E agora? É a pergunta que eu mais frequentemente tenho escutado. Também é a pergunta que eu tenho me feito. Qual é o caminho para quando a água desaguar?

Desde segunda-feira, dia 29 de abril de 2024, ou seja, já há 1 mês, tenho sofrido de certa desorientação temporal. Não sei ao certo que dia é hoje, nem o mês em que estamos. Tudo parou, ainda que o relógio insista em rodar.

As enchentes no Rio Grande do Sul escancararam a falência de políticas públicas, sejam elas ambientais, sociais ou de saúde. A situação de calamidade pública descortinou vulnerabilidades preexistentes e a escassez de ações preventivas.

Reações emocionais e cognitivas

Conforme aponta Kobiyama et al. (2006), as inundações ou enchentes são os desastres naturais que, historicamente, causaram mais mortes no Brasil. Os impactos de eventos como estes são inúmeros, podendo variar de acordo com aspectos individuais e contextuais, bem como, com a extensão de exposição ao desastre (Galea, Nandi, & Vlahov, 2005).

A literatura da área (Cameron, Watson, & Friedman, 2006) aponta que as reações emocionais mais comuns após desastres podem ser choque, medo, luto, raiva, ressentimento, culpa, vergonha, desesperança e desamparo.

Já as reações cognitivas esperadas podem ser confusão, desorientação espacial e temporal, indecisão, dificuldade de concentração e prejuízos na memória. Também é possível citar as reações físicas mais comuns, como a fadiga, tensão, insônia, náusea, perda de apetite e de libido, bem como alterações nas relações interpessoais, como o isolamento, a desconfiança e a irritabilidade.

Taxas de transtornos mentais

Embora se saiba que eventos extremos como este estão associados ao aumento das taxas de transtornos mentais e ao agravamento de condições preexistentes (Kovačić Petrović, Peraica, Blažev, & Kozaric-Kovacic, 2023), tais reações supracitadas não fundamentam, necessariamente, o diagnóstico de transtorno mental. Muito pelo contrário, seguindo o curso típico de ajustamento a trauma severo, muitas pesquisas evidenciam que a maioria das pessoas afetadas recupera-se naturalmente, sem a necessidade de intervenção (Litz & Maguen, 2007).

Há, entretanto, indivíduos que não se recuperam ou que apresentam reações tardias, a ponto de cronificar e intensificar os sintomas típicos, podendo desenvolver um quadro de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Além dos sintomas típicos já mencionados, é comum que esses indivíduos apresentem recorrentes flashbacks, com pensamentos e memórias intrusivas associadas ao evento traumático, além de comportamentos de hipervigilância e esquiva, por, pelo menos, um mês (APA, 2023).

Ainda há certa escassez de estudos de prevalência do desenvolvimento de TEPT em indivíduos que passaram por situações de desastres no Brasil. Galea, Nandi e Vlahov (2005) revisaram 192 referências acerca da epidemiologia do TEPT após desastres. Os resultados evidenciaram que vítimas primárias (diretamente afetadas pelos eventos traumáticos) tinham uma prevalência de 30-40% de desenvolverem TEPT.

Já a prevalência em vítimas secundárias, ou seja, os resgatistas e toda a equipe de apoio imediato foi de, aproximadamente, 10-20%. Ainda, identificaram que a prevalência da população em geral de desenvolver TEPT foi de 5-10%. Essas taxas variaram de acordo com muitos fatores, tais quais: sexo (já que mulheres têm uma prevalência maior de desenvolverem TEPT), transtornos psiquiátricos preexistentes, suporte social percebido e extensão da exposição ao evento. Cruz, White, Bell e Coventry (2020) realizaram uma metanálise para quantificar a prevalência de transtornos mentais em vítimas de enchentes do Reino Unido e identificaram que o TEPT foi a condição mais prevalente, aparecendo em cerca de 30,36% dos indivíduos que tiveram contato com o evento.

Estresse Traumático Secundário

É necessário, também, fazer referência ao Estresse Traumático Secundário (ETS), em consonância com o critério A4 do TEPT, no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-V, APA, 2023), o qual pode afetar os profissionais que trabalham com pessoas que foram vítimas primárias de trauma.

Embora o ETS, também conhecido como trauma vicário ou fadiga por compaixão, se manifeste em trabalhadores das mais variadas áreas, algumas especialidades profissionais, como a da saúde, resgate e segurança, parecem ser mais afetadas (Kintzle, Jarvis, & Bride, 2013).

É essencial que os profissionais que atuam diretamente com pessoas que passaram por situações traumáticas tenham clareza sobre sua atuação profissional e sobre os limites de seu trabalho, bem como sigam engajados no seu autocuidado, mantendo as rotinas de sono, descanso e alimentação minimamente organizadas.

Em situações de risco ou desastre, fala-se amplamente sobre o uso dos Primeiros Socorros Psicológicos (PSPs), desenvolvidos como uma intervenção de apoio psicossocial, para reduzir o estresse inicial causado por eventos traumáticos, a fim de favorecer o processo de recuperação (Lara et al., 2019).

De acordo com as diretrizes da Inter-agency Standing Committee sobre Saúde Mental e Apoio Psicossocial para Emergências Humanitárias (IASC, 2007), os PSPs só devem ser ofertados após serem garantidos a essas pessoas o suprimento de suas necessidades básicas de segurança, proteção e alimentação, bem como, a reconexão e o fortalecimento da rede de apoio comunitária e familiar.

