Este artigo é sobre um assunto recentíssimo, e de interesse geral a toda a sociedade e aos profissionais da Psicologia Jurídica e operadores do Direito que atuam diretamente com os Direitos Humanos: racismo e injúria racial.

Os fatos e argumentos

No dia 28/10/2021, os Ministros do STF declararam em julgamento de um caso concreto que o crime de injúria racial é espécie do gênero racismo, sendo portanto, imprescritível, conforme o artigo 5º, XLII, da Constituição.

Isso porque, até então, em muitos processos judiciais em que se propunha a punição por crime de racismo, os julgadores (juízes dos Foros e desembargadores dos Tribunais de Justiça) alteravam (diga-se, distorciam) o entendimento, reduzindo o crime de racismo pelo de injúria racial, que é prescritível e, se (e quando) é punido, tem uma pena menor. Para entendermos a diferença, o crime de racismo é previsto pela Constituição de 1988 (art. 5º, XLII) e pela Lei nº 7.716/1989, é imprescritível (quer dizer, podem se passar muitos anos e a pessoa continua passível de ser processada e/ou condenada), inafiançável (quer dizer, a pessoa não pode pagar fiança para responder processo em liberdade), as penas previstas são mais severas e podem chegar até a 5 anos de reclusão. O crime de injúria racial, por sua vez, está inserido no capítulo dos crimes contra a honra, previsto no parágrafo 3º do artigo 140 do Código Penal, que prevê uma forma qualificada para o crime de injúria, é prescritível (se a pessoa não for processada nem condenada em 08 anos da data dos fatos, o processo se extingue por si mesmo) e afiançável (a autoridade policial (delegado) poderá arbitrar o pagamento de fiança como medida cautelar diversa da prisão após o flagrante, conforme art. 322 do Código de Processo Penal (CPP)) e a pena prevista em caso de condenação é de 1 a 3 anos de reclusão.

A discussão sobre diferenças ou semelhanças entre racismo e injúria racial é extensa e polêmica, e não cabe me estender aqui. Ocorrem muitas confusões, porque a linha é muito tênue e frágil entre a ofensa específica à vítima quanto à raça, etnia, religião ou origem no caso de injúria racial e a ofensa genérica à raça no caso do racismo. Porque a ofensa direta à pessoa com termos pejorativos quanto à raça também se torna uma ofensa a todas às pessoas pertencentes àquela raça. Importante fazer uma observação aqui de que não estou me referindo à raça biológica, mas sim sociológica (como uma construção social). Na injúria racial, o direito violado é o da honra subjetiva da vítima. No racismo, viola-se a dignidade humana.

Sofrimento indizível

Mas, que diferença faz isso para a vítima? Na prática, nenhuma. Porque o sofrimento da vítima é indizível em palavras. Então, ‘tanto faz’ se a pessoa ouviu palavrões e termos pejorativos quanto à sua raça por uma característica específica ou em relação a todas as pessoas que pertencem àquela raça. É muito ‘lindo’ (e cômodo) ficar discutindo a interpretação legal de um termo ou outro, quando se está protegido dentro dos seus próprios gabinetes com ar-condicionado e almofadas de seda… Outra coisa, que ninguém dos juristas se preocupou em analisar até o momento, é a sintomatologia das vítimas, a expressividade do sofrimento, os traumas psicológicos, ouvir as pessoas, dar voz a todo esse impacto emocional de ser alvo de ataques de preconceito, ignorância, intolerância.

Esse foi o meu sentimento ao pesquisar o corpus documental da minha Dissertação de Mestrado na UNISA Universidade Santo Amaro, que defendi em 2017. O objetivo era analisar as jurisprudências do TJSP de 1998 a 2016 quanto ao tema ‘racismo’. Esperava encontrar centenas de julgados, encontrei 16. Desses 16, apenas 14 se tornaram válidos, porque os dois restantes estavam prescritos. Quando fui analisar o motivo da prescrição, vi que em ambos a queixa inicial de racismo havia sido alterada (ou distorcida) pelos julgadores para o crime de injúria racial e, por uma manobra inexplicável, perderam o efeito (prescreveram). E, apesar de não constarem na minha pesquisa, me trouxeram essa reflexão sobre a manobra para alterar os fatos (no mínimo, suspeita, para não dizer fraudulenta): “foi uma brincadeira, você é que é ignorante por não ter entendido”, “não tive intenção” (essa é clássica!), “não é racismo, todo mundo fala assim” (sic, dos detratores).

