A síndrome de Tourette (ST) é um distúrbio neurológico marcado por tiques motores e vocais involuntários que desafiam os limites do comportamento humano controlado. Entre suas manifestações mais polêmicas, está a coprolalia, um tique raro, mas impactante, que resulta na vocalização involuntária de palavras ofensivas ou socialmente inaceitáveis. Embora afete menos de 20% das pessoas com Tourette, a coprolalia carrega estigmas e desperta curiosidade: o que leva alguém a dizer o indizível?

Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pelo neurocientista Fabiano de Abreu Agrela Rodrigues, pós-PhD em neurociências, mestre em psicologia, licenciado em história e biologia, tecnólogo em antropologia e filosofia e com diversas formações nacionais e internacionais em neurociências e neuropsicologia. Ele é membro de prestigiadas sociedades de alto quociente de inteligência (QI), como Mensa International, Intertel, ISPE High IQ Society, Triple Nine Society, ISI-Society e HELLIQ Society High IQ.

Também é autor de mais de 300 estudos científicos e 30 livros, professor convidado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) no Brasil, Unifranz na Bolívia e Santander no México. Diretor do Centro de Pesquisas e Análises Heráclito (CPAH) e criador do Genetic Intelligence Project (GIP), que estima o QI por meio da análise da inteligência genética.

O que são os xingamentos da síndrome de Tourette?

Os xingamentos involuntários na síndrome de Tourette podem ser compreendidos como um reflexo neural de pensamentos ou impulsos que todos nós temos, mas que, normalmente, conseguimos suprimir. No entanto, para os pacientes com ST, essa capacidade de controle é comprometida, expondo a face bruta da condição humana.

Minha teoria sugere que a coprolalia não é aleatória. Ela emerge de um cérebro em que os mecanismos de inibição estão disfuncionais. Todos nós, em algum momento, experimentamos pensamentos de raiva ou frustração, muitas vezes acompanhados de palavras que jamais ousaríamos pronunciar em público. Na síndrome de Tourette, essas palavras escapam porque o ‘freio’ cerebral, localizado no córtex pré-frontal, não funciona adequadamente.

Essa ideia é sustentada por estudos que associam a coprolalia à desregulação do circuito córtico-estriado-talâmico-cortical, uma rede neural que controla impulsos e regula o comportamento social. Alterações nos gânglios da base e no córtex orbitofrontal, duas regiões críticas para o controle comportamental, também estão diretamente ligadas à condição.

Qual o papel do cérebro e dos neurotransmissores?

Na síndrome de Tourette, o desequilíbrio químico do cérebro desempenha um papel central. A dopamina, neurotransmissor responsável por regular movimentos e impulsos, apresenta hiperatividade em pacientes com ST, facilitando a expressão dos tiques. Outras substâncias, como o GABA, que inibe respostas neuronais, e a serotonina, que modula o humor, também apresentam alterações.

Além disso, o córtex pré-frontal, dividido em sub-regiões como o córtex dorsolateral, ventromedial e orbitofrontal, tem um papel crucial. Ele atua como um filtro, impedindo que impulsos inapropriados sejam verbalizados. Em pacientes com Tourette, esse filtro está enfraquecido, permitindo que os impulsos cheguem à superfície.

O que isso revela sobre o comportamento humano?

A teoria de que a coprolalia pode ser um reflexo do que reprimimos nos obriga a refletir sobre a natureza dos pensamentos humanos. Por que pensamos em palavras ou ações hostis mesmo sem motivos claros? Esses impulsos são parte da dinâmica emocional humana, enraizados em regiões do cérebro como o sistema límbico, que processa emoções intensas como raiva e frustração.

O que diferencia as pessoas com síndrome de Tourette das demais não é a presença desses pensamentos, mas a incapacidade de controlá-los. Todos temos impulsos, porém contamos com um sistema inibitório eficiente, liderado pelo córtex pré-frontal, que impede que tais pensamentos se transformem em palavras ou ações. No caso da Tourette, o filtro falha, permitindo que os xingamentos escapem. Essa ideia não apenas desmistifica a coprolalia, mas também a coloca em um contexto mais humano, mostrando que a linha entre o controle e a desinibição pode ser tênue.

