Os ritos de passagem são eventos que marcam mudanças no ciclo da vida, posto que ocorrem quando um ciclo termina e outro tem início. Sociedades em todo o mundo estão habituadas aos eventos conhecidos como ritos de passagens dentro da cultura social e religiosa de cada local. De certa forma, estes ritos nos trazem a oportunidade concreta de mudarmos para uma nova fase, não deixando que o acontecimento fique apenas no âmbito simbólico.
Sensação de vazio
Com a pandemia do novo coronavírus, a necessidade do distanciamento social fez-se presente e causou impacto na realização destas festividades ritualísticas. Do dia para a noite, muitos ritos realizados há séculos não puderam mais acontecer, deixando para algumas pessoas a sensação de vazio, pois o não comemorar pode causar a sensação de que o evento não ocorreu.
O distanciamento social causou impacto na saúde mental de indivíduos de todas as idades, desde as crianças até os idosos. Aquela criança cuja família desejava batizá-la ainda bebê, já está com quase 1 ano, e sem a perspectiva de ser batizada, pois a pandemia se arrasta. O brit milah deve ser realizado quando o bebê está com 8 dias, pelo que andei pesquisando, a cerimônia continua sendo realizada, porém com restrição no número de pessoas. O que acontecerá com estas famílias, cujas crianças tiveram ceifada a oportunidade de serem apresentadas à sociedade religiosa ou de serem abençoadas pela religião da família?
É fato que muitas pessoas não dão importância a estes rituais específicos e podem considerar esta questão irrelevante, mas sugiro uma reflexão empática, coloquemo-nos no lugar daqueles que realmente atribuem importância a estes rituais e cerimônias e pensemos o quão triste pode ser não realizar o sonho de uma tradição que faz parte da família há muitas gerações.
Uma geração afetada
Cada ritual tem um significado emocional que deve ser respeitado e a sua restrição analisada com cuidado. O cancelamento dos ritos afetou questões de pertencimento e de propósito e aconteceu de uma forma muito repentina e drástica, como é o caso das festas infantis de aniversário. As crianças, que costumam dar bastante importância para esses momentos, ficaram sem a possibilidade de comemorar e brincar com os amigos e o adiamento da festa pode não ser mais uma possibilidade para alguns, afinal, já estamos há um ano em isolamento e, portanto, muitos já arrastam o segundo aniversário em isolamento.
Para Haim Israel, um analista de investimentos, a geração nascida entre 2016 e 2030 poderá ser chamada de Geração C, geração Covid, pois será toda afetada pelo impacto do isolamento, que não se restringe apenas à privação de festas e rituais, mas de todas as atividades fora do domicílio, como a ida à escola e as atividades extra curriculares. Tudo isto tem feito com que as crianças passem muito mais tempo do que o adequado em equipamentos eletrônicos e fiquem com excesso de estímulos visuais, esquecendo-se, não por escolha própria, das habilidades sociais e procrastinando as obrigações relativas às aulas online, deveres de casa e atividades extracurriculares.
Fatores ansiogênicos
É comum que estejamos ansiosos por conta de toda a situação pandêmica e as crianças, por mais que não tenham ainda o cognitivo completamente formado, compreendem a situação dentro do que é possível para elas. Se já temos o medo da Covid como fator ansiogênico (causador de ansiedade), temos ainda o excesso de tecnologia e a falta de socialização, que também são fatores ansiogênicos. Fala-se em quarta onda, que seria a onda dos transtornos mentais provenientes de toda a situação pandêmica que estamos vivendo, mas é importante que não esperemos por ela de mãos atadas, que possamos agir desde já para prevenir um impacto ainda maior na saúde mental das crianças, jovens, adultos e idosos.
Uma situação paradoxal que pode ser analisada aqui é a do ritual dos funerais. Também podemos considerar como fator ansiogênico, já que vivemos um número assustador de mortes. Não podemos mais ritualizar o momento da forma habitual, nem tampouco vivenciar o luto no funeral do ente querido com o apoio familiar e acolhimento social.
