A violência doméstica contra crianças e adolescentes continuará seu percurso por décadas se não for devidamente combatida. Nesse contexto, é preciso preparar pais ou outros responsáveis para exercerem uma paternidade consciente, que possibilite a prevenção por meio do corte da transgeracionalidade. Também é necessário capacitar os agentes sociais a serem o instrumento de quebra do ciclo da violência, introduzindo outras possibilidades de convívio e educação não agressiva.
As afirmações da psicóloga e administradora de empresas Janet Marize Vivan são aprofundadas nesta entrevista.
Formada pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), ela tem pós-graduação em violência doméstica contra crianças e adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP) e em docência no ensino superior pela UCS. Atua como palestrante, orientadora e facilitadora de cursos e capacitações para pais, educadores e demais profissionais ligados à área da infância e juventude.
Sua trajetória profissional acumula a experiência de 16 anos no setor privado, três anos como educadora social em instituição acolhedora que abriga crianças em situação de violência e abandono, 18 anos como psicóloga, atendendo famílias, crianças e adolescentes em situação de violência física, psicológica, sexual e negligências em ambulatório especializado da rede municipal. Por três anos, também foi membro da Equipe de Matriciamento em Saúde Mental da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) e palestrante convidada pela Secretaria Municipal de Educação (SMED) de Caxias do Sul/RS no ‘Projeto família na escola – Escola para pais’.
Desenvolvimento humano
“Todas essas experiências, aliadas ao papel de mãe, permitiram um conhecimento profundo do ser humano, bem como uma grande evolução pessoal”, afirma Janet. Seu foco é educação com firmeza, limite e sem agressividade, bem como construção de relacionamentos saudáveis e gratificantes entre adultos, crianças e adolescentes, promovendo a saúde mental no seio das famílias e instituições por meio do desenvolvimento do ser humano.
É autora do manual ‘Uma cultura de paz – Um olhar sobre os relacionamentos com crianças e adolescentes’ e do livro destaque do mês de agosto de 2020, ‘Educando e convivendo com crianças e adolescentes – Limite e disciplina sem agressividade’, da Editora Paulus, além de tradutora e editora independente do livro ‘Alcance seus sonhos’, com frases e pensamentos. Seu propósito de vida agora é compartilhar com o maior número possível de pessoas esse conhecimento e auxiliar a transformá-lo em sabedoria, que é conhecimento em ação.
Quais são os principais tipos de violência doméstica contra crianças e adolescentes?
A violência doméstica contra crianças e adolescentes também é chamada de maus-tratos. Existem os maus-tratos físicos, qualquer forma de agressão que machuque o corpo da criança ou adolescente. Existe a violência sexual, que pode ser definida como qualquer atitude ou atividade com intenção e/ou conotação sexual, entre um adulto e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade a estimulação sexual própria ou de outro (pode ser usada a força ou a sedução). As negligências também são consideradas maus-tratos quando os adultos cuidadores têm condições de prover o mínimo básico para a prole, mas optam por não fazê-lo (como alimentação, vestuário, saúde, higiene, escolar e supervisão). Também falta de diálogo, de exemplo, de valores morais e éticos, falta de presença, atenção e afetividade, falta de limites, firmeza, constância e persistência. E a violência que está presente nas outras três anteriores e ainda assim pode ser praticada individualmente é a violência psicológica: atitude, palavra ou ação para envergonhar, censurar, pressionar, xingar, ofender, rejeitar, isolar, aterrorizar, exigir, cobrar e punir exageradamente, além de constranger. Utilizar o outro para satisfazer desejos próprios, ameaças e promessas não cumpridas, menosprezo, humilhações, depreciação, discriminação, desrespeito, abandono, brigas e discussões familiares, indiferença, etc. Uma violência psicológica grave ocorre quando da separação dos casais, a alienação parental, que é a desqualificação e a tentativa de proibição de convívio com o outro genitor. Há ainda a questão do trabalho infantil, que ocorre quando a criança ou o adolescente executa alguma tarefa em troca de remuneração para dar conta de despesas da casa. Isso é muito diferente do que auxiliar nas tarefas domésticas, o que é muito recomendável.
Quais são os principais sintomas/sinais de que crianças e adolescentes sofrem violência doméstica?