Qual a complexidade da coprolalia?

Embora seja amplamente associada à Tourette, a coprolalia é uma manifestação rara, com prevalência em menos de 20% dos casos. Estudos apontam que ela ocorre com maior frequência em pacientes com sintomas mais graves e comorbidades como transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH). A coprolalia também costuma se manifestar durante a adolescência, um período em que os circuitos cerebrais de controle ainda estão em desenvolvimento.

A coprolalia não é limitada a palavras ofensivas. Ela pode incluir frases ou sons repetitivos com forte carga emocional, destacando o papel do sistema límbico e do córtex orbitofrontal na escolha dessas vocalizações.

Qual a importância da conscientização sobre o assunto?

Entender a coprolalia como um sintoma neurológico involuntário é essencial para combater o estigma e promover a inclusão de pessoas com a síndrome de Tourette. Os xingamentos não refletem a personalidade ou os valores da pessoa, mas sim uma condição neurológica que está fora de seu controle. O julgamento social muitas vezes agrava o sofrimento desses pacientes, que já enfrentam desafios significativos no dia a dia.

Como tratar a síndrome de Tourette?

O tratamento pode incluir abordagens farmacológicas, como o uso de medicamentos para regular a dopamina, e terapias comportamentais que ajudam os pacientes a lidarem com os tiques. No entanto, a conscientização e a empatia são igualmente fundamentais para criar um ambiente de acolhimento.

Convido a todos a enxergarem a coprolalia e outros sintomas da síndrome de Tourette como janelas para o funcionamento da mente humana. Ela nos lembra que, por trás do comportamento que consideramos ‘normal’, há uma complexa rede de impulsos e filtros que moldam nossas ações.

O que a Tourette nos mostra é que somos todos impulsivos em algum nível. A diferença está no controle. Enquanto a maioria de nós pode conter os impulsos, aqueles com a síndrome são expostos à sua vulnerabilidade de forma visceral. Isso nos desafia a olhar para eles com mais empatia e menos julgamento.

Quais as perspectivas futuras?

A compreensão dos mecanismos cerebrais por trás da coprolalia ainda está em desenvolvimento, mas avanços significativos têm sido alcançados com o uso de tecnologias como neuroimagem funcional e genética molecular. Esses estudos ajudam a identificar os circuitos neurais específicos e os genes envolvidos, possibilitando o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes.

O futuro da pesquisa em Tourette passa pela personalização do tratamento, combinando abordagens farmacológicas com terapias comportamentais baseadas em evidências. Intervenções como estimulação cerebral profunda estão sendo exploradas para casos graves, oferecendo esperança para pacientes que não respondem a métodos convencionais.

A educação da sociedade sobre o que é a ST e, especialmente, sobre a natureza involuntária dos sintomas como a coprolalia, é um passo essencial para reduzir o estigma e criar ambientes mais compreensivos e acolhedores. Ao compreender melhor o que está por trás da Tourette, nos tornamos mais capazes de oferecer apoio e dignidade aos que convivem com essa condição. É um chamado à empatia, à ciência e à humanidade.

Fale sobre o trabalho do CPAH.

No Centro de Pesquisa e Análises Heráclito (CPAH), seguimos empenhados em transformar conhecimento em ação, contribuindo para um mundo mais inclusivo e informado. Afinal, a ciência não apenas explica, mas também conecta e humaniza. Trata-se de uma instituição dedicada à produção de conhecimento científico e ao avanço das ciências cognitivas e neurocientíficas. Busca promover uma melhor compreensão do comportamento humano, oferecendo soluções práticas para os desafios da sociedade contemporânea.

O trabalho desenvolvido no CPAH abrange não apenas a compreensão teórica dos fenômenos neurocientíficos, mas também a aplicação prática desses conhecimentos em diferentes campos, como a educação, a saúde mental e o comportamento social. A pesquisa sobre a síndrome de Tourette e a coprolalia é um exemplo claro de como a ciência pode desmistificar condições complexas e contribuir para uma sociedade mais inclusiva.