Freud elegeu o falocentrismo como central na sua teoria. Em “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”, pondera que ter ou não ter o pênis, assim como a ameaça de perdê-lo, traz uma consequência psíquica que “requer urgentemente verificação, para que se reconheça se tem valor ou não” (1925/2012, p. 286).
Com base em sua ideia central, considero que o almejado pênis – não o real, físico, palpável, mas aquele cuja qualidade e função lhe confere força e firmeza – pode ficar ameaçado frente à necessidade de ter um abrigo natural, um continente que o acolha.
Birksted-Breen (1996) procura distinguir o que seria o pênis-como-ligação (Eros) do phallus (Tânatos, que destrói a ligação), pois ambos pertencem a organizações psíquicas diferentes. Relaciona o phallus à falta inerente, à incompletude da condição humana, que representa uma completude ilusória.
Associado à “potência fálica”, o phallus pode se assentar mais no poder e no domínio, e menos no vigor da penetração com finalidade de ligação. No entanto, a autora ressalta que, em ambos os casos, eles vêm acompanhados de angústia pelo sentido de passividade inerente à busca por recepção e consequente abrigo.
Essa angústia com sentido de passividade sugere pensar que o pênis, sob o signo da falta (Gibeault, 1998), configuraria a sua incompletude ao necessitar ser contido, desconstruindo a sexualidade do menino como “completa” ao ter um “órgão sexual adequado” e uma “sexualidade específica desde o começo”. Pretendo, desse modo, que o diálogo proposto entre o físico e o psíquico permita a interface dos fatores de conjunção e disjunção frente ao almejado e ameaçado masculino em nós.
O continente (♀), ao aceitar e receber o conteúdo (♂), não o impede de ter mobilidade. O espaço/limite encontrado possibilita o movimento. Só assim poderá haver o embrião da vida mental, como Bion (1963/2004) preconiza, com a ocorrência da interação do feminino (♀) com o masculino (♂) na mente, ao transformar o até então conteúdo (ocorrido na relação) em continente/contido (♀♂). No entanto, quando existe a fantasia de uma superioridade masculina (complexo de masculinidade na vida mental), esta fica ameaçada e, muitas vezes, se expressa nas relações interpessoais pelo controle e desprezo, como prenúncio aversivo à considerada “inferioridade” feminina, sentida como mutilada, quando o espaço potencial feminino interno ficou registrado como oco e vazio (Perrini, 2022).
Monismo sexual fálico
A epígrafe musical pretende anunciar essa almejada atração humana, que igualmente atemoriza: “Sabe lá o que é não ter e ter que ter para dar”.Isso se manifesta, intrapsiquicamente e intersubjetivamente, revelando a temida castração (dentro do monismo sexual fálico) e/ou a ameaça de “não ser aceito” na diferença (bissexualidade psíquica integrada), sinônimo de incompletude, única favorecedora do encontro entre a função masculina e a função feminina da mente. Mas a indiscriminação nesse encontro pode ser reveladora de graves perturbações presentes nas imprevisibilidades da vida, não somente no desenvolvimento psíquico.
Assim, procuro fazer aproximações que permitam o desarme de elementos que “caracterizam supostos básicos de guerra, numa dinâmica primária de automatismos protomentais e mentais” (Sapienza & Junqueira Filho, 2004), primeiramente dentro de nós mesmos.
Esses fatores de disjunção, presentes na crença narcísica de que o masculino é completo e o feminino é mutilado, trazem a impossibilidade de uma “liberdade necessária para novas recombinações” (Bion, 1962/1980, p. 151), sendo impeditivos da constituição do ser psíquico propiciador da conjunção continente/contido (♀♂), elementos formadores do par criativo.
Para melhor compreensão das palavras utilizadas por mim, faço referência a Paim Filho, que, “visando uma maior especificidade”, delimita os termos “feminilidade e masculinidade à identidade de gênero”, reservando o termo feminino à “característica de fundante do psiquismo” (2014, p. 3). O termo masculino, eu o vinculo ao esforço rumo à instância psíquica estruturante que separa e une, à medida que o outro passa a existir.
Diferente de agir
Sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar
A masculinidade narcísica, própria da qualidade do masculino quando centrada na ilusão da própria virilidade, contrapõe-se à função do masculino em nós, que executa e que faz, na busca do outro, por sentir que por si só não se basta.
Desse modo, a elevada estima ao órgão masculino – sob o vértice tanto anatômico quanto falocêntrico – transparece, muitas vezes, em atitudes de pouca consideração à mulher (em questões de gênero, machismo), de aversão e até de horror a ela (Freud, 1937/2018), podendo ser também uma forma de expressão da abominação do feminino em si mesmo.
Essas manifestações do comportamento masculino – endossadas pela sociedade e com discurso próprio para convencer, sem pudor, mas com poder – mostram-se em manobras defensivas contra atributos próprios do feminino, vividos em si mesmo com temor e rejeição (Freud, 1937/2018). Considero que elas podem ser provenientes da fase da protofeminilidade (Stoller, 1985), em que a fusão com a mãe, nos primeiros meses de vida dos bebês de ambos os sexos, não causa problemas na menina.
