Existem diversos filmes e séries com protagonistas e personagens no espectro autista, mas até que ponto essas representações são verdadeiras? Sabemos que o cinema tem a tendência a amplificar certos traços e acontecimentos, e isso não deixa de acontecer na representação de transtornos.

Acredito que a série com melhor representação autista seja o remake da Netflix “Heatrbreak High”. A premissa do enredo é a revelação dos segredos sexuais e românticos de todos os estudantes de uma escola por meio de um mapa sobre quem ficou com quem.

A princípio, as pessoas levam a situação na brincadeira, mas rapidamente as coisas fogem do controle quando segredos pessoais são expostos. À luz da psicologia, existem diversos tópicos a serem observados e discutidos na história, como sexualidade, racismo, assédio e autismo.

TEA e DSM-5

O transtorno do espectro autista (TEA) é um distúrbio de neurodesenvolvimento que interfere na capacidade de comunicação, linguagem, interação social e comportamento, com padrões restritos e repetitivos (de comportamentos ou interesses), englobando uma variedade de sintomas e graus de severidade.

O diagnóstico é feito de forma clínica por não haver marcador biológico, sendo um transtorno de alta complexidade devido à sua etiologia ainda desconhecida e diversidade de manifestação clínica (cognitiva, emocional e neurocomportamental). Existem alguns critérios diagnósticos a serem seguidos segundo o DSM-5:

A. Déficits persistentes na comunicação e interação social em diversos contextos.

B. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades.

C. Os sintomas devem estar presentes precocemente no período de desenvolvimento.

D. Os sintomas causam prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social.

E. Essas pertrurbações não são mais bem explicadas por deficiência intelectual ou atraso global do desenvolvimento.

Esses critérios devem ser avaliados pela gravidade baseada nos prejuízos na comunicação social e em padrões de comportamento restrito e repetitivos, sendo dividida em três níveis:

Nível 1 – Exigindo apoio.

Nível 2 – Exigindo apoio substancial.

Nível 3 – Exigindo apoio muito substancial.

Cada nível tem um aumento no déficit nas habilidades sociais e de comunicação, com limitações e inflexibilidade de comportamento e mudanças, começando na infância e persistindo na adolescência e idade adulta.

Na maioria dos casos, as condições são aparentes durante os primeiros cinco anos de vida, apresentando outras condições concomitantes, como depressão, ansiedade e transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), e com maior prevalência no sexo masculino.

Hoje há uma quantidade substancial de mulheres com diagnóstico tardio de autismo. Uma das hipóteses para isso é o fato de os testes terem sido criados incialmente para homens autistas, sem a consideração de que mulheres e homens com TEA apresentam sintomas diferentes e especificidades.

As intervenções psicossociais baseadas em evidências, como o tratamento comportamental e os programas de treinamento de habilidades para os pais, podem reduzir as dificuldades de comunicação e comportamento social, com impacto positivo no bem-estar e na qualidade de vida das pessoas com TEA e seus cuidadores.

Visão estereotipada

Você com certeza já assistiu a alguma obra com personagem autista ou já ouviu o burburinho de um personagem que pode ser autista por causa de traços apresentados. Mas devemos levar essas representações como verdadeiras? Pessoas no espectro são gênios que conseguem decifrar um código do governo, como o menino Simon Lynch (Miko Hughes) no filme “Código para o inferno” (1998)? Ou médicos superdotados que não conseguem manter relações significativas, como na série “The good doctor”?

Essas e outras obras trazem uma visão não realista e estereotipada de pessoas com transtorno do espectro autista, mostrando um recorte do que se acredita que uma pessoa autista é. Há uma grande dificuldade quanto à fuga desses estereótipos na representação de pessoas no espectro, em que os mais presentes são a genialidade intelectual, a agressividade e o descontrole, até por ser um espectro com variações e graus, dificultando a retratação de todas as possibilidades.

O que não é clichê?

Mas quais representações podem ser consideradas “fiéis” e fogem da nocividade desses clichês? Iniciamos o texto comentando sobre “Heatrbreak High”, da Netflix, que é um remake da série de mesmo nome dos anos 1990. Acredito que a série tenha a melhor representação de uma pessoa autista com a personagem Quinni (interpretada por Chloé Sarah Hayden, atriz no espectro).

Em diversos episódios da primeira e segunda temporadas, vemos a personagem em suas relações apresentando certo déficit de interação social (como o desconforto na festa no episódio 4 da primeira temporada) e desenvolvimento de hiperfoco (como na segunda temporada).

Quinni precisa lidar com diversas mudanças ao longo da série, como a entrada de Aymee em seu grupo de amigos (se tornando um trio) e depois de Harper – a entrada de um novo indivíduo em nosso ciclo social geralmente é de fácil aceitação, porém pessoas no espectro tendem a ter certa resistência e inflexibilidade com pequenas ou grandes mudanças por terem grande apreço por sua rotina.

Também temos representações nas séries “Atypical” (Netflix), “Amor no espectro” (Netflix) e “Everything’s gonna be okay” (HBO Max), em que não existe uma pessoa com autismo igual ao da outra. Além disso, podemos olhar para o indivíduo antes de olhar para sua condição.

Nessas obras, podemos observar os personagens em seu cotidiano, lidando com incertezas e mudanças, e como certos acontecimentos impactam sua rotina, levando a momentos de estresse e ansiedade. Bem como a importância da rede de apoio e suporte a pessoas no espectro.

Se você quer entender mais sobre o transtorno do espectro autista, recomendo a leitura dos livros “Transtorno do espectro autista: histórias terapêuticas para trabalhar com crianças” e “Transtornos psicopatológicos na infância e na adolescência”, ambos da Editora Sinopsys.