Yellowjackets é uma série que faz muito sucesso entre o público que gosta de suspense e elementos sobrenaturais nas telas. Tudo começa quando o avião de um grupo de futebol feminino cai, deixando todas as passageiras isoladas por 19 meses, e o que já parece ruim acaba por piorar pelas decisões tomadas ao longo da história.

Nos episódios, acompanhamos o presente das meninas (que sobreviveram) na vida adulta, intercalando com flashbacks dos meses que ficaram presas em uma região remota. Ambas as linhas do tempo são recheadas de mistério e segredos que vão sendo revelados aos poucos.

É evidente que foi um momento traumático, mas na série a situação fica um pouco mais complicada. Para sobreviver nesses meses, as personagens se abrigaram em uma cabana abandonada e tiveram que (literalmente) lutar, com decisões drásticas (e traumáticas). A queda do avião e o choque inicial são cenas de puro terror. A visão das meninas tentando lidar com a perda dos membros da equipe e a sobrevivência em uma floresta isolada cria o cenário para um trauma duradouro.

Culpa e negação

A morte de uma personagem que sobreviveu à queda do avião é uma das cenas mais marcantes (não só por abordar a morte, mas pelos eventos que se seguem). Ela morre de forma trágica ao ser deixada para trás pelas outras, gerando culpa e negação.

Acompanhamos o desenvolvimento do trauma da melhor amiga da personagem de perto, quando ela tenta “preservar” o corpo e passa horas do dia “conversando” com a morta, relembrando momentos juntas e criando novos momentos imaginários entre elas. Apenas essas cenas já são chocantes e o pontapé inicial para o enorme trauma que todas ainda irão vivenciar. Após se preocupar com a situação, o treinador intervém a fim de acabar com esse comportamento destrutivo e o grupo decide queimar o corpo.

Sobrevivência

Importante destacar que as personagens não se alimentavam direito há dias nesse ponto da série e a decisão tomada de forma implícita pelo grande grupo foi a de recorrer ao canibalismo para sobrevivência. Sem entrar em detalhes, podemos saber que foi uma cena e uma situação explícita e traumática em que, no dia seguinte, a maioria das personagens não lembrava o que havia feito (o esquecimento é um dos sintomas comuns de pacientes com transtorno de estresse pós-traumático, TEPT). A forma como as personagens lidam com isso demonstra claramente como essa morte é um evento que permanece com flashbacks dolorosos e consequências psicológicas. Elas começam a perder o controle sobre suas ações, um reflexo do trauma que estão vivendo.

Esse momento de morte e canibalismo é um dos maiores pontos traumáticos da série, com impacto emocional explorado em várias cenas. Várias das personagens têm dificuldades para lidar com a ideia de terem feito isso, gerando uma mistura de negação, distanciamento e sofrimento psicológico que se reflete em seu comportamento. Elas até parecem tentar se convencer de que não fizeram o que fizeram como uma forma de defesa psicológica.

Ainda nos momentos de flashbacks sobre esses meses, vemos algumas das personagens apresentarem visões e episódios de delírio (especialmente à medida que a tensão vai crescendo entre as meninas) que vão ser compreendidos por elas como uma ligação espiritual com a floresta, que compreendemos como uma consequência psicológica desencadeada pelo trauma experienciado.

Dissociação

Com inúmeras cenas do passado que não citaremos, também precisamos voltar nosso olhar ao momento presente e das consequências que tudo isso causou nas sobreviventes, como dissociação, uso de remédios ou substâncias, evitação entre outros. Em algumas cenas no presente, as sobreviventes têm flashbacks intensos que as fazem reviver momentos do passado de maneira vívida e perturbadora. Misty, por exemplo, muitas vezes tenta se distanciar de sua própria culpa e das ações que tomou no passado ao experienciar esses flashbacks, com dificuldades em distinguir a realidade da memória, algo comum em pessoas que sofreram eventos traumáticos e tentam processar a dor.

Natalie, no presente, é outra personagem profundamente afetada pelo que aconteceu. Ela sofre de sintomas típicos de TEPT, incluindo pesadelos, comportamento impulsivo e dificuldades de relacionamento. Em uma cena importante, ela revive os momentos mais traumáticos de sua juventude em conversas enquanto lida com o estigma de ser uma das “loucas sobreviventes”. Também lida com o impacto do trauma por meio de comportamentos autodestrutivos, como o uso de substâncias para tentar anestesiar a dor emocional. Sua luta contra o vício e a tendência a tomar decisões impulsivas são manifestações claras de como o trauma não resolvido a afeta.

Outra personagem, Lottie, fundou e se tornou uma figura central em uma seita no presente. Acompanhamos diversas cenas em que demonstra como ainda busca controle, mas também uma conexão com o que aconteceu no passado. Ela tenta convencer as outras pessoas de que o trauma coletivo que vivenciou com as outras meninas tem um propósito divino ou espiritual, como uma maneira de lidar com a sensação de desamparo e desesperança que ainda carrega. A maneira como Lottie usa a fé e o culto para lidar com a dor emocional é um reflexo de como ela ainda não conseguiu processar completamente o que passou.

