Narcisicamente, a sociedade atual valoriza o status e a vaidade física, intelectual e espiritual de seus participantes. Vive-se a era da predominância das personalidades narcísicas, apaixonadas por si mesmas, que, ao esquecerem do “nós” pelo culto do “eu”, se sentem vazias e incompletas por não obterem a tão sonhada supremacia e a felicidade idealizada, desenvolvendo a culpa inautêntica pelo orgulho ferido. Da mesma maneira, os narcísicos vivem constantemente frustrados, magoados e decepcionados com aqueles que não conseguem supri-los de segurança e reconhecimento.
Nesta entrevista, o tema é aprofundado pelo psicanalista clínico Roberto Lucena, formado pelo Centro de Formação em Psicanálise Clínica Wilson Cerqueira, pós-graduado em psicanálise pela FAATESP Campinas e especializado em atendimento com uso do método ADI (hipnose). Ele também é bacharel em direito pelo FMU Centro Universitário e tem mais de 30 anos de experiência como empresário no Brasil e nos Estados Unidos. Durante sua trajetória empresarial, sempre esteve envolvido em projetos de relevância social, o que o motivou a idealizar o Instituto Suavemente, que atua com empresas e seus colaboradores no sentido de dar suporte psicológico à crescente demanda dos aspectos emocionais.
O que é narcisismo?
É a busca intensa de se colocar como o centro das atenções no mundo. Na psicanálise, o narcisismo seria estabelecer, extremadamente, a si mesmo como objeto, se tornando o centro de tudo para atender, principalmente, as suas necessidades de segurança e essencialmente as de reconhecimento.
Quais os principais tipos que existem?
Para a psicanálise, há um estado narcísico primitivo no bebê (narcisismo primário/onipotência primária) e um narcisismo secundário que se desenvolve, simultaneamente, com a organização do ego. No narcisismo primário, se desenvolve uma identificação entre o ego que inicia sua formação e o id, manipulando os adultos pelo choro. Esse primeiro narcisismo é, na realidade, o primeiro estado de relação do ser humano com a vida, ou seja, há uma predominância do amor por si, na busca instintiva da sobrevivência, através do alimento e da segurança física e psíquica proporcionada pelo colo e pelos cuidados da mãe/parental cuidador.
Já no narcisismo secundário, a onipotência primária é perdida quando a criança recebe a primeira restrição educacional, o primeiro limite, o primeiro “não pode”. Assim o ego, se sentindo em desconforto pelas restrições sofridas, precisa obter novamente a onipotência perdida pelo fim do narcisismo primário, investindo seu tempo e sua presença, fazendo o que lhe mandam fazer, nas tarefas e nos comportamentos impostos pelos educadores: ouvindo, ajudando, estudando etc. Desse modo, ao agir segundo os padrões definidos pelos educadores, será elogiado e aceito e se sentirá harmonizado psicologicamente, principalmente pela segurança e pelo reconhecimento recebido do mundo exterior.
Para Freud, os padrões do narcisismo secundário, após introjetados, estabelecem uma estrutura idealizada quase que permanente da personalidade e do caráter do indivíduo, contudo devem e podem ser flexibilizados ao longo dos anos, incorporando desejos e tendências específicas para cada ser humano.
O narcisismo secundário abrange quatro tipos. Quais são eles?
Narcisismo estético: é baseado nos padrões introjetados no ego ideal (personalidade) que estabelecem como objeto tudo que permite ao indivíduo se sentir superior aos outros pelos aspectos físicos da estética corporal ligados à vestimenta, à moda, ao luxo, gerando a vaidade física.
Narcisismo intelectual: é aquele que estabelece como objeto o aplauso, a aceitação, a valorização e o reconhecimento alheio pela superioridade intelectual que acredita possuir em decorrência do conhecimento e do poder que acha ter conquistado.
O narcisismo do intelecto produz principalmente os seguintes sentimentos de superioridade: orgulho (vaidade decorrente da superioridade intelectual que o indivíduo acredita ser possuidor, a suposta perfeição de conhecimento que acha possuir, que lhe proporcionará a provisão de segurança e de reconhecimento pela supremacia que imagina ter em relação aos outros); prepotência (vaidade decorrente da supremacia do poder que o indivíduo acredita ser possuidor que faz com que ele busque a superioridade em relação aos outros, no trabalho, na família e na sociedade; a vaidade do poder lhe dará, principalmente, uma provisão de segurança e de reconhecimento); presunção (vaidade do saber que acha possuir e que pensa ser superior ao saber dos outros; isso dará ao indivíduo uma provisão de segurança e de reconhecimento pelo conhecimento adquirido pelos diplomas e experiência de vida).
