A encoprese, ou eliminação das fezes em locais inapropriados, é comum na infância. Geralmente involuntária, ocorre devido à constipação intestinal, mas também afeta crianças que têm medo de usar o vaso sanitário ou que ficam segurando o cocô para não terem que evacuar fora de casa, como na escola, por exemplo. O transtorno pode ter consequências negativas, como baixa autoestima, irritação e isolamento social.

O diagnóstico de encoprese é feito pelo médico pediatra levando em consideração os sintomas e a idade do paciente, pois é comum existir dificuldade para controlar os esfíncteres anais antes dos 5 anos devido ao tempo de maturação cerebral. O tratamento depende da causa e pode envolver mudanças na alimentação, uso de laxantes e, em alguns casos, cirurgia.

A psicoterapia também é recomendada, especialmente quando se identifica a existência de obstáculos psicológicos, como ansiedade e medo, que não permitem estar à vontade com o uso do vaso sanitário. O apoio dos pais ou outros cuidadores é de extrema importância no tratamento.

Livro

Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pela psicóloga clínica de crianças e adolescentes Ariádny Abbud. Especialista em terapia cognitivo-comportamental (TCC) infantojuvenil e em avaliação psicológica, ela é coordenadora da pós-graduação em TCC infantil na Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Proprietária da Lúdica Psicologia e sócia do Instituto de Neuropsicologia e Psicologia Infantil (Inpi), também é professora, ministra cursos e orienta grupos de estudos focados no tratamento baseado em evidências.

Além de desenvolver jogos terapêuticos, é autora de livros infantis, entre eles, ‘Pedro não quer ir ao banheiro’, lançado em 2020 pela Sinopsys e um dos campeões de venda da editora até hoje. A obra conta a história de um menino que experimenta diferentes emoções ao tentar esconder das pessoas que sente medo e evita a todo custo usar o banheiro.

Ao longo do enredo, o personagem manifesta dificuldades relacionadas à encoprese, como constipação, dor abdominal, vazamento das fezes na roupa, regressão para o uso da fralda, dor ao evacuar, vergonha, medo e culpa. Após a exposição desses sintomas, o livro psicoeduca sobre esse transtorno da eliminação, auxilia no reconhecimento das emoções e propõe atividades práticas para o tratamento com base na terapia cognitivo-comportamental (TCC). É indicado para uso clínico e familiar com crianças acima de 4 anos.

Quais os principais objetivos do livro ‘Pedro não quer ir ao banheiro’?

Geralmente, as crianças com dificuldade de evacuar no vaso desenvolvem medo de ir ao banheiro e têm muita vergonha de falar sobre o assunto, até porque algumas delas criam o hábito de fazer cocô em lugares que não são apropriados e, muitas vezes, escondem a fralda ou a roupa que sujaram com os escapes devidos ao longo tempo se segurando, sem ir ao banheiro. Os objetivos do livro são justamente ajudá-las, por meio da conexão com a história de Pedro, a entenderem o que está acontecendo com elas e deixá-las mais confortáveis para se abrirem ao diálogo.

Além de psicoeducar, a obra traz exercícios direcionados às crianças e estratégias para os pais lidarem com a questão, pois, muitas vezes, eles têm dificuldade de manejo, não sabendo, por exemplo, se devem ou não forçar o filho a ficar no vaso, o que fazer quando ele suja o chão ou esconde a cueca suja no meio das roupas limpas, como reagir e como ajudá-lo. No tratamento psicoterapêutico, é feito todo um trabalho de dessensibilização sistemática e o livro ajuda nessa dessensibilização, aproximando o paciente do estímulo aversivo aos poucos.

Quais os principais sintomas que a criança com encoprese apresenta?

Não sabemos ainda a causa da encoprese, que pode estar ligada a questões fisiológicas ou a um desfralde precoce ou um pouco mais traumático, por volta dos 2 a 3 anos de idade, seja por pressão dos pais, seja por pressão da própria escola se os colegas já estão desfraldados. Isso faz com que a criança comece a ter medo e evitar ir ao banheiro e, com essa fuga e evitação, vai acumulando fezes e formando um bolo fecal que causa dor quando ela finalmente evacua. A situação gera associação entre fazer cocô e sentir dor e, consequentemente, vai perpetuando esses sintomas.

Como vêm sendo os feedbacks do livro ao longo dos anos?

São maravilhosos. Pedro já ajudou muitas pessoas, porque mostra exatamente o que acontece com quem tem esse transtorno da eliminação. Recebo feedbacks de pais que utilizam o livro com seus filhos, de professores e, principalmente, de outros profissionais da psicologia. O livro surgiu de uma demanda clínica minha quando atendia um paciente que tinha encoprese e eu não encontrava na literatura algo que pudesse ajudá-lo. Foi aí que nasceu a história que hoje ajuda tantas outras crianças. E a obra possibilita adaptações e uso conjunto com outras estratégias.

Que dicas você daria aos pais que estão enfrentando esse problema em casa?

Mesmo no caso de crianças menores de 5 anos, ou seja, que ainda não têm o diagnóstico de encoprese, mas apresentam dificuldade de ir ao banheiro, é fundamental que os pais tenham muita paciência, uma vez que a questão também está relacionada à maturação cerebral. Portanto, as dicas para os adultos são não brigar e gritar com a criança e nem punir, pois, às vezes, ela não consegue ir ao banheiro não porque não quer, mas porque realmente não consegue, já que diferentes estímulos foram pareados e relacionam a ida ao banheiro à dor ou a algum outro tipo de sofrimento. É importante que os pais entendam que a criança com dificuldade de evacuar já está sendo punida, porque sente desconforto gastrointestinal. Há casos em que inclusive acaba no hospital para fazer lavagem.

Outra dica é aplicar um conceito da psicologia que se utiliza na análise do comportamento e que se chama modelagem, ou seja, os pais serem modelos e ensinarem aos filhos a tarefa de ir ao banheiro, tornarem ela mais natural, fazer do banheiro um local neutro, não um motivo de tensão. E sempre convidar a criança, não exigir que ela vá e faça.

Também é preciso cuidar com as recompensas oferecidas, pois tem momento certo para fazer isso, dentro de um tratamento psicológico e depois de ser feita uma dessensibilização com a criança para que ela vá se acostumando a ir ao banheiro. Outra estratégia é que haja consequências, como, por exemplo, se a criança sujar as peças de roupas com as fezes, é importante que ela mesma as coloque para lavar.

Tornar algumas situações mais desconfortáveis para a criança também é uma dica. No caso de querer usar fraldas em vez de ir ao banheiro na hora do cocô, fazer com que ela mesma coloque a sua fralda, depois a retire e a jogue no lixo. Isso porque, quando a tarefa começa a ficar desconfortável, a criança começa a querer mudar o comportamento.

Também é importante buscar a ajuda profissional, independentemente de ser ou não encoprese, para a criança a partir dos 5 anos adquirir total controle dos esfíncteres. Indico um pediatra, porque, às vezes, alguma medicação pode ajudar para diminuir a dor, e também indico a avaliação com um psicólogo, que vai saber conduzir melhor o caso a partir da literatura e de estudos científicos e também utilizar a história de Pedro para ajudar o paciente a entender o que acontece com ele e o que pode ser feito.