Saúde mental afetada
A pandemia afetou a saúde mental das pessoas de diversas formas, tanto pela questão da própria privação social em si, quanto pela preocupação de ser infectado ou de ter familiares infectados. A parcela mais afetada foi aquela que perdeu familiares durante a pandemia, tanto por Covid-19, quanto por outras causas. Aqueles que perderam familiares por causas diferentes do coronavírus, tiveram que realizar funerais com número restrito de pessoas e por tempo também restrito. Aqueles que perderam seus familiares por Covid foram ainda mais afetados por terem que velar seus mortos com caixão lacrado, número muito restrito de pessoas e ainda restrição de tempo. Funerais com restrição de tempo e no número de pessoas e caixão lacrado, além de darem a sensação de que o falecido não teve uma despedida digna, pode gerar sensação de culpa no familiar, dificultar o processo de luto, bem como sua elaboração.
“A perda de um ente querido é uma tragédia inigualável para a maioria dos enlutados. É uma experiência que ocorre vez ou outra na vida de todos; muitos sofrem perdas antes de atingirem a velhice, quando esses eventos ocorrem com maior frequência” (STROEBE; STROEBE; HANSSON, 2005).
O luto mal elaborado
O luto é uma experiência comum que pode apresentar repercussões físicas e mentais importantes. A perda de um ente querido é um dos eventos mais estressantes da vida e exerce impacto nos aspectos físico, social e psicológico. Num processo de luto bem-sucedido, o indivíduo se sente profundamente conectado ao falecido, mas ao mesmo tempo, é capaz de imaginar um futuro próspero sem a presença do mesmo. Após o processo natural de luto, o indivíduo consegue seguir a sua rotina novamente, reconectar-se aos outros e pensar num futuro com esperança. Num processo de luto elaborado, o indivíduo consegue regular as emoções de maneira efetiva e assimilar o evento como um novo aprendizado na memória de longo prazo. Por ser um processo individual, acontece de forma distinta de pessoa para pessoa em cada momento e abrange de maneira simultânea muitas facetas do indivíduo enlutado.
Após a perda de um familiar, algumas pessoas podem manifestar extrema perturbação, que chega a interferir no funcionamento diário ou podem manifestar ainda ausência absoluta de reação emocional. Não é adequado que ocorra ausência de manifestação, nem tampouco a perturbação extrema. O processo de luto normal deve ser vivenciado como um movimento que leva o indivíduo adiante; apesar da perda, algumas mudanças psicológicas e instrumentais podem ser mediadas ou preparadas antes da morte.
O luto complicado é uma forma crônica e mal adaptativa que interfere no processo de elaboração. O termo complicado é utilizado para se definir um processo de superposição que altera o curso normal do luto, modificando-o para um curso pior e resultando num processo de elaboração atrasado com aumento da dor. Esta situação costuma ser decorrente de aspectos da resposta do indivíduo às circunstâncias ou consequências da morte, descarrilhando o processo de luto, interferindo no aprendizado e fazendo com que o processo natural de elaboração não progrida (RODRIGUES, 2020). É importante ressaltar que o processo de luto complicado é diferente de um processo depressivo, embora possa haver sobreposição de uma condição com relação à outra.
Diversos desafios, muitas sequelas
O que nos trouxe a pandemia do novo coronavírus em termos de saúde mental? Ansiedade e angústia por não sabermos quando esta situação trágica chegará ao fim; ansiedade e comportamento compulsivo de limpeza pelo medo de sermos infectados ou termos familiares infectados; tristeza por conta da privação social, da impossibilidade de comemorarmos em conjunto datas tão importantes; preocupação com nossos filhos, que estão sendo privados da socialização numa fase da vida onde esta é tão importante; preocupação ainda por vê-los com excesso de tecnologia por não terem como brincar fora de casa, inclusive até as aulas agora dependem da tecnologia; tristeza e luto por aqueles que se foram, muitos de forma repentina, e por não podermos enterrá-los de maneira digna e adequada ao processo normal de luto; sensação de que não passou tanto tempo (1 ano), afinal não tivemos aniversários, Natal, Ano Novo, Páscoa.