Narcisismo espiritual/evolução moral: é baseado no ideal de ego e no ego ideal, que estabelece como objeto a sua suposta perfeição moral, divina, que faz o indivíduo sentir superioridade evolutiva sobre os outros na busca da provisão de segurança e de reconhecimento que ele necessita. No narcisismo espiritual, geralmente, o ego também manifesta a prepotência, a presunção e o orgulho.
Narcisismo sexual: segundo Freud, o narcisismo sexual é um dos fatores que estabelecem a escolha homossexual, fazendo o indivíduo escolher como objeto a si próprio, levando-o a buscar alguém do mesmo sexo para ter relações sexuais.
Qual a relação entre a modernidade e a personalidade narcisista?
Na era atual, com o desenvolvimento populacional que gerou grandes cidades e a assombrosa ascensão tecnológica, estabeleceu-se o declínio nas relações interpessoais coletivas, da empatia e natural afetividade entre as pessoas. O ter e o aparentar ser inauguraram o consumo material e a busca desenfreada de reconhecimento social, que fez muitos priorizarem o que é material, superficial e ilusório em detrimento dos valores morais e espirituais, que são os únicos que podem trazer a paz interior.
Narcisicamente, a sociedade atual valoriza o status e a vaidade: física, intelectual e a espiritual de seus participantes. Vivemos a era da predominância das personalidades narcísicas, apaixonadas por si mesmas, que, ao esquecerem do “nós” pelo culto do “eu”, se sentem vazias, incompletas e frustradas por não obterem a tão sonhada supremacia e a felicidade idealizada, desenvolvendo a culpa inautêntica pelo orgulho ferido. Da mesma maneira, os narcísicos vivem constantemente frustrados, magoados e decepcionados com aqueles que não conseguem supri-los de segurança e de reconhecimento, ou seja, de aceitação, de valorização e de estima.
Quais as principais características de pessoas narcisistas?
O narciso espera receber das pessoas, das coisas que possui e dos sistemas (família, sociedade e trabalho) os cuidados, a segurança e o reconhecimento, ou seja, o tempo dos outros, os recursos materiais, as provisões de valorização e afetivas necessárias para a manutenção da sua autoestima, do seu autoamor. O narciso precisa ser aceito e amado por tudo e por todos. Desse modo, se torna excessivamente egocêntrico, orgulhoso, prepotente, vaidoso, exigente e egoísta.
Os narcisos são exigentes, tiranos na cobrança do que esperam dos outros, contudo cobram o que não dão. Julgam impiedosamente todos aqueles que se afastam de seus padrões de personalidade. Tornam-se, sem perceberem, pessoas metades, que buscam a felicidade fora de si mesmas, através dos outros, daquilo que é material e que pode proporcionar-lhes a valorização e o status idealizado. Desenvolvem uma falsa sensação de grandiosidade, se tornando reféns do orgulho que impede que eles percebam seus erros e imperfeições.
Comparam-se constantemente na busca da pretendida superioridade e, por vezes, ao se sentirem melhores, julgam com a prepotência e com a presunção que constroem interiormente, se tornando reativos e invejosos ao sentirem a inferioridade em relação ao objeto com o qual se compararam. Precisam manter, a todo custo, a autoestima elevada e, quando não se sentem amados, como o centro de tudo e de todos, se tornam inseguros, deprimidos, chantagistas, agressivos na exigência da atenção e da estima dos outros.
A grande maioria das pessoas que se encontram fixadas no narcisismo teve, no desenvolvimento de sua personalidade, modelos parentais que apresentavam os padrões de ego ideal centrados, ou na supremacia do estético, ou do intelecto, ou mesmo na supremacia espiritual.
Como identificar uma pessoa narcisista na família ou entre amigos, colegas, conhecidos?
Para se identificar uma pessoa narcisista, deve-se observar alguns comportamentos. Uma pessoa narcisista é invasiva em relação ao espaço físico, psicológico e afetivo dos outros, exigindo receber o tempo e a atenção de todos, já que todos devem girar em torno dela para que possam atender suas necessidades. Acredita que tudo lhe pertence, não deixando os outros serem eles mesmos. O narciso sempre dirá como as outras pessoas devem viver. Exige perfeição e julga aqueles que se afastam de seus padrões idealizados de supremacia, já que também precisa usufruir do sucesso e da glória daqueles que estão ao seu redor. Não respeita a privacidade alheia e, muitas vezes, doa as coisas que não lhe pertencem, desconsiderando os sentimentos e as necessidades daqueles que se sentem prejudicados.
