Existem muitas versões da história de Pinóquio, o boneco de madeira que queria ser um menino de verdade. A versão mais popular, o filme de Walt Disney, é bastante “domesticada” se comparada com o livro original de Carlo Collodi – pseudônimo do autor italiano Carlo Lorenzini (1826-1890). Na época do lançamento do livro, em 1883, a Europa vivia sua Belle Epoque. As classes dominantes reverenciavam a égide da moral e dos bons costumes. Mas também foi uma época marcada pela segunda revolução industrial – o que explica a miséria de Gepetto, um artesão –, a falta de mobilidade social, alta migração dos campos para as cidades, a fome e o trabalho opressivo da classe proletária.

Collodi utiliza em sua obra vários elementos que hoje são identificados como “psicanalíticos”. Curiosamente, na época que escreveu seu livro, Freud nem pensava em criar uma teoria que revolucionaria a psicologia moderna. Como é possível? Assim como a teoria psicanalítica, Pinóquio é inspirado por simbologias e referências helênicas como Édipo, o rei que mata o próprio pai; Faetonte, o adolescente que queimou o céu ao tentar dirigir o carro do pai, o deus Sol; e Ícaro, a história do menino que tentou voar com asas feitas de cera, a fim de escapar de um labirinto onde se encontrava preso com seu pai. É possível analisar nesses mitos grandes epopeias vividas entre pai e filho, esses dois objetos masculinos contraditórios e conflitantes, antagonistas e ligados pelo sangue e pela tragédia em comum.   

Elementos masculinos

Na época de Freud e Collodi, a previdência de um pai era seus filhos. Pinóquio reafirma o papel dos meninos dentro da sociedade machista e capitalista. Os demais contos da carochinha falam sobre a educação modelar feminina, suas preocupações com o casamento, com os cuidados da casa, com o esmero, os talentos pessoais. Pinóquio, por sua vez, fala basicamente da responsabilidade do homem com honra e trabalho. É uma história repleta de elementos masculinos, brutos, rebeldes e libidinosos. É tanto que o Grilo Falante é assassinado por Pinóquio logo nas primeiras páginas do livro. Esses personagens masculinos se estapeiam, se enganam e se desenganam. Fazem as suas patacoadas de forma barulhenta, grave e violenta. Assim, nesse universo tosco do homem brutalizado, Pinóquio, feito de madeira, deve ser “esculpido” pelo pai para que esse seja seu representante dentro da sociedade. Gepetto até tenta, mas não consegue. E há motivo para isso.

Pinóquio, assim como Ícaro, Faetonte, Édipo e o Filho Pródigo, tem algo essencial em suas experiências. A raiz da angústia desses personagens é também sua maior grandeza: a luta pela liberdade. Pinóquio, na história original, não é ingênuo como no filme. Diante dos questionamentos internos, chega a ponderar a possibilidade de fazer as coisas corretamente, mas seus desejos falam mais alto. Ele não quer ser lapidado, quer ser aceito como veio ao mundo, quer se deixar enganar para ir fundo na experiência humana que prima por descobertas, mesmo que, para isso, tenha que passar pelo calvário das iniquidades.  

Ao lutar por sua liberdade, Pinóquio conta com apoio de uma força incomensurável que pulsa em seu inconsciente: o Id. Segundo Freud, “no princípio, era o Id. Assim, nós nascemos”, o Id é a força motriz da alma, impulso das energias capazes de fazer a criança produzir todas as suas ações. E ao produzir uma ação, ela se comunica com o meio. Quando o indivíduo é bebezinho, não utiliza palavras, mas é capaz de se comunicar através de seu corpo. Nos primeiros meses de vida, o meio e o self se confundem na cabeça da criança. Ela não nasce no mundo, mas nasce dentro de sua mãe. É assim que descobre o mundo. A diferenciação entre self e mundo, como bem descreveu o psicomotricista Henry Wallon, em sua tese do “diálogo tônico”, ocorre na fase “sensório-motor e projetivo”, isto é, entre um e três anos de idade. Antes disso, era apenas a comunicação tônica, pulsar, entre mãe e filho. Bion também defende essa teoria, com outro nome, quando falou sobre a “comunicação primitiva” entre um bebê que ainda não consegue verbalizar, mas é capaz de trocar em silêncio informações com a mãe. Quando essa comunicação não se faz possível, o indivíduo sente “uma angústia inominável chamada de ‘terror sem nome’”.