Em meio a tantas sensações negativas, resta-nos de positivo o exercício da paciência e da resiliência, a solidariedade, a irmandade, o amor ao próximo e a empatia.
A tecnologia, que muitas vezes pode ser tóxica, também tem sido nossa aliada para que possamos nos reunir com nossos familiares, estudar e trabalhar através das vídeo chamadas.
São tantas condições a serem consideradas, tantas mudanças repentinas, tantas situações desafiadoras, que lidar com tudo isso de uma vez tem sido uma vitória diária. Estamos lidando com uma variedade de sequelas e um grande número de pessoas não passará ileso. O processo terapêutico pode ajudar nesse processo de resiliência necessária. Procure profissionais que auxiliem na manutenção ou na melhora da saúde mental.
Os rituais mais comuns na sociedade
Os ritos mais comuns ocorrem logo após o nascimento (batismo, brit milah), na adolescência (festa de 15 anos, bar mitzvah), construção de uma nova família (casamento) e morte (funeral). Existem ainda eventos que não são individuais ou familiares, mas sim sociais como: Natal, Páscoa, Ano Novo, Dia de Ação de Graças.
Batismo e brit milah: o batismo se trata da apresentação de um novo membro à sociedade religiosa católica, e o brit milah tem a mesma função na comunidade judaica. O batismo torna o bebê um indivíduo cristão e traz a ele e a sua família a sensação de pertencimento à comunidade religiosa católica. O brit milah é a cerimônia do judaísmo na qual ocorre a circuncisão, e também é escolhido o nome do bebê. É a forma de torná-lo efetivamente judeu.
Festa de 15 anos: representa o encerramento do ciclo da infância/adolescência para a vida adulta, é uma tradição antiga que anunciava à sociedade que a moça tinha crescido e estava apta a se casar. Embora, hoje esta questão tenha mudado e a mulher esteja se casando mais tarde, a tradição da festa ainda é importante para alguns indivíduos e para algumas famílias. O bar mitzvah é realizado quando o menino completa 13 anos e já é considerado um adulto responsável do ponto de vista judaico.
Casamento: as cerimônias e festas de casamento também têm como objetivo apresentar um novo casal à sociedade. Afinal, a partir de então, os noivos vistos anteriormente como indivíduos solteiros passarão agora a ser vistos como um novo casal, formador de uma nova família. É um marco tanto na vida dos pais, quanto na vida dos noivos.
Funeral: é uma forma de homenagem e despedida de um ente querido que conviveu conosco e foi importante em nossa vida. Através dos funerais, presta-se homenagens a quem se foi e para aqueles que ficam, concretiza-se o marco de uma nova fase sem aquele ente tão importante. O funeral é importante para que haja a concretização e a visualização de que aquela pessoa realmente faleceu, terminando seu ciclo vital.
Natal: é a festa cristã que celebra o nascimento de Jesus. É muito importante para algumas famílias, mesmo as não praticantes, celebrar o Natal e fazer a troca de presentes. É um momento no qual as famílias podem desfrutar de bons momentos juntos e aproveitarem para alegrar as crianças com a chegada do Papai Noel.
Páscoa: assim como o Natal, é uma festa cristã na qual se celebra a ressurreição de Cristo. Muitas famílias também se reúnem nesta data para desfrutarem de bons momentos juntos e fazerem a troca dos ovos de chocolate. Alguns fazem ainda brincadeiras relacionadas ao coelhinho de Páscoa com as crianças.
Ano Novo: é um marco social, pois anuncia a chegada de um novo ciclo. Em geral, as pessoas tendem a ver o ano novo como a anunciação de boas novas e o fim das mazelas do ano anterior.
Dia de Ação de Graças: é celebrado nos Estados Unidos e Canadá para agradecer tudo o que aconteceu de bom naquele ano. É celebrado na penúltima quinta-feira de novembro.
2 respostas
Belo artigo! Priscila traz na escrita uma visão empática de uma psicóloga atemporal.
Obrigada, Mariana! Fico muito feliz que tenha gostado do texto!!!