Não respeita os limites que lhe são impostos, agindo, ao ser exigido, com agressividade, com desprezo, deboche, ironia etc. Nunca erra e, se erra, é por culpa dos outros. É sempre perfeita e melhor. Sente inveja da felicidade alheia, já que ninguém pode ter a felicidade que não proporcionou ou não tem. Geralmente é sádica com aqueles que não estão no seu campo de interesse ou lhe fazem sombra, diminuindo-os, adorando vê-los para baixo, tristes infelizes. Contudo agem como anjos diante daqueles que podem lhe dar algo em termos de segurança e reconhecimento.
Quais podem ser as consequências de se conviver com pessoas narcisistas para seus cônjuges, filhos, demais parentes, colegas, amigos e demais pessoas de convívio?
As relações com o narciso são sempre conflitivas, não saudáveis, principalmente quando o outro se tornou um objeto comum, ou seja, de consumo diário, já que ele se interessa principalmente por quem lhe dá sempre novas provisões. Nesses casos, não importa se o outro é o cônjuge, filho, amigo, irmão etc. O narciso é uma pessoa dependente do mundo e escraviza todas as outras pessoas que podem lhe favorecer de alguma maneira. Portanto, muitas vezes, as pessoas da relação do narciso devem estar sob cuidados psicológicos para que possam ter fortalecimento para lidarem com ele.
Como lidar com pessoas narcisistas com quem se convive no dia a dia?
Para se conviver com um narciso, é preciso ter capacidade de amar mesmo não gostando, compreender os porquês e respeitar o baixo nível de consciência empática que ele possui. Sempre que precisar, coloque limites, mas sempre usando o ego que avalia através de devolutivas, fazendo com que o narciso pense e pondere sobre suas atitudes. E se for preciso, peça ajuda a um profissional especializado para conseguir lidar com as situações advindas das relações com as pessoas narcisistas.
No que diz respeito à prevenção, como evitar que a personalidade narcisista se desenvolva?
A personalidade humana sadia é constituída a partir da boa estruturação na formação do ser humano. Qualquer inadequação na constituição da personalidade poderá produzir desarmonias tanto no desenvolvimento da sexualidade do indivíduo quanto no relacionamento psicossocial, podendo gerar fixações, patologias e desajustes comportamentais. Ao longo da formação do indivíduo, o mesmo precisa ter uma adequação na forma de ter suprida as suas necessidades de segurança (ser amado e aconchegado) e de reconhecimento (ser valorizado e aceito). Pois é isso que ajuda na formação e estabilidade da autoestima da pessoa.
Deve-se ensinar esse indivíduo a construir sua felicidade, harmonizando sua autoestima, seu autoamor, abrindo seu coração e desenvolvendo sua motivação através da sua autorrealização empática, construindo ideais evolutivos de ser bom, de ser útil, de compreender, de se doar em tempo, materialmente e afetivamente para proporcionar felicidade aos outros.
E como tratar o narcisismo no caso de já estar instalado?
O narciso dificilmente aceita as sugestões para mudar sua percepção de vida, para desenvolver a compreensão e o desprendimento, pois se acha sempre certo e, via de regra, se considera injustiçado ao não ser reconhecido em suas qualidades morais. O narciso é altamente resistente a mudanças, pois geralmente dirige-se ao consultório já frustrado, deprimido, em decorrência das perdas de provisão pelo fim do casamento, do emprego etc., buscando fora de si mesmo soluções mágicas para seus problemas, nunca aceitando seus erros e responsabilidades.
Mesmo assim, com todas essas dificuldades, devemos trabalhar com o narciso sua mudança de percepção de vida, ajudando para que ele tenha a compreensão de que pode ter expectativas na sua vida, pois é humano e real ele esperar por algo que virá a acontecer. O que ele não pode é ilusoriamente se fixar em suas expectativas, transformando o que ele espera em um desejo que irá lhe escravizar, condicionando a sua felicidade, narcísica e egocentricamente, na obtenção do que ele pretende.
Devemos ensiná-lo a não se fixar na busca da felicidade fora de si mesmo, pois isso eliminará a ansiedade e a angústia decorrentes das frustrações ao não conseguir a satisfação dos seus desejos. A viver intensamente o momento presente, reduzindo as suas expectativas de receber, evitando projetar o seu momento psicológico para o futuro. A não construir sua felicidade nas ilusões narcísicas e egocêntricas do ter ou do aparentar ser o que você não é. É trabalhoso não esperar, mas tenha a certeza de que é uma meta possível.