Podemos enxergar algum sentido nessa tragédia coletiva que nos acomete no momento? Esse é o objetivo de algumas reflexões que iremos fazer no presente texto.

Iremos começar com uma fala do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung: “As gigantescas catástrofes que nos ameaçam não são, de modo algum, acontecimentos elementares de natureza física ou biológica, mas acontecimentos psíquicos. As guerras e revoluções que nos ameaçam com tanta violência nada mais são do que epidemias psíquicas. O Iluminismo, ao expulsar os deuses da natureza e das instituições humanas, não atentou àquele Deus do terror que habita em toda a alma humana.”

O iluminismo, movimento intelectual que surgiu durante o século XVIII na Europa, defendendo o uso da razão (luz) contra o antigo regime (trevas), pregava maior liberdade econômica e política. Esse movimento, representado miticamente por Prometeu, nos foi útil. Roubamos o fogo dos deuses e trouxemos para a humanidade, o que gerou conhecimento.

No entanto, parece que não soubemos utilizar adequadamente o fogo. A racionalidade prometeica perdeu a sua justa medida e expulsou os deuses da natureza, declarando “Deus está morto”. Não percebeu o terror dentro do homem. Ficamos acorrentados, presos ao capitalismo e ao “mundo com as vantagens antissociais, que trazem consigo a justificação ideológica a partir da competição na justificação da acumulação de riqueza, mediante a geração de servidão sob o pretexto da eficácia produtiva”, nas palavras do neurobiólogo chileno Humberto Maturana.

Intimidade com a terra

O homem contemporâneo parece estar cego, incapaz de relembrar a sua antiga intimidade com a terra. Por causa desse “esquecimento”, os problemas ecológicos atuais se atiram sobre nós como um choque. Nota-se o emergir de uma amnésia que é realmente um duplo esquecimento, no qual uma cultura esquece, e então esquece que tem esquecido de como viver em harmonia com o planeta.

Para o sociólogo francês Serge Latouche: “Para onde estamos nos encaminhando? Diretamente contra um muro. Estamos a bordo de um bólido sem piloto, sem marcha à ré e sem freios, que irá se chocar contra os limites do planeta”. A marcha à ré e os freios que a cultura neoliberal se recusou obstinadamente a usar, agora foram desencadeados: não graças a uma revolução violenta, mas sim a um vírus invisível que, atuando sobre a sociedade opulenta, ajudará na reflexão dos seus valores. Como o herói mítico Perseu, precisamos do escudo da reflexão para vencer o monstro terrível da medusa do coronavírus.

O psicólogo americano James Hillman nos convida a pensar se o homem pode ser separado do mundo em que vive. Onde está o “eu”? Onde o “eu” começa? Onde o “eu” termina? Onde o “outro” principia? Até o momento, como não podemos avaliar onde o “eu” termina (em minha pele? em meu comportamento? em minhas conexões de interface pessoal e suas influências e traços?), como nós podemos estabelecer os limites da psicologia?

Organismo vivo

A hipótese de Gaia trata o planeta Terra como um único organismo e o ser humano, enquanto indivíduo e espécie, parte dele. A psique humana, assim, é parte integral da teia da natureza e de um sistema mais amplo que a contém e está contida nela. Será que o homem precisa ver que ele não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela?  O que quer que ele faça à rede, fará a si mesmo. Uma coisa sabemos: nosso deus é também o seu deus. A terra é preciosa para ele e magoá-la é acumular contrariedades sobre o seu criador.

Como o médico Bernard Rieux, personagem principal do romance A Peste, publicado em 1947 pelo filósofo franco-argelino Albert Camus, hoje estamos presos num limbo entre o pesar e a esperança, no qual temos que aprender que “a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado”; que “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, que pode permanecer adormecido por décadas nos móveis e nas roupas, que espera pacientemente nos quartos, nas adegas, nas malas, nos lenços e nos papéis, que talvez chegue o dia em que, infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los morrer numa cidade feliz”. Só depende de nós.

E MAIS …

A Sociologia e o avanço tecnológico

O sociólogo italiano Domenico de Masi, numa entrevista recente disse: “O que significa uma pandemia como essa para Roma, para a Itália, para a humanidade como um todo? Como ela age nas mentes e nos corações de todos nós que, armados com tecnologias poderosas e inteligência artificial, até poucas semanas atrás nos sentíamos os senhores do céu e da terra? Subitamente nos descobrimos frágeis pigmeus diante da onipotência imaterial de um vírus que, por vias misteriosas, escapou de um morcego chinês para vir matar homens e mulheres em nossas cidades. A sujeição a um vírus desconhecido, para o qual não há nem cura nem vacina, transformou a Itália numa enorme caserna blindada, e os 60 milhões de italianos noutros tantos dóceis soldadinhos empenhados num gigantesco exercício militar no qual estão obrigados a aprender a verdade que antes ignoravam obstinadamente. O que não quer dizer que irão apreendê-la”.

Parece que a pandemia que nos assola é um grito invisível e mortal da natureza que clama por mudanças no comportamento humano. Afinal, é esse próprio comportamento disfuncional do homem que tem gerado desastres ambientais e destruição dos habitats naturais. Junte a esse comportamento, um grande fluxo de pessoas transitando rapidamente e teremos doenças que antes se ficavam pela natureza e que atingiam apenas animais, vindo para as cidades e devastando populações.