Condições físicas e psicológicas

Os PSPs podem ser disponibilizados por qualquer pessoa que tenha condições físicas e psicológicas para tal e que tenha sido previamente treinada para sua aplicação, a fim de não aprofundar os danos e as dores já existentes.

Os objetivos centrais dos PSPs são: escuta, acolhimento, orientação, fortalecimento da rede de apoio e dos mecanismos adaptativos de enfrentamento e ampliação da autonomia e protagonismo do indivíduo (WHO, 2011). Podem ser realizados a partir de uma conversa informal ou, até mesmo, de uma atividade lúdica. A Organização Mundial da Saúde atenta, mais uma vez, para a importância do autocuidado e do descanso daqueles que ofertam tais serviços.

Quanto à atuação do profissional da Psicologia, suas ações podem ocorrer antes, durante e após a situação de desastre. Na fase do pré-desastre, as ações estão direcionadas, sobretudo, à prevenção, à garantia de direitos sociais e ao fortalecimento das comunidades.

Durante o evento, as ações consistem em acompanhar e intervir junto a pessoas e comunidades com vistas a minimizar os impactos do evento e a ampliar as respostas adaptativas, e na fase do pós-desastre, consistem em dar continuidade ao acompanhamento iniciado nas etapas anteriores, identificar e intervir em quadros de transtornos mentais, como o Transtornos de Estresse Pós-Traumático (Alves, Lacerda, & Legal, 2012).

Reitera-se, ainda, que, em situações de calamidade como esta, é comum que o indivíduo perca o senso de segurança, proteção e previsibilidade já que perdeu boa parte de suas referências. Assim, é primordial que o profissional possa auxiliá-lo nessa reconstrução e na retomada gradual de seus hábitos e rotinas.

Tais ações, complexas e extensas, requerem um planejamento, coordenação, gerenciamento e fiscalização do poder público, a partir de ações intersetoriais, com apoio e suporte da sociedade civil.

É fundamental, também, a revisão e readequação das políticas públicas, especialmente àquelas que dizem respeito à infraestrutura, planejamento urbano e meio-ambiente, bem como às de proteção e assistência social.

Frente ao aumento da frequência de eventos climáticos extremos como este, atribuir responsabilidade a quem, de fato, é responsável, é inadiável.

E MAIS…

Percurso longo e coletivo

As perdas já não podem ser contabilizadas em números. A água levou casas e móveis, mas também inundou memórias, histórias e sonhos. Há um senso de identidade de si que se perdeu.

O percurso para a recuperação é longo e é coletivo. Que nunca nos falte aquilo que água nenhuma pode levar: a humanidade. É a partir dela, que será possível conectar-se com a dor do outro de forma empática, sensível e reparadora. Como lembrou Krenak (2020), enquanto pudermos contar uma nova história, poderemos adiar o fim e considerar recomeços.

Referências
Alves, R. B., Lacerda, M. A. C., & Legal, E. J. (2012). A atuação do psicólogo diante dos desastres naturais: uma revisão. Psicologia em Estudo, 17(2), 307-315.
APA – American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5-TR. 5.ed., texto revisado. Porto Alegre: Artmed, 2023. (Publicação original em inglês em 2022)
Cameron, R., Watson, P., & Friedman, M. (2006). Interventions following mass violence and disasters strategies for mental health practice. Guliford Press. New York.
Cruz, J., White, P. C. L., Bell, A., & Coventry, P. A. (2020). Effect of Extreme Weather Events on Mental Health: A Narrative Synthesis and Meta-Analysis for the UK. International journal of environmental research and public health, 17(22), 8581. https://doi.org/10.3390/ijerph17228581
Galea, S., Nandi, A., & Vlahov, D. (2005). The epidemiology of post-traumatic stress disorder after disasters. Epidemiologic reviews, 27, 78–91. https://doi.org/10.1093/epirev/mxi003
Inter-Agency Standing Committee (IASC, Comitê Permanente Interagências) (2007). Diretrizes do IASC sobre saúde mental e apoio psicossocial em emergências humanitárias. Tradução de Márcio Gagliato. Genebra: IASC.
Kintzle, S., Yarvis, J. S., & Bride, B. E. (2013). Secondary traumatic stress in military primary and mental health care providers. Military medicine, 178(12), 1310–1315. https://doi.org/10.7205/MILMED-D-13-00087
Kobiyama, M., Mendonça, M., Moreno, D. A., Marcelino, I. P. V. O., Marcelino, E. V., Gonçalves, E. F., et al. (2006). Prevenção de desastres naturais: conceitos básicos. Curitiba: Ed. Organic Trading.
Kovačić Petrović, Z., Peraica, T., Blažev, M., & Kozaric-Kovacic, D. (2023). Association between problematic Internet use and specific Internet activities and COVID-19- and earthquake-related stress, anxiety, and depression symptoms among Croatian young adults. Frontiers in Psychiatry, 14.
Krenak, A. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.
Lara, P. G., Silva, G. R., Servino, L. L., Frimm, V. C., & Kristensen, C. H. (2019). Primeiros Socorros Psicológicos: Intervenção em crise para eventos de violência urbana. Revista Educar Mais, 3(3), 9–16. https://doi.org/10.15536/reducarmais.3.2019.9-16.1607
Litz, B. T., & Maguen, S. (2007). Early intervention for trauma. In M. J. Friedman, T. M. Keane, & P. A. Resick (Eds.), Handbook of PTSD: Science and practice (pp. 306–329). The Guilford Press.
WHO – World Health Organization, War Trauma Foundation and World Vision International (2011). Psychological first aid: Guide for field workers. WHO: Geneva.