Aposto que você já ouviu falar no filme 10 coisas que eu odeio em você ou ao menos viu a famosa (e icônica) cena de Heath Ledger cantando e dançando I love you baby. Desbloqueei uma memória, né? Não tem muito como fazer surpresa com o tema do texto de hoje, afinal é um filme de romance com ódio no título. Mas, caso você ainda não tenha descoberto, fico feliz em lhe contar.

10 coisas que eu odeio em você é muito mais que um clichê adolescente, e isso se dá pois é a adaptação moderna de A megera domada, de William Shakespeare (já fica a dica: para quem gosta do filme, ler o livro; e para quem gosta do livro, ver o filme). No enredo, Kat Stratford (Julia Stiles), uma jovem inteligente e rebelde, se envolve com Patrick Verona (Heath Ledger), um jovem contratado para conquistá-la.

Ao longo da trama, vemos o desenvolvimento do relacionamento deles, com altos e baixos, cenas cômicas e diálogos marcantes. Um momento em especial que sempre me lembro e será essencial para o texto de hoje é quando Kat precisa ler um poema na frente da turma, o famoso poema com as 10 coisas que odeia em Patrick, e termina com:

“Mas eu odeio principalmente

Não conseguir te odiar

Nem um pouco

Nem mesmo por um segundo

Nem mesmo só por te odiar”

E esse é o ponto perfeito do filme para observarmos a confusão que a coexistência do amor e do ódio podem causar em nossa protagonista. A ambivalência de suas emoções é explorada ao longo de todo o filme, mas essa cena em especial parece ser o ápice emocional para Kat, que não aguenta e transborda amor e ódio em forma de poema.

Contradição

E por mais que pudéssemos passar horas falando sobre esse filme e suas inúmeras temáticas, hoje quero discutir com vocês sobre as emoções, mas com foco na ambivalência delas. Você já tinha ouvido falar nesse termo? Talvez não, mas com certeza você já ouviu que amor e ódio andam lado a lado, né? Talvez até tenham lhe dito isso na infância, porque aquele colega que a importunava, na verdade, gostava de você, afinal “amor e ódio andam lado a lado”.

Meu papel aqui hoje é lhe dizer que é verdade, não que o colega gostava de você, mas sim que o amor e o ódio podem andar lado a lado (por mais absurda que a ideia pareça para alguns). E não só o amor e o ódio, mas inúmeras outras emoções, tudo isso graças à ambivalência.

A ambivalência das emoções se refere à essa confusão de sentimentos contraditórios ou conflitantes em relação a uma pessoa, uma situação ou um objeto que coexistem ao mesmo tempo. Em vez de experimentar uma emoção clara e definida, o indivíduo sente emoções opostas, que podem se manifestar de maneiras complexas e difíceis de entender ou lidar. Isso pode gerar confusão, tensão interna e dificuldades na tomada de decisão, pois a pessoa está dividida entre essas emoções opostas.

Conflitos internos

Na psicologia, a ambivalência é frequentemente associada a conflitos internos e é comum em diversas situações, como em relações interpessoais, experiências de perda, mudanças significativas ou até em momentos de escolha importante. Por exemplo, uma pessoa pode sentir tanto amor quanto raiva por alguém, o que cria uma dinâmica emocional ambígua (que é o caso dos personagens do filme). Ou, em uma situação de mudança, pode sentir excitação pela novidade, mas também insegurança ou medo do desconhecido (como é o caso da Riley em Divertidamente).

Um dos primeiros teóricos a abordarem esse conceito de maneira profunda foi Freud, o descrevendo como uma característica do inconsciente. Sugerindo que nossas emoções não são simplesmente “boas” ou “ruins”, mas podem envolver sentimentos mistos, sendo mais evidentes em nossas relações íntimas, em que a proximidade e a dependência emocional podem gerar tanto amor quanto frustração ou raiva.

Teoria do apego

A ambivalência também pode ser observada pela teoria do apego (de Bowlby e Ainsworth), em que, nas situações de apego, uma pessoa pode sentir uma forte ligação com outra, mas, ao mesmo tempo, sentir medo ou desejo de se afastar devido à vulnerabilidade emocional que o apego traz. Esse fenômeno é importante para a compreensão de comportamentos humanos complexos, pois mostra como nossas emoções não são lineares e podem coexistir.

Mary Ainsworth, em suas pesquisas com crianças, identificou diferentes padrões de apego e um dos mais relevantes para a ambivalência emocional é o apego ambivalente (ou ansioso). No apego ambivalente, as crianças e, por consequência, os adultos com esse tipo de apego experimentam uma mistura de sentimentos em relação à figura de apego (geralmente os pais ou os parceiros). Podendo sentir desejo de proximidade e medo de rejeição ou abandono ao mesmo tempo.