Quanto aos demais 14, em 12 ocorreu a mesma coisa, mas ainda não havia dado tempo de prescrever. Em cada um desses casos, a defesa do ofensor conseguiu, ardilosamente, transformar o racismo em ‘injúria racial’, só para obter um ou outro resultado: prescrição ou, se não conseguir, pelo menos uma pena reduzida em relação ao racismo. Em apenas 2 julgados houve, de fato, uma condenação do ofensor, condizente com o crime de racismo. Publiquei a dissertação no mesmo ano da defesa, pela Editora Juruá, por sugestão unânime da banca (PERISSINI DA SILVA, 2017).

Impacto psicológico

O dano psicológico à vítima, seja de racismo, seja de injúria racial, é incalculável e inestimável. Entrevista vítimas de racismo, ofendidas profundamente na sua subjetividade, faço Avaliação Psicológica, mensuro e analiso sua dor, relato tudo isso em laudos cuidadosamente elaborados, mas que são negligenciados pelas autoridades judiciais. Juízes que se arrogam o papel de psicólogos e declaram que todo esse sofrimento não passa de ‘mero aborrecimento’. Deveriam sofrer intervenção do Conselho Federal de Psicologia por exercício ilegal da profissão de psicólogo, pois estão invocando prerrogativas de uma profissão para a qual não têm formação qualificada. E, enquanto os juristas desperdiçam tempo e energias em discutir se a ofensa foi à pessoa ou à humanidade (como se a pessoa não estivesse na humanidade!), desconsideram todo um trabalho científico, fidedigno, e negligenciam todo o sofrimento das vítimas.

Se considerarmos o princípio de que os atos de intolerância racial não afetam somente aquele indivíduo em particular, mas toda a coletividade, não é possível delimitarmos que a ofensa deva ser específica para a aquele indivíduo, ou que, se assim o for, seja de menor importância. Para a Psicologia Social, o preconceito é uma atitude negativa frente ao ‘outro’ (indivíduo e/ou grupo) que envolve fatores cognitivos (crenças) e afetivos (sentimentos e emoções instados pela presença ou lembrança ou simples hipótese de indivíduos do grupo-alvo). Mas quando o preconceito é exteriorizado em comportamento, (atitudes distintas em relação ao grupo-alvo, beneficiamento e privilégios ao seu próprio grupo, ou a um grupo enquanto outro é arbitrariamente prejudicado), torna-se discriminação.

Avaliação Psicológica

Esperemos que a equiparação da injúria racial com o racismo, na recente decisão do STF, traga um pouco de esperança às vítimas deste crime abominável. Para tanto, será necessário haver contínuas atitudes de conscientização social, bem como intenso trabalho de repressão às condutas violadoras. O sofrimento das vítimas não pode ser ignorado e negligenciado, é importante que haja valorização do trabalho do Psicólogo Jurídico para a realização de profunda e fidedigna Avaliação Psicológica que efetivamente dê voz a esse elemento essencial do contexto do crime de racismo.

Da mesma forma, não basta a mera substituição de terminologias para erradicarmos o preconceito racial, de ‘negro’ para ‘afrodescendente’, ou de ‘negro’, para ‘moreno’, pois estaremos escamoteando o racismo e enaltecendo a demagógica ideologia da ‘democracia racial’. O que efetivamente combate o preconceito é o exercício sistemático do respeito e da atenção ao outro enquanto ser humano. E também a compreensão do significado inconsciente dos preconceitos na vida no indivíduo e a influência dos grupos sociais a que aquele indivíduo pertence.