Esta lista de indicadores foi colhida ao longo de mais de 20 anos de atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência e está descrita em meu livro ‘Educando e convivendo com crianças e adolescentes – Limite e disciplina sem agressividade’: lesões físicas (hematomas, queimaduras, cortes, fraturas), doenças não tratadas, desnutrição, enurese, encoprese, distúrbios do sono (sonolência, insônia, pesadelos), distúrbios da alimentação (perda/excesso de peso, bulimia, anorexia), autoflagelação, aparência descuidada e suja, hiperatividade, fugas de casa, relutância em voltar para casa, não confiar em adulto (especialmente os que lhe são próximos), relacionamento entre crianças e adultos com ares de segredo e exclusão dos demais, desinteresse e dificuldades de aprendizagem, desvalorização pessoal, baixa autoestima, desencadeamento de transtornos psíquicos, comportamento rebelde/agressivo, comportamento muito apático, faltar frequentemente à escola, comportamento extremamente tenso (em estado de alerta), não participar de atividades escolares, dificuldade de concentração, problemas de aprendizagem, problemas de relacionamento, afastamento, isolamento, tristeza, abatimento profundo, choro sem causa aparente, ter poucos amigos, excessiva preocupação em agradar, regressão a um comportamento muito infantil, não frequentar escola por vontade dos pais.
Essas mesmas consequências, às vezes, podem ser causadas por outros fatores, tais como: transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e outros transtornos mentais, transtornos neurológicos, alterações do processamento auditivo central e outras síndromes orgânicas, dificuldades psicológicas (separações, lutos, conflitos, etc), inadequações alimentares, de sono e de atividade física, uso excessivo e impróprio de aparelhos eletrônicos, pobreza de estímulos adequados, excesso de estímulos inadequados e a simples repetição de comportamentos aprendidos. Por isso, é importante que especialistas façam o diagnóstico.
E quais são os indicadores mais ligados a abuso sexual?
Interesse demasiado sobre sexo, desenhos, gestos e atitudes obscenas, ideias e tentativas de suicídio, comportamento sexualizado precoce, comportamento sexualmente explícito (mostrar conhecimento inapropriado à sua idade), masturbação visível, contínua e compulsiva, brincadeiras sexuais agressivas, infecções sexualmente transmissíveis (inclusive aids), dor, lesões, infecções anais e/ou genitais, repetição do abuso em outras crianças, prostituição, uso de álcool e outras drogas.
Quais são as principais consequências da violência doméstica para as crianças e os adolescentes? E como isso se reflete também na vida adulta?
A curto prazo, autoestima baixa, expulsão de grupos, transtornos de conduta, dificuldades de aprendizagem, dificuldades de relacionamento, discriminação, preconceito, rejeição, comprometimento do nível intelectual, distúrbios alimentares (anorexia, bulimia), tendência de busca por drogas e sexo precoce, distúrbios do sono (sonolência, insônia, pesadelos). A médio e longo prazos, crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos possivelmente não atingirão o potencial de desenvolvimento pessoal que têm por natureza. Possivelmente terão que lidar com busca por saúde mental durante toda sua vida. Terão mais dificuldade para dar conta das necessidades que o mundo pessoal, relacional e do trabalho apresentam ao longo do ciclo vital. E o mais preocupante é que essa formação tende a ser repetida transgeracionalmente, ou seja, o ciclo de maus-tratos inicia-se com o bisavô, passa, para o avô, continua no pai, alcança o filho e chegará ao neto, a não ser que algo ocorra no meio do caminho e mude o direcionamento.
De que forma a violência doméstica contra crianças e adolescentes pode ser prevenida/evitada?
Na minha experiência, tendo participado e proferido centenas de palestras para pais e educadores, percebo que falta muita informação sobre o que é educar e formar um ser humano. A sociedade tem investido muito pouco em instruir, capacitar, instrumentalizar, informar e dar condições aos pais para exercerem uma paternidade realmente consciente e adequada às necessidades de crianças e adolescentes. Ao trabalhar com a questão do não uso da palmada como forma de educar, percebi muitos pais e mães brilharem os olhinhos de alegria em aprender uma nova forma de educar, que não conheciam, mas que fez todo o sentido no momento em que conheceram. Filhos não vêm com manual de instrução, mas a sociedade tem o direito e o dever de oferecer esta orientação. Esta seria uma das principais formas de prevenir a violência, cortando a transgeracionalidade. Outra experiência que posso compartilhar é que oito em cada dez crianças vítimas de violência que eu atendia já apresentavam a forte tendência de, numa situação futura hipotética, usar da mesma violência com crianças para resolver conflitos domésticos. Então, se deixarmos ao natural, a violência doméstica continuará seu curso por muitas décadas. Por isso, precisamos capacitar os agentes sociais a serem o instrumento de quebra do ciclo da violência, introduzindo outras possibilidades de convívio e educação não agressiva. Gosto sempre de lembrar que não se pode tirar um instrumento de educação dos pais sem dar a opção de outro substituto. Como, por exemplo, proibir uma família de usar a palmada sem orientar sobre as formas de educar não agressivas. Tirar a autoridade dos pais é muito prejudicial. Essa autoridade deve ser orientada, não cancelada.
E como deve ser combatida?
Com muito conhecimento, com muita informação, com muito respeito, com um trabalho constante de aperfeiçoamento dos agentes sociais de ponta que têm contato direto com as famílias. Também com leis claras e justas e com um poder judiciário que realmente tenha interesse em praticar justiça de forma livre e imparcial. Principalmente sem impunidade, que é a mola propulsora de mais e mais violência.
