Na experiência da despersonalização o indivíduo se sente irreal e distante de sua mente, de seu corpo, ou de ambos, como se fosse um observador externo dos seus pensamentos, sentimentos e ações. Por isso, há uma certa anestesia física e emocional, com a pessoa referindo, por exemplo, que não consegue sentir os próprios sentimentos e que os seus pensamentos não parecem ser seus. O indivíduo pode sentir que não tem controle sobre suas ações, como se fosse um autômato, um robô. Quando essa sensação de irrealidade se aplica à pessoa como um todo, a sensação é a de uma cisão no senso de si mesmo, como uma espécie de experiência extracorpórea.

A vivência da despersonalização não é incomum: segundo o DSM-5 (APA, 2014), pelo menos metade da população adulta já viveu um desses episódios alguma vez na vida. Porém, se essas ocorrências são frequentes, intensas ou duradouras, elas podem constituir um Transtorno de Personalidade. Nesse contexto, a experiência é acompanhada de sofrimento e de disfunções, principalmente no âmbito profissional e nos relacionamentos pessoais.

Consequência de uma ruptura

A despersonalização é consequência da perda ou ruptura de um estado anterior, a personalização. Esta implica na sensação do indivíduo de viver dentro de um corpo que é seu e que é investido de significados afetivos, e de ser si mesmo, apropriando-se de suas emoções e sentimentos, constituindo-se na mesma pessoa durante a passagem do tempo, apesar das mudanças que acontecem na vida.

A personalização não é uma condição inata, mas uma conquista do desenvolvimento emocional. Ela é alcançada na infância, junto com outra capacidade, a integração, que é a sensação da pessoa de ser ela mesma, apesar de suas oscilações emocionais, de ter um corpo coeso composto por várias partes, e de ter fronteiras físicas e psicológicas bem definidas em relação aos demais, diferenciando-se deles. Essas duas capacidades são adquiridas a partir do cuidado do bebê proporcionado pela mãe ou pela pessoa que dele se ocupa. A oferta do colo, o banho, as mensagens da mãe que traduzem a sua forma de ver o bebê como um ser único, com características próprias, nomeando os sentimentos dele e as suas partes do corpo, vão contribuindo gradualmente para a composição de uma unidade física e emocional da criança. Na despersonalização essa sensação de unidade nunca foi atingida, ou foi alcançada e perdida, ocorrendo um processo de regressão.

Compor diferentes quadros

Nos casos em que a experiência da despersonalização não é intensa e frequente o suficiente para indicar um transtorno, a pessoa chegou a alcançar a personalização mas, devido a algum estresse emocional, ela também opera essa regressão, porém, apenas por um determinado período de tempo. Assim, ultrapassada a situação estressante, o indivíduo recupera suas capacidades anteriores.

Isso também acontece nas circunstâncias em que a despersonalização é deliberadamente induzida, como na meditação e na arte. Na pintura, por exemplo, o artista precisa, muitas vezes, “sair de si mesmo” e colocar-se no lugar do objeto ou da pessoa que pretende retratar. Nessas condições, a despersonalização tem um valor social importante, constituindo, inclusive, um recurso da personalidade. Já em casos patológicos, ela é identificada como um sintoma que pode compor diferentes quadros, como o Transtorno de Pânico, o Transtorno de Despersonalização/Desrealização, a Esquizofrenia, entre outros.

E MAIS…

A relação com os traumas infantis

A origem do Transtorno de Despersonalização/Desrealização está associada a traumas infantis e ao abuso e negligência emocional. Esses eventos criam uma fragilidade na personalidade, que pode persistir equilibrada durante algum tempo, mas, diante de uma situação futura de estresse grave (interpessoal, financeiro ou profissional) ou geradora de ansiedade ou depressão, o transtorno pode ser desencadeado.

Diante disso, a título preventivo, para as patologias em que a despersonalização está presente, medidas relacionadas à garantia de bons cuidados à criança, principalmente nos anos iniciais de vida, visando a constituição de alicerces sólidos da personalidade, são as mais promissoras. Elas seriam capazes, inclusive, de permitir ao indivíduo o uso instrumental da despersonalização para propósitos sociais importantes, como a produção artística, visto que esse recurso requer a existência de uma personalidade flexível e estável o suficiente para que a despersonalização não seja vista como uma ameaça, nem vivida com angústia pelo indivíduo. Por isso, políticas públicas priorizando a atenção à criança e à família são as que mais promoveriam finalidades ligadas tanto à saúde mental individual quanto outras, sociais e culturais. Por outro lado, quando a despersonalização já se instalou como parte de um quadro psicopatológico ou se tornou um sintoma constante, a busca de tratamento por meio da psicoterapia e, dependendo do caso, de medicamentos, é essencial.

REFERÊNCIAS
American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5a ed. Porto Alegre: Artes Médicas.