensão e terapia dos transtornos existenciais. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021.
FINK, Bruce. Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
FLUSSER, Vilem. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Trad: Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad: Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
MCLUHAN, M. A galáxia de Gutemberg. Trad: Leônidas Gontijo de Carvalho E Anísio Teixeira. Editora da Universidade de São Paulo, 1972.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SCOLARI, Carlos Alberto. Interfaces: seven laws. 2009.
SIGMUND, Freud. Volume XXI: O futuro de uma ilusão, o mal-estar da civilização e outros trabalhos. Trad: José Octavio de Aguiar Abreu. Editora Imago, 2019.
WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Trad: Breno Longhi. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
[1] McLuhan Galaxy Conference Understanding Media, Today, 2011.
[2] Scolari, 2009
[3] Benjamim W., 1955
[4] Merleau-Ponty, 2006, p. 132
[5] FINK B., 2018