Silêncio. Essa era a única “expressão” de um senhor muito debilitado que chegou em uma instituição que acolhe idosos com vulnerabilidade social em Vitória.

Ninguém era capaz de tirar uma única palavra do homem, que apresentava semblante de quem olhava eternamente o horizonte.

Uma jovem estagiária de musicoterapeuta com a ajuda de sua orientadora, decidiram buscar respostas. Sentados à uma mesa, na qual estavam um pandeiro, um pequeno xilofone e um violão, a jovem buscava inicialmente alguma conexão com a musicalidade do velho homem.

Tocava um pouco do pandeiro, xilofone e dedilhava o violão, repetiu essas sonoridades por semanas, até que um dia, durante a sessão, o homem disse: “Chocolate”.

Então o vínculo musicoterapêutico entre ambos se ampliou para a improvisação usando apenas a palavra “Chocolate”.

Dias depois, após ouvi-la improvisar melodias com a palavra chocolate tantas vezes, ele completou: “Palhaço. Palhaço Chocolate”.

A integração profunda neste vínculo musicoterapêutico permitiu a comunicação: ele havia sido palhaço de um circo por muitos anos, vivendo literalmente na corda bamba.

Com a velhice e a crise, brigas familiares o deixaram na rua, enfrentando todo tipo de sofrimento, passando fome, chegando à situação de alta vulnerabilidade social.

Essa é uma das práticas vividas por musicoterapeutas que estão inseridos nas práticas dos direitos humanos, para mostrar a importância da profissão, que foi oficialmente regulamentada no Brasil em 11 de abril de 2024 pela Lei 14.842 — e que completa agora seu primeiro ano de vigência.

Introduzida no Brasil na década de 1970, a prática da musicoterapia foi reconhecida pelo Ministério do Trabalho em 2010, com a inclusão da profissão na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO 2263-05).

Mas, para ser reconhecida como uma profissão da saúde e permitir sua atuação plena no Sistema Único de Saúde (SUS), foi necessário um processo complexo de mobilização.

À frente dessa batalha esteve a União Brasileira das Associações de Musicoterapia (UBAM) e suas vinculadas, que criaram GT27 (grupo de trabalho com representação de musicoterapeutas dos 26 estados e o DF).

“Foi uma dura batalha que, aliás, ainda não terminou”, afirma a musicoterapeuta e professora Lilian Engelmann, de São Caetano do Sul (SP), coordenadora do GT27 (2019-2025).

Reconhecimento legal, mas não estrutural

Segundo Lilian, a profissão já contava com respaldo legal desde 2010, quando foi classificada pelo Ministério do Trabalho.

No entanto, faltava o reconhecimento na área da saúde, algo crucial para garantir que a prática fosse regulada com responsabilidade.

“As profissões da saúde precisam de regulamentação porque, dependendo da intervenção, podem prejudicar a população. Assim como um engenheiro pode ser responsabilizado se uma ponte cair, na saúde também é necessário garantir que os profissionais estejam preparados para atuar sem causar dano”, explica.

Lilian destaca que o uso inadequado da música pode não apenas ser ineficaz, mas prejudicial. “Se a pessoa não tiver competência, ela pode usar a música de uma forma que não vai ajudar — e pior: pode prejudicar. Mesmo a omissão, ou seja, deixar de fazer ações que poderiam ajudar, pode ser considerada uma falha com impacto direto na saúde do paciente”, afirma.

A regulamentação, portanto, foi um passo essencial, mas não suficiente. O Ministério da Saúde, segundo a professora, está passando por uma mudança de modelo em que as novas profissões de saúde não terão mais seus respectivos conselhos.

“Profissões da área da saúde regulamentadas a partir de 2019 já entraram neste sistema e estão sem conselhos. Mas o novo modelo ainda não está pronto. Estamos sem um sistema claro de interlocução com o Ministério”, diz. Isso afeta diretamente o funcionamento da profissão, pois sem um conselho, os profissionais ficam “no deserto”, sem mediação institucional com o Ministério da Saúde.

Passado um ano da regulamentação, os desafios continuam. “Não houve melhoria no atendimento a partir dos planos de saúde. Por quê? Porque falta um conselho profissional. Os planos de saúde, por exemplo, aproveitam essa brecha. Eles dizem: ‘Ok, oferecemos sessões de musicoterapia, mas quem vai realizar? Um profissional de saúde com conselho (fonoaudiólogo, psicólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta) que também tem formação em musicoterapia.’ Com isso, pagam apenas por uma das formações, explorando brechas legais”, denuncia Lilian.

Essa sobreposição de funções é vista por ela como uma prática injusta, que mina a valorização do musicoterapeuta e reduz a efetividade da terapia.

“É o tipo de economia que sai caro: a população não tem acesso ao profissional com formação adequada e o trabalhador é sub-remunerado. E o Ministério da Saúde sequer sabe que isso está acontecendo”, completa.

A luta institucional

Sem conselho, a UBAM e os grupos ligados à musicoterapia têm buscado novas formas de dialogar com o poder público.