Além disso, mesmo quando a legislação e o Judiciário se mostram eficientes para zelar pela tutela jurisdicional às vítimas do racismo, não há garantias de plena e completa erradicação do racismo enquanto houver uma ideologia de hierarquização racial, explícita ou não, que dificulta ou obstrui toda e qualquer forma de participação dos afrobrasileiros em diversos setores da sociedade.  Essa ideologia se encontra enraizada e inconsciente no interior dos indivíduos e grupos, e as pessoas continuarão agindo de forma equivocada enquanto o significado do preconceito racial não se tornar consciente e elaborado: repetimos padrões de comportamento nocivos enquanto não os conscientizarmos deles e não aprendermos a lidar com aquela situação de forma mais amadurecida. Não bastam campanhas sociais: é preciso que os próprios indivíduos se conscientizem da nocividade para si e para outros do comportamento preconceituoso.

E MAIS…

Racismo abordado também sob aspectos da Psicanálise

O racismo, assim como todas as formas de preconceito a partir de determinado critério (religioso, sexista, etário), pode ser abordado também sob aspectos da Psicanálise, se considerarmos que é decorrente de elementos inconscientes decorrentes da formação psíquica do indivíduo, a partir das primeiras relações afetivas da criança com seus pais ou cuidadores e as primeiras relações objetais. Em seu texto “O Estranho” (1919), FREUD nos fala que nem tudo o que é assustador ou sinistro evoca o sentimento do estranho, mas justamente aquelas situações familiares, decorrentes do narcisismo primário (pensamento primitivo da infância – onipotente, anímico, mágico) que foram reprimidas[1], mas que escaparam do recalque[2] (esse conteúdo não é, a princípio, reconhecido como familiar). FREUD nos fala de uma ambiguidade que nos faz assustar, esse ponto de encontro quando então não sabemos mais distinguir familiar e estrangeiro. O outro é sempre visto como ‘invasor’. O ‘intolerante’ sempre invoca a noção de ‘limite’. Mas, qual seria o território mínimo desse indivíduo ‘intolerante’? Trazendo-se para o racismo, temos que o sujeito racista sempre se vê como ‘vítima’ enquanto o outro se transforma em perseguidor, ameaçador, e que ‘merece punição’.

Referências
BUENO, F.C. A prescrição no crime de injúria racial. Migalhas. Ribeirão Preto, 10/12/2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/337681/a-prescricao-no-crime-de-injuria-racial>.
REDAÇÃO. Injúria racial é imprescritível, decide STF. Migalhas. Ribeirão Preto, 28/10/2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/354032/injuria-racial-e-imprescritivel-decide-stf>.
RICHTER, A. STF decide que crime de injúria racial não prescreve. Agência Brasil. Brasília, 28/10/2021. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-10/stf-decide-que-crime-de-injuria-racial-nao-prescreve>.
FREUD, S. O estranho. In: FREUD, S. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). 129. ed. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. XVII, p. 138-162, 2006.
RODAS, S. STF equipara injúria racial a crime de racismo, considerando-a imprescritível. Consultor Jurídico (ConJur), 28/10/2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-out-28/stf-equipara-injuria-racial-racismo-considerando-imprescritivel?fbclid=IwAR3MegEj-w_jsufCUsj98OwU9-r4m99OqHOe8o106Xm5HfwMJ57nKcyy7XI>.
PERISSINI DA SILVA, D.M. Racismo. A Psicologia e o Judiciário no trato dos crimes de intolerância racial. Curitiba: Juruá, 2017.
CANAL CIÊNCIAS CRIMINAIS. O Delegado de Polícia pode arbitrar fiança? JusBrasil, 2018. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/512985128/o-delegado-de-policia-pode-arbitrar-fianca>.

[1] Repressão: a repressão é um mecanismo consciente que atua entre o consciente e o pré-consciente. Trata-se da exclusão de algum material do campo da consciência, a partir de critérios morais (superego).
[2] Recalque: mecanismo de defesa psíquica inconsciente, pelo qual as ideias ou os impulsos indesejáveis ou inaceitáveis para a consciência são suprimidos por ela e impedidos de entrar no estado consciente. Este material indesejável não está geralmente sujeito à recordação voluntária consciente, só podendo reaparecer claramente ou não nos sonhos, ou de forma mais explícita durante o processo terapêutico.