Qual o papel dos pais ou outros cuidadores na questão da prevenção e do combate à violência doméstica contra crianças e adolescentes?
A violência que está disseminada em todos os espaços de convívio social não cai do céu, nem vem do espaço. Ela é gerada a partir da célula-mãe da sociedade: a família. Portanto o papel dos pais ou cuidadores é primordial. São eles que formarão o caráter e a personalidade de seus filhos. E por meio do convívio e do exemplo, estarão direcionando o comportamento de seus pupilos para um lado positivo ou não. Então o papel da família é o de ser a base para a formação de um bom caráter e uma personalidade sadia, com hábitos adequados de saúde e de higiene, física e mental, além de um comportamento social adequado aos espaços de convívio com outras pessoas por meio dos limites e da disciplina. A família precisa ensinar as crianças e os adolescentes a reconhecerem direitos e deveres, valores morais e éticos, principalmente respeito. Mas, para isso, precisam de muito apoio e auxílio.
E qual o papel da escola?
Se as crianças viessem de casa preparadas para o convívio social, emocionalmente equilibradas e em consonância com sua idade cronológica, a escola poderia se dedicar ao que deve ser sua vocação: ensinar a pensar e ensinar a aprender, transmitir conhecimentos e reforçar e aprimorar a educação que vem de casa. No entanto, isso não tem acontecido. A escola tem feito, na maioria das vezes, o papel que a família falha em fazer. Portanto, na questão da prevenção à violência doméstica, a escola deve colaborar em identificar as vítimas e fazer os encaminhamentos adequados conforme a estrutura de atendimento de cada município. Além de que, deve instrumentalizar os educadores/professores a não reproduzirem, de forma inconsciente, os mesmos vínculos agressivos e inadequados que as crianças trazem de casa. Os professores podem ser os únicos agentes a mostrarem para as crianças e os adolescentes que existem outras formas de se relacionar nas quais não há espaço para agressões, os conflitos são resolvidos de forma pacífica, principalmente usando o diálogo, e todos são ouvidos e respeitados. Os professores/educadores precisam sair do piloto automático e não reagir às agressões com agressões, e sim escolher uma ação que seja conciliadora. Para isso, precisam receber capacitação.
Quais as ações públicas que já existem e quais ainda precisam ser desenvolvidas na prevenção e no combate à violência doméstica contra crianças e adolescentes?
No Brasil, existe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que reúne as leis de promoção e proteção a esses seres em condição especial de desenvolvimento. Quem tem por dever primar pela defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes são os conselhos tutelares. Por meio do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), atuam os centros de referência de assistência social (CRAS) e os centros de referência especializados de assistência social (CREAS), estando em contato direto com as famílias e procurando promover o desenvolvimento saudável dessas relações. O Sistema Único de Saúde (SUS) colabora com atendimentos psicológicos e psiquiátricos quando necessário. Todos esses agentes precisam estar em formação constante para dar conta de situações que se agravam ainda mais em períodos como agora, de crise sanitária e econômica. Além disso, sendo inclusive um trabalho a mais para as escolas, que já estão deveras sobrecarregadas, há necessidade de criar espaços para que os pais sejam orientados, apoiados, ensinados e redirecionados quanto a seu relacionamento e formas de educação dos filhos. Participei de um projeto no município de Caxias do Sul/RS chamado ‘Projeto família na escola – Escola para pais’. Durante três anos, todas as escolas municipais ofereciam palestras para os pais uma vez por mês. A participação dos mesmos foi se firmando com o tempo, e os resultados foram muito satisfatórios. Acredito que essa seja uma opção bastante interessante e passível de realização a custos que certamente podem ser chamados de investimento e não de gasto.
O que mais pode comprometer o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes?
Falta de limites, superproteção e presentes materiais para compensar as deficiências parentais são tão prejudiciais como os maus-tratos para os filhos. Formam crianças e adolescentes tiranos e geralmente com caráter inapropriado: imaturos, inseguros, arrogantes, impertinentes, intolerantes e prepotentes, beirando o insuportável. Possivelmente não terão respeito para com nada e para com nenhuma pessoa, principalmente para com os cuidadores que foram superprotetores, não estabeleceram limites, não foram firmes e compensaram suas faltas materialmente.
Há métodos eficientes de educar sem recorrer a palmadas e xingamentos?
Sim, há. O diálogo é o principal instrumento, mas ele não dá conta de tudo com certeza. Então precisamos nos apoiar na compreensão e na consciência do papel de educadores, ser firmes sem ser agressivos, persistentes e constantes, usar de contratos, condução, contenção física, contenção emocional, distração, ações reparadoras (antigos castigos) e recomeços. Quem quiser saber mais sobre esses passos pode buscar o livro ‘Educando e convivendo com crianças e adolescentes – Limite e disciplina sem agressividade’.