Evitação e desconfiança

Ao longo dos momentos que acompanhamos o presente, várias das sobreviventes têm pesadelos e flashbacks de sua experiência na floresta. Essas cenas geralmente ocorrem de forma abrupta, como se as personagens estivessem sendo arrastadas de volta para a época do acidente, sendo intensas e perturbadores e muitas vezes misturando as memórias do passado com a realidade do presente, o que mostra como o trauma ainda está ativo na mente delas.

No presente, a relação entre as sobreviventes é de evitação e desconfiança, mas também vemos culpa, raiva e traumas não resolvidos. Várias delas tentam evitar confrontar o que aconteceu e têm dificuldade de manter qualquer tipo de amizade saudável embora ainda estejam conectadas por esse passado compartilhado. Elas carregam o peso do trauma de formas muito diferentes, e isso cria um ambiente no qual, mesmo que algumas ainda se importem, elas frequentemente se afastam umas das outras.

Exposição

O TEPT é um transtorno que se desenvolve após a exposição a um ou mais eventos traumáticos e que gera uma série de sintomas relacionados ao estresse intenso e à incapacidade de processar o trauma de maneira adaptativa. Ele se caracteriza por lembranças ou recordações vívidas que invadem a mente em forma de flashbacks ou pesadelos, acompanhados de fortes emoções que regressam ao que foi sentido no evento traumático. O paciente também busca evitar pensamentos, acontecimentos, situações ou pessoas que representam ou a lembrem do evento.

No caso da série, o transtorno de estresse pós-traumático é um tema central, refletido nas vidas das personagens que sobrevivem ao acidente e são forçadas a lutar pela sobrevivência em condições extremas, por isso foi a série escolhida.  Ao longo da trama vemos a complexidade do trauma em diferentes formas, com as personagens sendo expostas a situações extremas de violência, morte, canibalismo e a constante ameaça à vida. Isso cria um ambiente propicio para o desenvolvimento de TEPT, uma vez que os eventos traumáticos não são processados de maneira adequada durante a experiência, e os efeitos se prolongam por anos, influenciando o comportamento delas na vida adulta.

Abordagem

A abordagem padrão-ouro para tratar o TEPT é a terapia comportamental dialética (DBT), que é um tipo de psicoterapia direcionada a pacientes de alto risco e com grande desregulação emocional. A base da DBT conta com uma teoria biossocial e dialética da psicopatologia. A intervenção foca na importância das dificuldades na regulação emocional, tanto na falta quanto no excesso de controle, e como essas dificuldades influenciam o comportamento.

O conceito de dialética possui dois significados principais: (a) a compreensão de que a realidade é complexa e multifacetada e (b) o uso de diálogo e relacionamentos persuasivos como ferramentas terapêuticas. No contexto terapêutico, a dialética refere-se às abordagens e às estratégias utilizadas pelos terapeutas para promoverem a mudança.

A DBT integra intervenções que trabalham simultaneamente com questões de mudança, essenciais para modificar comportamentos disfuncionais, e com questões de aceitação, que ajudam a lidar com o que não pode ser alterado. Esse equilíbrio dialético é fundamental para que os pacientes se sintam compreendidos e validados em relação às suas dificuldades. Dentro desse modelo, a aceitação envolve reconhecer aspectos que não podem ser modificados, como a vulnerabilidade biológica relacionada à desregulação emocional.

Nesse contexto, a resposta terapêutica adequada é a validação, que abrange tanto as emoções quanto as perspectivas e os desafios dos pacientes e suas famílias, enquanto a aceitação cria um espaço para a mudança, uma vez que diminui a tensão no ambiente, permitindo a introdução de estratégias de transformação.

Habilidades

Aplicar a terapia comportamental dialética de forma geral com o grupo de sobreviventes de Yellowjackets envolve focar nas habilidades emocionais e interpessoais que poderiam ajudá-las a lidarem com os efeitos do trauma e as consequências da experiência que viveram. O grupo compartilha um trauma profundo, e a DBT, com seus princípios de aceitação e mudança, poderia ser aplicada de forma a ajudá-las a regularem suas emoções intensas, melhorar suas relações interpessoais e, principalmente, a tolerar o sofrimento sem recorrer a comportamentos destrutivos.

Interessou-se e quer saber mais? Ligue-se nestas dicas de publicações disponíveis no site da Sinopsys Editora. O livro Psicoeducação em terapia cognitivo-comportamental (Marcele Regine de Carvalho, Lucia Emmanoel Novaes Malagris e Bernard Rangé) tem um capítulo inteirinho dedicada ao TEPT. Tratando trauma com a terapia comportamental dialética: protocolo de exposição prolongada em DBT (Melanie Harned) ensina tudo o que você precisa saber sobre como ajudar pacientes que passaram por situações traumáticas. Outra ótima ferramenta é Conhecendo e enfrentando o TEPT: 50 cards para ajudar você a conhecer e a enfrentar o Transtorno de estresse pós-traumático (Fernando Elias José).