Desejos primitivos

Pinóquio desperta para vida sem de fato ter sido concebido, sem ter sido parido, sem ter sido acarinhado, sem ter sido tocado, sem ter sido compreendido ou amado. A situação só piora quando é possível perceber que seus desejos exóticos de recém-nascido podem ser facilmente apresentados através das palavras. O exercício imagético é genial: a concepção abiogenética de Pinóquio coloca os psicanalistas para refletir como seria a conduta de um garoto em um corpo que não sente dor e que não tem apego a ninguém, apenas desejo de liberdade e de exploração de um “eu” que ele confunde com o mundo ao seu redor. Não houve um estágio em que ele pudesse manifestar seus desejos silenciosos no colo de sua mãe; Pinoquio nasceu e está no mundo, tal qual o potro que quando nasce quer leite, quer berrar, quer correr, tudo ao mesmo tempo. E o pai, que ainda não teve tempo para sentir amor por esse filho instantâneo, percebe que tem apenas uma grande sensação de responsabilidade por ele. Gepetto, assim como fazem todos os pais quando os filhos têm a idade de Pinóquio, tenta mudar os passos do filho, tenta castrar seus desejos primitivos. Mas os desejos de Pinóquio não estão claros, logo eles voltam a ser descarregados no próprio aparelho psíquico em forma de depressão.

Terror sem nome

Esse fato comumente aparece na clínica, segundo Zimmerman. Um paciente como Pinóquio comumente usa fantasias para disfarçar o “terror sem nome” que ainda ecoa. Nesse sentido, o “ter” e o “ser” se transformam na mesma coisa, uma regressão dos tempos primitivistas quando self e mundo eram a mesma coisa. Interessante avaliar que, ao trazer a história de Pinóquio para a ótica social e psicanalítica, tais eventos aqui descritos são absolutamente visíveis na sociedade. Crianças pobres, filhas de famílias alargadas e disfuncionais, vítimas de abandonos de pai e mãe, projetadas em um mundo que não lhes deu qualquer ideia sobre identidade, crescem em abrigos mal estruturados que lhes passam tarefas diárias e que as moralizam. Nesse espaço caótico, o simbólico pode vir a se manifestar, seja através da religiosidade fundamentalista, seja na apropriação da ideia de que o crime compensa, seja na criação hiperbólica de que há um mundo melhor para ser habitado, através das ilusões, dos delírios, da prostituição ou das drogas.

E MAIS…

Pinóquio é menino sem face, alguém facilmente manipulável

A diferença entre o desejo e a realidade causa angústia ao boneco de madeira. Soma-se a isso, o fato de ele ser desemblemado, ou seja, um menino sem face ou, como bem apontou Zimmerman, com uma “identidade aditiva”, pois não é capaz de formatar uma personalidade própria, sendo, portanto, reconhecido como um simples títere, ou seja, alguém facilmente manipulável. Gepetto tenta impor-lhe alguma lei. É dele essa responsabilidade. Mas é cedo para isso. Ou tarde demais. Pinóquio sente ansiedade. Seu ego é frágil e não consegue processar as diferenças entre o desejo e a lei. Após assassinar o Grilo Falante e vender a cartilha escolar que seu pai teve dificuldade para comprar, Pinóquio foge da escola e deixa de ouvir o superego recentemente apresentado pelo pai para se deixar levar pelo desejo de ser parte do mundo – um mundo do qual ele, por não ter tido mãe, acha que é parte de si.

Impulsionado pelos desejos, a fim de fugir de sua angústia primordial, Pinóquio se submete a diversas pessoas que o complementam, que lhe prometem dar colo e leite. Preso às próprias simbologias de sua mente, ele se perde no viciante desejo pelo hiperbólico. Refaz assim uma tendência muito comum, de jovens apartados previamente do colo da mãe, que se rastejam nos submundos das grandes cidades, onde são engolidos por tramas cheias de violência, crimes, drogas e até prostituição (no livro, em troca de favores, Pinóquio presenteia o Atum com dois beijos na boca).

REFERÊNCIAS:

FREUD,  S.  O  ego  e  o  id. IN Edição standard  brasileira  das  obras  psicológicas  completas de Sigmund Freud. v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 2009.   
GAY, Peter. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica: uma abordagem didática / David E. Zimerman. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2007.
VAZ, Fernando. Nota do tradutor IN As aventuras de Pinóquio: história de um fantoche. São Paulo: Biruta, 2016.