No entanto, pode muitas vezes ser rejeitada pelo menino, no espaço do feminino primário, da constituição da bissexualidade psíquica formadora da mente (Guignard, 2009), em que se dá a aceitação da diferença dos sexos. Tal experiência pode vir a ser bastante ameaçadora, presente muitas vezes na crença do menino de que o próximo a ser mutilado seja ele próprio, pois assim foi inicialmente vivido na relação primeira, quando inaugurada a presença da alteridade – e portanto da necessidade de amparo frente ao terror de não ser aceito.
A consequente e exclusiva valorização no fazer, produzir e executar, como presente na violência e na troca de acusações (masculinidade tóxica), contém também o horror ao feminino (o feminino em si mesmo), internalizado como castrado, impotente e submisso. Não é raro pensarmos que isso possa ser expressão de uma precoce e imatura superação da rivalidade do feminino, oculto, primordialmente vivido e perdido (útero materno), em sua mais profunda e visceral verdade, que contém o lado mais sombrio, ferido e incurável: nossa primeira relação.
O feminino interminavelmente
O feminino pode ser interminavelmente reeditado como sinônimo de perda do primeiro objeto (luto não elaborado registrado como recusa), manifesto na eterna busca idílica por reencontrá-lo, muitas vezes expresso como algo a ser rejeitado ou mesmo temido, tornando estéreis as relações consigo próprio e com o outro. Essa primeira inscrição do feminino em nós, fundante do psiquismo, instaura a necessidade, sendo portadora do amparo e do desamparo que nos fere narcisicamente pela dependência do outro.
No entanto, ambos, menino e menina, têm uma necessidade de proteção contra a imago materna primitiva, por ser o feminino o “lugar do mistério e da morte” (Gibeault, 1998, p. 178), o “portador da má notícia, do desamparo, da morte, [pois nos remete] aos mistérios das origens do vir a ser humano” (Paim Filho, 2014, pp. 4-5). Isso é vivido como identificação feminina primária, em que menino e menina precisam assumir a perda do primeiro objeto e introjetar a mãe como escudo protetor, porque o desejo de separação e fusão se torna intenso.
Mesmo que ambos possam ter destinos semelhantes, é fundamental a diferença vivida pelo menino, devido à necessidade de se “desidentificar da mãe arcaica e tornar possíveis as reidentificações secundárias” (Gibeault, 1998, p. 179). A desidentificação pode permitir que ele deixe de lado a angústia da perda da completude, sem temer ou invejar o pai nem o poder criador da mãe, e renuncie à plenitude narcísica. Essa transformação necessária remete à constelação edípica e à possibilidade de “movimentos de liberdade, que cada um de nós precisa ter para se inventar” (Vannucchi, 2009, p. 69).
É o encontro com o diferente – bissexualidade psíquica integrada – que nos convoca à necessidade e, consequentemente, à criatividade. A harmonia entre realizações internas e externas pode habitar homens e mulheres – nossa parte feminina e masculina da mente –, em uma conjunção em que a rivalidade não se sobressaia frente ao espírito agregador e parceiro, dentro de nós mesmos, como a música também anuncia: “A nave em breve ao vento vaga de leve e traz toda a paz que um dia o desejo levou”.
Questões complexas
Observo que nos deparamos com duas questões complexas a ser consideradas:
1) A presença da sujeição na função feminina da mente, que anuncia o amparo/desamparo e a necessidade (por conter em si angústias de aniquilamento), mesmo que sujeição não queira dizer passividade nem submissão, mas a possibilidade de o indivíduo vir a se tornar sujeito.
2) A presença da in/segurança na função masculina da mente que promove a separação/união (por conter em si angústias com sentido de passividade diante da necessidade de ser aceito e acolhido), mesmo que a in/segurança não diminua o vigor da penetração para que ocorra a ligação.
Estamos em face de uma ferida narcísica que declara nossa incompletude. Essa incompletude se baseia na sujeição (feminino como fundante do psiquismo) e na busca por aceitação (masculino como instância psíquica estruturante que liga e separa), vividas inelutavelmente nas experiências primárias quando estamos sujeitos a uma mãe insubstituível (Klein, 1940/1996b).
Antes que o indivíduo comece a reconhecer a experiência vivida, ele já está sujeito a ela, assim como o verbo, na gramática, necessita de um sujeito. No entanto, o bebê não é passivo. Feminino e masculino podem se encontrar em uma bissexualidade constitutiva assimétrica, em continente/contido (♀♂); integrados em uma unidade interior, a fim de “na correnteza do amor … saber se guiar”, e poder propiciar confiança na capacidade criadora e, a partir desse limite/infinito, quando tolerado, ir além.
[1] Trabalho completo publicado na Revista Brasileira de Psicanálise. Volume 56, n. 4, 105-116. 2022.
2 Membro efetivo, docente e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp). Membro fundador, efetivo e docente com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Curitiba (SBPCuritiba).
3 As demais epígrafes neste trabalho são da mesma canção.