Cético e curioso, o neurocientista e biomédico Renato Marcos Endrizzi Sabbatini já sabia que queria ser cientista desde a mais tenra idade. Ele iniciou seus experimentos muito cedo, aos 17 anos, quando ingressou na universidade. Em sua trajetória, acumulou funções: foi cientista biomédico e de computação, divulgador científico, educador, escritor, empresário e administrador.

Sabbatini é graduado em Biomedicina pela USP (Universidade de São Paulo), doutor em Fisiologia pela mesma universidade e foi cientista visitante do renomado centro de pesquisa Instituto Max Planck de Neurobiologia, localizado em Munique, onde obteve pós-doutorado em Neurofisiologia do Comportamento. 

No instituto alemão, Sabbatini trabalhava inicialmente na área de Neurociências, fazendo experimentos em macacos. Mas os colegas logo perceberam que o pesquisador era aficionado por computação, então, colocaram-no à frente de um projeto computacional bastante complexo, com imensos recursos à sua disposição.

Preocupado com a difusão do conhecimento científico, ele traduziu a linguagem sisuda dos cientistas para leigos na coluna semanal no jornal Correio Popular, de Campinas, para a qual escrevia. A atividade lhe rendeu o 13º Prêmio José Reis de Divulgação Científica, de 1992. Escreveu também para diversas revistas especializadas, abordando a aplicabilidade da computação na saúde, contabilizando mais de 160 artigos publicados.

Sabbatini logo pensou em associar os seus conhecimentos em computação à saúde, tornando-se uma referência no desenvolvimento e aplicação da e-saúde. O novo conceito envolve a prática de cuidados de saúde a partir da aplicação de tecnologia da informação. A área pode abranger uma gama de serviços, como prontuário eletrônico, soluções de software para agendamento de consultas, gerenciamento de dados do paciente e gestão do horário de trabalho. Uma das formas de e-saúde é a telemedicina.

A telemedicina é um recurso médico que disponibiliza serviços a distância para o cuidado com a saúde. O contato ocorre por meio de tecnologias digitais que promovem a assistência on line, conectando pacientes, clínicas, hospitais e profissionais de saúde. Esse intercâmbio ocorre através da internet. Os laudos e o atendimento do pacientes podem ser feitos remotamente, a partir de plataformas online, e realizados por videoconferência, áudio ou chat.

Uma verdadeira revolução ocorreu na área da saúde em todo o mundo, sobretudo, com o advento da internet. A conexão entre computadores permitiu o acesso a banco de dados de hospitais, clínicas e laboratórios. Esse recurso ocasionou um impacto nunca antes visto sobre a disponibilidade de todos os tipos de informações médicas e sobre as formas como são utilizadas, principalmente, pela ciência, ligando meios acadêmicos e não acadêmicos. 

O pesquisador foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde e, também, presidente dessa entidade. Atua também no  Instituto Edumed e Health Level Seven (HL7), organizações dedicadas à  tecnologia em saúde.

O  Sr. se considera cético?

Sabbatini – Sim, inclusive sou presidente da Sociedade Brasileira de Céticos e Racionalistas. Ser cético é não acreditar em tudo o que é apresentado. Significa apenas aceitar posições quando houver evidências, especialmente, evidências científicas. 

O que é saúde digital e o que isso tem a ver com conectividade?

Sabbatini – Saúde digital é qualquer mecanismo em que se usa o computador, utilizado em conjunto com outras tecnologias de informação, focada em prover melhores condições aos processos clínicos, ao tratamento dos pacientes. Hoje, temos a e-saúde, que é a computação de rede. Como uma das tecnologias da e-saúde, temos a telemedicina, que é a medicina a distância, já é utilizada em todo mundo, de forma segura e legalizada, estando de acordo com a legislação e as normas médicas. A telemedicina abrange toda a prática médica realizada remotamente, isto é, exames de imagem, consultas etc.

Boa parte da sua tese envolveu aplicações computacionais…Poderia comentar seu estudo?

Sabbatini – Trabalho com aplicações computacionais desde 1970 e fui pioneiro na saúde digital. Ao iniciar meu doutorado na área de Fisiologia, tive necessidade de aplicar análises estatísticas complexas em grande conjunto de dados biológicos, ou seja, havia a necessidade de utilizar o computador como ferramenta. Desenvolvi muitas aplicações em FORTRAN nos anos seguintes, inclusive pacotes estatísticos. Então, fui para a Alemanha para trabalhar no Instituto Max Planck, localizado na cidade de Munique, onde eu realizava pesquisas na área de Neurociências, fazendo experimentos com macacos. O instituto me colocou à frente de um projeto computacional bastante complexo, com imensos recursos à minha disposição. No meu retorno ao Brasil, vigorava aqui a Lei de Informática imposta pelo governo federal, que dificultava as importações de computadores. Nessa época fui convidado pela Unicamp a criar o Núcleo de Informática Biomédica e fundei o Instituto Edumed para Educação em Medicina e Saúde, no qual estou até hoje.