Uma das principais estratégias é a inserção da classe dos musicoterapeutas por meio da representatividade da UBAM no Conselho Nacional de Saúde.

Para este processo os musicoterapeutas estão participando das conferências municipais de saúde focando em ir, por meio das associações estaduais, chegar nas conferências de saúde estaduais até ter representatividade na nacional.

“As conferências de saúde são espaços legítimos de participação e controle social. A cada três anos há uma conferência nacional. Agora em 2025, a fase municipal vai até o fim de abril,  depois são as estaduais e em agosto acontece a etapa nacional. É a grande chance que temos de garantir assento para a musicoterapia no Conselho Nacional de Saúde”, afirma.

Além disso, a mobilização envolve pressão sobre o Executivo por meio do Senado. A senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) e o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) protocolaram, neste ano, a Indicação nº 7/2025, sugerindo que o Ministério da Saúde atualize a Resolução 287, de 1998, para incluir as profissões da saúde regulamentadas posteriormente, como a musicoterapia.

“Essa resolução, assinada pelo então ministro Serra, lista apenas 14 profissões da saúde. Desde então, outras foram regulamentadas, mas não foram incluídas nessa lista. Uma simples atualização resolveria isso”, aponta Lilian.

Mobilização popular e articulação política

A história da regulamentação foi marcada por articulação em múltiplos níveis. O projeto de lei que deu origem à Lei 14.842 foi protocolado em 2019 pela então deputada federal Marília Arraes (PE).

Mas o verdadeiro motor da tramitação foi a mobilização popular articulada pela UBAM e associações estaduais articuladas com o GT27 .

“A cada comissão na Câmara e no Senado, mapeávamos os deputados e senadores de cada estado e os mobilizávamos. Isso fazia toda a diferença. Quando o parlamentar vê que o projeto é do seu estado e tem eleitores por trás, ele se move”, conta Lilian.

Ela também destaca o papel da deputada Rejane Dias (PT-PI), que relatou o projeto na Comissão de Seguridade Social e Família.  Rejane tem uma filha com uma síndrome rara, e desde de pequena foi tratada por musicoterapeutas.

“Ela não apenas apresentou a parte técnica da relatoria como deu um depoimento pessoal tocante sobre sua experiência com a musicoterapia. Foi decisivo”, lembra.

Apesar de resistências iniciais, o projeto foi aprovado em todas as comissões e sancionado em 11 de abril de 2024 com a assinatura da então ministra da Saúde, Nísia Trindade, do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, e do presidente Lula.

Os próximos passos

A ausência de um conselho dificulta o diálogo com o Ministério da Saúde tirando o protagonismo da categoria nas políticas públicas tanto do SUS como do SUAS (Sistema Único de Assistência Social).

Também impede que o Ministério da Saúde possa indicar para a ANS que “as sessões de musicoterapia” da tabela 24 (Guia 2024) código 50001213 TUSS para procedimentos de musicoterapia, deva ser feita por musicoterapeutas sem conselho. Ou seja, a classe dos musicoterapeutas precisa ser ouvida pelo Ministério da Saúde. 

No setor público municipal, “vereadores podem criar leis de incentivo para contratar musicoterapeutas, mas sem o cargo formal inserido no plano de carreira do município, o profissional fica vulnerável a mudanças de gestão”, explica Lilian.

A solução seria garantir a criação do cargo de musicoterapeuta por lei, o que requer articulação política e pressão popular.

No campo privado, a falta de estrutura pública afeta também os profissionais do terceiro setor. “As leis são feitas no setor público. Se o público não reconhece, o privado também não reconhece”, resume.

Por isso, Lilian reforça que os musicoterapeutas precisam ocupar os espaços de controle social.

“Participar dos Conselhos Municipais de Saúde é um direito de qualquer cidadão. É por esses canais que conseguimos incluir o cargo de musicoterapeuta nas redes municipais. Mas, infelizmente, muitos profissionais ainda não percebem isso”, lamenta.

O desafio de fazer a música ecoar

Desde a Segunda Guerra Mundial, o mundo passou a reconhecer a importância da musicoterapia como ferramenta fundamental para a saúde integral do ser humano — corpo, mente e espírito.

O Brasil deu um passo histórico ao regulamentar a profissão, mas ainda precisa garantir estrutura institucional para que os musicoterapeutas possam exercer plenamente sua função.

A história do “palhaço Chocolate”, do Espírito Santo, é um retrato comovente do que a musicoterapia é capaz de fazer: restaurar não só a voz, mas a dignidade de alguém devastado pelo abandono.

Para que essa prática tenha seu potencial reconhecido e ampliado, é essencial que o Estado brasileiro forneça as condições para seu pleno exercício.

É preciso que o Ministério da Saúde conclua sua reestruturação, atualize a Resolução 287 e abra diálogo com as novas profissões regulamentadas.

Que os municípios e Estados criem cargos efetivos. Que os planos de saúde cumpram seu papel com ética. E que a música — que já salvou tantos silêncios — possa ser ouvida como direito, não como exceção.