Esse padrão gera uma insegurança emocional na qual se busca afeto ao mesmo tempo que se pode sentir raiva ou frustração por não conseguir estabelecer uma relação estável e segura. Nos relacionamentos amorosos, esse tipo de apego pode resultar em sentimentos conflitantes com uma pessoa amando profundamente, mas também experimentando medo de ser rejeitada ou ferida.

Desconfiança

No filme 10 coisas que odeio em você, podemos observar tudo o que comentamos, quer ver? Desde o início, Kat sente uma forte desconfiança em relação a Patrick, o vendo como alguém que não tem boas intenções. No entanto, ao longo da história, ela começa a se sentir atraída por ele apesar de sua relutância. A ambivalência aqui é clara: a atração e a desconfiança coexistem de forma difícil de conciliar.

Na cena que comentamos antes, Kat recita seu famoso poema em que expressa as 10 coisas que odeia em Patrick, mas também revela o quanto o ama. O poema encapsula de maneira perfeita a ambivalência das emoções da personagem, ilustrando como a mesma pessoa pode evocar sentimentos conflitantes de amor e ódio, mostrando a complexidade dos relacionamentos e como os sentimentos podem se entrelaçar de formas paradoxais.

No final do filme, Kat aceita seus sentimentos por Patrick e admite que se apaixonou por ele. No entanto, a ambivalência ainda está presente, pois ela não pode deixar de questionar a natureza da relação. Por sua vez, Patrick também demonstra emoções conflitantes, pois, apesar de seu comportamento inicial, ele se revela vulnerável e sincero em relação a Kat.

Reação

Mas, afinal, como o amor e o ódio podem andar lado a lado? O amor gera uma ligação emocional profunda que torna as relações muito significativas. No entanto, também pode gerar uma sensação de vulnerabilidade e, quando há frustração ou mágoa, o ódio pode surgir como uma reação proporcional a essa intensidade (ou seja, quanto mais forte o amor, maior a possibilidade de surgirem sentimentos de raiva ou ressentimento quando a relação não atende às expectativas). A intensidade do amor torna o ódio ainda mais forte quando é desencadeado já que ambos os sentimentos têm o mesmo alvo.

Mas, cuidado, não é por que andam lado a lado que são um match perfeito! O amor e o ódio frequentemente se alternam em um ciclo intenso em que momentos de afeto podem ser seguidos por momentos de raiva e ressentimento. Esse ciclo de altos e baixos pode criar um ambiente emocionalmente instável, o que dificulta a construção de uma relação saudável e duradoura. Pessoas que vivem nesse tipo de dinâmica podem sentir-se emocionalmente drenadas (embora se sintam desgastados com tantas desconfianças ao longo da trama, ainda bem que esse não é o caso dos nossos protagonistas, né?).

Quando o amor e o ódio estão misturados e entrelaçados, os conflitos tendem a ser mais intensos e difíceis de resolver. Em vez de focar nas questões reais e trabalhar para encontrar soluções, as pessoas podem se perder em emoções intensas e contraditórias, o que pode piorar a situação.

Conclusão

A ambivalência emocional pode ser compreendida de várias maneiras dentro da psicologia, dependendo da perspectiva adotada. Seja no contexto do apego, das distorções cognitivas na TCC, das incongruências no self ou das motivações pessoais, o importante é entender que as emoções humanas são complexas e multifacetadas. Os sentimentos contraditórios que surgem em situações de ambivalência não são um fenômeno isolado, mas uma parte natural da experiência humana, refletindo a diversidade e a profundidade dos nossos processos emocionais.

Esse conceito tem implicações importantes para nós como (futuros) psicólogos, pois, ao compreendermos a ambivalência emocional, podemos ajudar nossos pacientes a entenderem melhor suas reações e a lidarem com a tensão gerada por sentimentos conflitantes, promovendo uma maior autocompreensão e aceitação das complexidades da experiência emocional.

Para finalizar (e não perder o costume), deixo aqui algumas recomendações de leituras sobre o amor, emoções e relacionamentos que estão disponíveis no site da Sinopsys Editora: O casal diante do espelho e a reconstrução do vínculo do amor (Iara de Lourdes Camaratta Anton), Terapia do esquema emocional (Robert L. Leahy) e Sua história de amor: um guia baseado na terapia do esquema para compreender seus relacionamentos e romper padrões negativos (Kelly Paim e Bruno Luiz Avelino Cardoso).