O Brasil foi um dos primeiros países da América Latina a assumir uma posição de destaque em informática médica…Como isso ocorreu?

Sabbatini – A informática médica surgiu com os primeiros computadores comerciais, na década de 1970. Alguns hospitais e grupos acadêmicos procuraram esse recurso, sobretudo de São Paulo, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto. Em 1986, fui um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde. Em 2021, completaremos 35 anos de atividade. Com o advento da internet no Brasil, a informática médica passou a ser adotada entre os profissionais da saúde. Nos últimos anos houve um crescimento muito grande da telemedicina, e hoje temos uma aplicação semelhante a de outros países.

Como prevenir os ataques cibernéticos?

Sabbatini – É preciso se aparelhar com a tecnologia na área de segurança da informação para proteção de dados pessoais e, assim, manter os dados confidenciais. Existe uma série de medidas a serem tomadas de maneira a defender a rede, como uma rede de softwares antivírus para prevenir ataques. Um tipo de ataque comum é o “ransomware”, em que hacker entra, criptografa os dados e cobrar para ceder a chave. Nesse caso, o sistema não consegue acessar os dados, e os hackers inclusive cobram em bitcoins. Os ataques são um problema e exige segurança, pois vários hospitais brasileiros já foram atingidos. A confidencialidade é especialmente importante para área médica, pois está prevista no juramento de Hipócrates, em que o médico se compromete a não divulgar dados dos pacientes, é o chamado sigilo médico.

Qual a contribuição da eletrofisiologia e dos galvanômetros para as Neurociências?

Sabbatini – As Neurociências somente se desenvolveram devido ao conhecimento acerca da eletrofisiologia. [O anatomista italiano] Luigi Galvani utilizou geradores para estimular os nervos de rãs, observando a contração muscular. Ele descobriu, então, que os tecidos nervosos funcionavam com base em estímulos elétricos. A eletrofisiologia clínica começou com a descoberta dos chamados galvanômetros, altamente sensíveis, que permitiam registrar várias condições fisiológicas. [O físico italiano] Alessandro Volta, em estudos com animais, mostrou como funcionava o cérebro e também provou que a eletricidade era importante no entendimento do sistema nervoso.

Os estudos de frenologia estavam equivocados, mas com ela surgiu o conceito de localização…

Sabbatini – A localização cerebral existe desde os egípcios. Se o sujeito sofria uma lesão em determinada região do cérebro, ele apresentava sintomas diferentes dos desenvolvidos se uma região distinta fosse afetada. No final do século 19 se confirmou a localização, e esse conhecimento é a base da neurologia como se conhece hoje. A frenologia não tinha base científica, mas quis demonstrar que determinadas funções mentais estavam representadas em uma espécie de mapa, que se refletia na superfície da cabeça. Ou seja, a partir do mapeamento entre função e anatomia, a frenologia queria provar que haveria locais no cérebro responsáveis por diferentes funções. O que chamamos de localizacionismo cerebral foi apropriado pela área clínica, que verificava que determinadas lesões causavam sequelas específicas.

Cajal descobriu que o sistema nervoso é formado por neurônios que se ligam através de sinapses…

Sabbatini – [O médico e histologista espanhol] Santiago Ramón y Cajal recebeu o prêmio Nobel [de Medicina em 1906] por descobrir que os sistemas nervosos dos organismos eram formados por células, que ele poderia observar com o auxílio de um microscópio. Ele descobriu que conseguia escurecer algumas células do cérebro, tratando-o com uma solução de nitrato de prata. Isso que permitiu que observasse em detalhe a estrutura das células nervosas. Em 1891, ele desenvolveu a doutrina neuronal, que pressupõe que o sistema nervoso é formado por neurônios, que se interconectam, formando redes complexas. A base da função neuronal foi estabelecida, portanto, e passou a ser explicada a partir de uma base biológica, sem recorrer à existência de alma ou espírito.

O cérebro faz parte do mecanismo da homeostasia? Como isso acontece?

Sabbatini – O cérebro é regido pelo princípio da homeostasia. Ele funciona como um termostato, que regula a temperatura da geladeira. A homeostase [constância do meio interno] está presente na regulação de glicose e insulina, por exemplo. Ou, quando você está respirando e não tem a oxigenação adequada, aumenta a frequência respiratória para consumir mais oxigênio. Isso é feito pelo cérebro, do contrário, ocorreria uma dispneia. A homeostasia nos permite sobreviver em ambientes diversos, ela é uma poderosa teoria para a biologia.